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Brasil: o “sentido” da história


Publicado em: 20 de maio de 2025

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Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Imagem: Steve Johnson

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1. O desafio marxista é elaborar análises que ofereçam uma explicação ao desenlace das lutas sociais do passado. Atribuir “sentido” à história de uma nação não é uma previsão de destino, mas exige uma “régua”. A periodização política pode ser feita utilizando diferentes critérios. O mais instigante, longe de exclusivo, se inspira na luta de classes. Esse é o método marxista. Ainda que o marxismo não reduza a interpretação histórica à luta de classes elege este critério ou determinação como a principal chave de elucidação. Mas a luta de classes não se resume à luta entre capital e trabalho. A burguesia não é, em nenhum país, uma classe homogênea: está dividida em frações que rivalizam interesses – regionais e econômicos, entre outros – e disputam entre si, em certas etapas de forma mais aguda, estratégias e projetos distintos. Os trabalhadores, ainda que mais homogêneos que os capitalistas, não são, tampouco homogêneos e, em nosso país, mantiveram estratificações internas variadas – de gênero e raça, entre outras. O conflito entre capital e trabalho não foi o principal antagonismo nas etapas de formação da nação brasileira. E, embora decisivo, sobretudo depois dos anos cinquenta, não se deve diminuir na análise o papel das camadas médias. Existem sempre outras determinações, distintas da luta de classes, mas subordinadas ao conflito central. A história política do Estado, que assumiu a forma de diferentes regimes políticos, ou a arquitetura institucional do exercício do poder, não se explica sem uma complexa história social de formação das principais classes, e nos remete à história econômica e o lugar do país no mercado mundial. Isto posto, podemos discernir nesta chave de interpretação dez etapas político-sociais, alternando fases de aceleração, estagnação e regressão, na evolução do Brasil como nação em construção.

2. Podemos periodizar, em resumo brutal, nossa história política em três épocas ou etapas históricas. Uma primeira longa época ou período histórico em que o Brasil era, essencialmente, uma sociedade agrária, a luta das classes populares, uma maioria negra, se desenvolvia em condições estruturais defensivas, perderam-se oportunidades históricas de sair da condição periférica, que a Argentina, comparativamente, aproveitou muito melhor, se estendendo até o final da Segunda Guerra Mundial. Esta primeira época pode ser subdividida em três períodos: (a) entre 1822/88, o que prevaleceu foi a escravidão tardia que condicionou  lutas de baixa intensidade entre frações burguesas urbano-importadoras e agrário-exportadoras muito regionalizadas, que abraçaram a forma monárquica do Estado perpetuando a dinastia Bragança, e estrangularam o país com uma longa estagnação, atrasou o desenvolvimento econômico-social por três gerações, condenou o país a mais um século de semicolonização inglesa, ainda que preservando a unidade do Estado nacional; (b) entre 1889/1930, o que prevaleceu foram as lutas de oligarquias regionais, em especial paulista, pela hegemonia no Estado Nacional, um lento desenvolvimento com o crescimento demográfico, e a formação de uma classe média urbana de imigrantes europeus, à excepção do sul em que surgiu uma. pequena-burguesia agrária; (c) entre 1930/45, o que prevaleceu foi o papel de Vargas como árbitro bonapartista de lutas oligárquicas regionais, em especial, o conflito contra a hegemonia de São Paulo, e conflitos entre uma burguesia urbana interessada no mercado interno, e frações “compradoras” contidos pela ditadura do Estado Novo, manobrando entre as pressões norte-americanas e alemãs.

3. A segunda época ou etapa se inicia com o golpe de Estado que derruba Getúlio, e o fim da guerra, e se estende até os anos oitenta com o fim da ditadura, e se define pelo papel crescente da mobilização operária e popular, ainda sem expressão política protagonista, sendo arrasta por outras classes, frações burguesas e das camadas médias. Nesta etapa histórica o Brasil se transformou no principal destino do investimento norte-americano, e a burguesia brasileira na mais poderosa da periferia, mas a nação passou a ser campeã mundial desigualdade social. Pode ser subdividida em dois períodos: (a) entre 1945/64, se iniciou a fase dinâmica de intensa aceleração da urbanização, foi preservado um regime democrático-liberal deformado pela ilegalização do PCB, a primeira geração proletária se colocou em movimento, ainda que sem independência de classe, e abraçou o getulismo como vocabulário político, e o que prevaleceu foi o conflito entre uma fração burguesa associada, umbilicalmente com Washington e a defesa do papel dos investimentos externos como motor da industrialização, e uma fração burguesa que apostava no potencial do mercado interno; (b) entre 1964/79 a classe dominante se uniu no apoio à ditadura militar como estratégia de emergência preventiva diante do impacto continental da revolução cubana, e a derrota histórica da classe trabalhadora, que precisou do intervalo de uma geração para se recuperar, potencializou o “milagre” econômico com uma vertiginosa migração interna de mais de cinco milhões que se deslocaram do nordeste para o sudeste.                                                                                                                                              

4. A terceira etapa foi ainda mais turbulenta que as duas anteriores. Ela se inicia na fase final da luta contra a ditadura, e se estende até hoje. O fator chave deste período foi o protagonismo da luta da classe trabalhadora, que produziu divisões na classe dominante e, em dois períodos, conseguiu arrastar uma maioria nas camadas médias. Ela pode ser subdividida em cinco fases: (a) entre 1979/92, a “longa década de oitenta” a nação viveu a fase de mais intensa luta de classes de sua história, em que o que prevaleceu foi a polarização capital/trabalho, inaugurada pela explosão de greves operárias que fermentaram a formação da UNE, do PT, da CUT, do MST, a onda de mobilização de massas das Diretas Já, de dois ensaios de greves gerais nacionais em 1987 e 1989, e o Fora Collor, que derrubou o primeiro presidente eleito sob as regras da nova Constituição, arrastando segmentos da classe média; (b) entre 1992/2002, o que prevaleceu foi a estabilização do regime democrático-eleitoral com direito de alternância, a unidade burguesa e um giro da classe média para a direita, a estabilização da moeda com uma política de juros estratosférica, mas o capitalismo periférico perdeu o impulso de crescimento, o investimento externo passou a privilegiar a China, surgiu a armadilha da estagnação social com o PIB per capita andando de lado, o avanço de choques neoliberais de desnacionalização, desindustrialização, e privatizações; (c) entre 2002/16, o que vingou foi o impulso reformista com a eleição de Lula, que teria sido impossível sem apoio na nova classe média urbana, e, na sequência, vitórias eleitorais sucessivas, prevalecendo um papel regulador do Estado, através de políticas de distribuição de renda, mas também, associado ao extremo gradualismo e moderação, sem anulação do tripé macroeconômico neoliberal de câmbio flutuante, busca de superavit fiscal e metas de inflação, e um lento deslocamento das camadas médias, inclusive entre trabalhadores remediados mas com instrução mais elevada, para a oposição que culmina na explosão multitudinária de 2013; (d) entre 2016/22 o país passou pela tragédia do golpe parlamentar institucional, sustentado por mobilizações de milhões nas ruas, o mandato usurpador de Temer, a prisão de Lula que abriu o caminho para que um neofascista como Bolsonaro chegasse ao poder através de eleições, no contexto de uma fragmentação social devastadora, uma inversão desfavorável da relação de forças muito pior que nos anos noventa; (e) entre 2022/25, em função do desgaste de Bolsonaro na pandemia e de uma divisão na classe dominante, ocorreu a vitória eleitoral de Lula, mas sem uma derrota política da extrema-direita, que permaneceu quase intacta, com um apoio consolidado na classe média, no sudeste e no sul do país.

5. O argumento deste texto é que essas etapas e períodos são definidos por mudanças qualitativas nas relações sociais de força, ou seja, na posição respectiva das classes sociais na estrutura da sociedade. Mas se manifestam na superestrutura institucional do Estado em alterações na arquitetura do poder. Nessa perspectiva, o reacionarismo atávico da classe dominante perdeu as oportunidades de se libertar da condição de semicolônia inglesa no século XIX adiando, indefinidamente, o fim da escravidão, impedindo uma reforma agrária, e preservando uma monarquia obsoleta e anacrônica. Uma das peculiaridades brasileiras é que a classe dominante renunciou a uma revolução burguesa porque temia, acima de tudo, o desenlace de uma guerra civil, como na Argentina ou nos EUA, apavorada diante de uma maioria popular negra. A revolução de trinta que começou com a “batalha de Itararé”, e abriu a possibilidades de erguer o Estado nacional acima dos horizontes mesquinhos da cafeicultura paulista, a fração mais poderosa da burguesia, mas Vargas optou pela ditadura para derrotar o integralismo que defendia uma ditadura.  Em comparação com as nações vizinhas, o que prevaleceu na longa duração, na escala das décadas, foi a relativa estabilidade da dominação burguesa no Brasil em transições concertadas, e a lentidão das transformações sociais, em contraste com um dinamismo econômico intenso. Mesmo o golpe de 1964, uma ruptura institucional, foi precipitado preventivamente, temendo a onda de contágio da revolução cubana.

6. Nunca conhecemos uma revolução democrática. A ditadura acabou em 1985 sem que o governo Figueiredo tenha sido derrubado. Mas este padrão se alterou, dramaticamente, desde o fim da ditadura militar. A tendência histórica tem sido, desde então, apesar de oscilações, uma aceleração da luta de classes. A principal mudança objetiva foi a entrada em cena de uma nova classe trabalhadora, incomparavelmente, mais poderosa. O proletariado brasileiro é um gigante social. O mais forte da América do Sul. A intensa industrialização nos trinta anos do pós-guerra, apesar de desigualdades regionais muito grandes, gerou uma sociedade hiper-urbanizada com vinte e duas cidades com mais de um milhão de habitantes e duas capitais, desproporcionalmente, macrocéfalas: São Paulo e Rio de Janeiro. A relação de forças entre campo e cidade se inverteu. Até os anos cinquenta o mundo agrário era a fortaleza social da classe dominante. Desde os anos oitenta se impôs um “despotismo” urbano, e uma nova relação estrutural de forças entre as classes. O regime democrático-liberal se institucionalizou nos últimos quarenta anos, mas a um custo econômico gigantesco, uma carga fiscal só comparável com a dos países centrais para sustentar previdência social, SUS, educação pública gratuita e programas de transferência de renda para diminuir a miséria extrema. As condições objetivas e subjetivas da dominação capitalista mudaram porque os trabalhadores organizaram o maior partido de esquerda do continente. Neste processo o capitalismo periférico perdeu o impulso de crescimento, mergulhou em estagnação, reprimarizou com a expansão do agronegócio e mineração, e uma fração burguesa radicalizou até à extrema-direita apoiando o golpismo bolsonarista. O capitalismo mundial escapou do terremoto de 2008 somente com uma década recessiva, evitando uma depressão como nos anos trinta, à custa de uma “fuga em frente”: uma explosão estratosférica de crédito, não elevação de investimento. O Brasil viveu um período de “decadência” nacional. Mas o paradoxo é que não foi a classe trabalhadora que desafiou os limites do regime liberal-eleitoral, foi a burguesia que rompeu com a democracia. No Brasil, ao contrário da Bolívia e Venezuela, ou mesmo da Argentina, não se abriu uma situação revolucionária, mas ocorreu um golpe institucional à maneira “paraguaia”. Este desfecho se explica por dois fatores: (a) pela força social e inteligência política da burguesia brasileira que se uniu cooperando com governos de coalizão com o PT até o impacto da crise mundial de 2008, mas também seu uniu para derrubá-lo, quando se sentiu ameaçada, depois de 2014; (b) pela força e longevidade do lulismo que venceu quatro eleições presidenciais seguidas, sofreu o impeachment de Dilma Rousseff, mas conseguiu voltar à presidência em 2022, e lutará pela reeleição de Lula em 2026.

7. Quando uma nação mergulha em decadência a luta de classes muda de patamar.  As duas classes mais poderosas da sociedade vão ter que medir forças. Uma das chaves de previsão da evolução da luta de classes nos próximos anos repousa na “ausência” dos “dois fatores”. Hoje a burguesia está procurando superar a divisão interna provocada pelo bolsonarismo, e a crise de sucessão de Lula, embora contida, já começou. Depois do fracasso do mandato Bolsonaro e da derrota do ensaio geral golpista, a classe dominante procura costurar fissuras em torno de um projeto histórico de alinhamento incondicional com os EUA, e a aposta de crescimento turbinado pelo investimento norte-americano e europeu que abandona a China, e estão na ofensiva política para derrotar o governo Lula. Mas o lulismo, a corrente majoritária entre os trabalhadores está à deriva, sem projeto estratégico. O “reformismo fraco” repousou no “crescimento forte” que garantiu a paz social até 2013. Não estamos em 2005. Nem a China preserva crescimento de dois dígitos, nem Obama está na Casa Branca. Os aliados na Frente Ampla estão em debandada. A questão decisiva no cálculo político é avaliar o grau de risco de retorno da extrema-direita ao governo do país. A presença de Trump na Casa Branca pode favorecer uma união da classe dominante em torno de um projeto que unifique a fração liberal com os radicais bolsonaristas, mas sem Bolsonaro, que deve ser condenado, e a capacidade deste Frente Ampla reacionária arrastar a maioria das camadas médias, inclusive entre os trabalhadores. Por outro lado, é mais do que claro que sem o lulismo será impossível evitar a ameaça de uma derrota histórica, mas não menos importante é compreender que os limites do lulismo são boa parte das razões deste impasse estratégico. A esquerda socialista deve golpear junto, mas saber se proteger e marchar separada.       


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