mundo

Caxemira: elementos para descifrar o conflito


Publicado em: 19 de maio de 2025

Mundo

Por Chantal Liegeois

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Mundo

Por Chantal Liegeois

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Compartilhe:

Ouça agora a Notícia:

Em 22 de abril de 2025, um ataque terrorista em Pahalgham, na região indiana da Caxemira, matou 26 turistas hindus.  O ataque foi reivindicado pelo Frente de Resistência (TRF), um grupo armado da região montanhosa do lado paquistanês que surgiu em 2019. A Índia acusou o Paquistão de estar por trás do atentado e o Paquistão negou. Porém, desde a noite de 6 para 7 de maio, a Índia e o Paquistão trocaram tiros de artilharia ao longo de sua fronteira disputada na Caxemira.  O exército indiano lançou a Operação Sindoor, cujos mísseis atingiram nove locais no Paquistão, matando 26 civis e ferindo cerca de 40 pessoas. As forças paquistanesas responderam abatendo três caças indianos e realizando ataques com drones. Esse foi o pior surto de violência entre os dois estados em duas décadas, levando a Índia e o Paquistão mais uma vez à beira da guerra. No entanto, em 10 de maio, após os apelos dos EUA e da China para a redução do conflito, a Índia e o Paquistão anunciaram um “cessar-fogo” imediato e completo, uma paz tensa que se mantém até hoje.

A imprensa internacional tem dado alguma cobertura a esse conflito.  Qual é a importância dele no contexto global atual?

As origens do conflito

A região de Caxemira está localizada no sul da Ásia, ao norte da Índia e do Paquistão e no extremo oeste da China, com uma área total de 222.236 quilômetros quadrados (semelhante à do estado de Roraima) e uma população total estimada atualmente a 17,5 milhões de pessoas. Ao norte, também faz fronteira com o Afeganistão.  Uma localização  estratégica, onde se juntam três potências nucleares: China, Paquistão e Índia.

Temos que voltar ao fim da época colônia do subcontinente indiano. O conflito da Caxemira tem suas raízes na Partição do Império Indiano Britânico que, em 1947, deu origem a dois estados soberanos, a Índia predominantemente hindu e o Paquistão muçulmano. Essa divisão jogou quase 15 milhões de pessoas nas estradas: muçulmanos em direção ao território paquistanês, hindus e sikhs na direção oposta. Os tumultos e massacres mataram um milhão de pessoas.

A questão da Caxemira logo se tornou um ponto de atrito entre os dois estados. O Paquistão reivindicou desse território de maioria muçulmana. Eclodiu a primeira guerra indo-paquistanesa. Em 1948, uma resolução da ONU previa um referendo sobre autodeterminação, mas isso não passou de letra morta devido à recusa da Índia.   Um cessar-fogo foi declarado em 1º de janeiro de 1949 ao longo de uma “linha de demarcação” (linha Redcliff) de 770 km que dividiu a Caxemira em duas partes: 37% para o Paquistão (Azad-Kashmir) e 63% para a Índia (o estado de Jammu e Caxemira).  Desde então, a Índia e o Paquistão reivindicam a soberania sobre todo o território. A China também acabou ocupando militarmente uma parte menor da região a partir da década de 1950.

Essa primeira guerra indo-paquistanesa foi seguida por outras três, em 1965, em 1971 (guerra de independência de Bangladesh com três milhões de mortos) e em 1998-99, na região de Kargil. Em 1989, houve uma insurgência paquistanesa que exigia a independência ou a anexação da Caxemira indiana ao Paquistão começou a lutar contra o exército indiano.

No século XXI, os atos de terrorismo substituíram as guerras. Em 1º de outubro de 2001, um ataque à Assembleia Regional da Caxemira Indiana em Srinagar matou 38 pessoas. Em 2008, uma série de ataques jihadistas matou 166 pessoas em Mumbai. A Índia culpou o Paquistão e interrompeu o processo de paz.

Em 2019, o governo ultranacionalista da Índia, liderado por Narendra Modi em seu terceiro mandato, buscando forçar a “hinduização” da região indiana de Caxemira, revogou o status de autonomia da província de Jammu-Caxemira, inscrita na Constituição da Índia (art.370 e 35A), que perdeu a capacidade de fazer suas próprias leis e tornou mais fácil para os não-caxemires comprarem terras. 500.000 soldados indianos foram enviados para a região, transformando a Caxemira indiana em um estado policial. Desde então, grupos separatistas armados continuaram com seus ataques esporádicos, como em abril de 2025 em Pahalgam.

Nos últimos 75 anos, dezenas de milhares de pessoas morreram nesse conflito, que é uma consequência do colonialismo britânico e ainda hoje combina interesses geoestratégicos, nacionalismo burguês e religião. Os 17 milhões de caxemires de ambos os lados da linha de demarcação nunca foram questionados sobre o que realmente querem: fazer parte da Índia, do Paquistão ou se tornar independentes. O referendo que lhes foi prometido nunca foi realizado. A região de Caxemira nunca foi autorizada a determinar o seu próprio destino. Mais uma vez, a espiral de violência tem sua origem na questão do território, objeto de cobiça entre potências regionais com interesses alheios aos povos que ali habitam e que apesar de tudo resistem.

Na encruzilhada de interesses geopolíticos

Atualmente, a Caxemira permanece balcanizada, dividida entre Índia, Paquistão e China, três potências regionais e nucleares que estão entre os cinco países mais populosos do mundo. Mesmo com uma trégua entre a Índia e o Paquistão, a tensão e o risco de guerra persistem E no meio deste quadro, os Estados Unidos tentam realinhar alianças para defender a sua hegemonia.

O Paquistão, entre a China e a Índia

O Paquistão é o quinto país mais populoso, com uma população de mais de 241,5 milhões (similar ao Brasil) e a segunda maior população muçulmana, em 2023.   No entanto, não pode competir com os dois gigantes que são a China e a Índia, sofre de sua inferioridade em termos de poder militar, força econômica, superfície e demografia.

O Paquistão é marcado por uma crise econômica cada vez mais profunda e por revoltas sociais e políticas em suas áreas periféricas (Caxemira, Baluchistão). O país enfrenta uma enorme dívida externa de US$ 123 bilhões e deve pagar US$ 78 bilhões até 2026. A economia paquistanesa sofre com déficits orçamentários e comerciais crônicos, baixa receita tributária e crescimento insuficiente das exportações. As reservas de moeda estrangeira mal cobrem alguns meses de importações. O país é altamente dependente dos empréstimos do FMI, principalmente para cobrir dívidas passadas e não para investir no desenvolvimento econômico.

A situação política geral apresenta um quadro sombrio, marcado pelo controle total do exército sobre o Estado e a sociedade. As eleições gerais de 2024 resultaram em um governo de coalizão de direita. Shehbaz Sharif, da Liga Muçulmana do Paquistão (PML-N), foi escolhido como primeiro-ministro. O exército é a instituição mais poderosa do Paquistão e exerce forte influência sobre a governança, a política externa e a segurança nacional.

Os grupos terroristas jihadistas, inicialmente tolerados em conflitos com a Índia, tornaram-se uma grande ameaça à segurança do Paquistão. Desde 2000, o país sofreu mais de 16.600 ataques terroristas, resultando em quase 68.000 mortes. A extrema direita no Paquistão assume a forma de grupos religiosos extremistas e islâmicos, especialmente o Tehrik-i-Taliban Pakistan (TTP), um grupo religioso de extrema direita com considerável influência social e política.

A crescente presença econômica da China através das rotas da seda que atravessam o país de norte a sul é uma fonte de preocupação para a Índia. Para além da concorrência económica que ela gera.  O conflito de Caxemira polariza essas rivalidades.

A identidade religiosa e o nacionalismoHistoricamente, conviveram na região várias dezenas de povos, etnias com línguas diferentes compartindo território. Por quase doze séculos, os muçulmanos coexistiram com os hindus e, mais tarde, com os sikhs. Houve muitos casos de culto conjunto de santos entre hindus e muçulmanos em partes da Índia pre-britânica e mesmo mais tarde, nos disse Tariq Ali, numa entrevista.  A defesa de um território unificado, do respeito à identidade cultural, e a liberdade de prática religiosa são alicerces fundamentais frente a opressão e exploração, por parte dos povos que resistem.

Em 1947, a identidade religiosa foi usada pelos britânicos e as classes dominantes como arma da Partição, dividendo seu império colonial em dois países: Índia e Paquistão. A “teoria das duas nações”, foi mantida ideologicamente para alimentar um nacionalismo burguês exacerbado. Para Vijay Prashad, “A classe dominante, tanto na Índia quanto no Paquistão, usa os sentimentos do povo da Caxemira como sua própria arma política. Usou-os para disciplinar suas próprias populações e para provocar seu vizinho”.

A arma da água

A Caxemira indiana é atravessada pelo longo rio Indo (que nasce no Tibete) e por vários de seus afluentes, que irrigam todo o território paquistanês, até sua foz no Mar de Omán. A agricultura paquistanesa, especialmente em Punjab, uma vasta planície fértil, depende em 80% dos recursos hídricos do rio Indo e de seus afluentes. Um tratado datado de 1960 garante o controle da bacia de seis rios e acesso equitativo para ambos os países. O documento concede a Índia o direito de usar os rios compartilhados para suas represas ou plantações, mas a proíbe de desviar rios ou alterar o volume de água a jusante.  Porém, a Índia anunciou neste 6 de maio de 2025 a suspensão do Tratado sobre as águas do Indo e está ameaçando “cortar a água” dos afluentes que irrigam o Paquistão. Em resposta, o Paquistão advertiu que qualquer tentativa de interromper o fluxo desses rios seria considerada um “ato de guerra”.

Conflitos internos

O Baluchistão é uma província pobre no sudoeste do Paquistão, que muitas vezes se rebela contra o governo central. Mas é também a maior região do Paquistão e tem enormes reservas de metais e até agora não viu benefícios reais para a população, dos contratos anunciados entre o Paquistão e a China. Há uma organização de guerrilha nacionalista, chamada Exército de Libertação do Baluchistão (ELB), conhecida e implantada na região. Com certa regularidade, as unidades da ELB atacam acampamentos militares e estações ferroviárias. O Paquistão acusa a Índia de financiá-los. Esse movimento político no Baluchistão é dirigido contra o controle autoritário e a dominação da elite do estado paquistanês sobre a população étnica balúchi.

A corrida armamentista

Tanto a Índia quanto o Paquistão são reconhecidos como potências nucleares, embora nenhum deles seja signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Em 1974, a Índia testou sua primeira arma atômica, e o Paquistão deu o mesmo passo duas décadas depois, quando os EUA precisaram de sua ajuda para combater os soviéticos no Afeganistão.  Hoje, o Paquistão e a Índia estão lado a lado em termos de arsenal nuclear, com cerca de 170 mísseis táticos cada (tão potente quanto a bomba de Hiroshima), de acordo com o SIPRI, o instituto sueco de referência em questões de conflito. Desde 2019, a Índia adquiriu 36 aeronaves francesas Rafale, e o Paquistão adquiriu J-10s chineses, que também são ultramodernos. A Índia comprou sistemas antiaéreos russos S-400 e o Paquistão, HQ-9s chineses. Neste contexto de escalada armamentista, qualquer crise nas fronteiras deixa a situação potencialmente explosiva.

No coração das tensões geopolíticas, as Novas Rotas da Seda

Desde 2013, a China lançou um ambicioso projeto de conexões e infraestruturas internacionais, chamado “Nova Rota da Seda” (RCI), abrangendo 68 nações (4,4 bilhões de pessoas e 40% do PIB mundial) para ligar a China à Europa e à África e posicionar-se como potência mundial.

Do ponto de vista econômico, “a Rota da seda procura conseguir mercados e incentivar a exportação de capitais excedentes no país, em várias áreas de maior densidade tecnológica em que a China possui know-how elevado (siderurgia, construção pesada, telecomunicações, trens de carga e de alta velocidade) e estabelecer padrões dominantes que significariam mercados cativos para as suas indústrias. Além disso, pretende investir parte de suas reservas em dólares em ativos mais rentáveis do que os títulos do Tesouro dos EUA e dar uma projeção internacional ao yuan como moeda forte para transações comerciais e financeiras. (…) Hoje China ocupa o segundo lugar como maior investidor direto internacional”, segundo o artigo de Waldo Mermelstein no portal de Esquerda online.

A iniciativa inclui diversos projetos de grande envergadura, entre quais o Corredor Econômico China-Paquistão (CECP) considerado pela China como o principal projeto de sua iniciativa global “Cinturão e Estrada”, com um investimento total de US$ 64 bilhões, , o maior influxo de investimento estrangeiro da história em 70 anos no Paquistão.  Atravessando todo o Paquistão, desde o norte (Caxemira) até o porto de Gwadar no Sul (Oceano Índico), esse corredor é considerado coluna vertebral das Novas Rutas da seda. Um projeto faraônico, em uma distância de mais de 2700 kms, com redes de autoestradas, ferrovias, fibra ótica, usinas elétricas a carvão, represas hidrelétricas e aeroportos construídos desde 2015, financiadas quase inteiramente pela China.

O Porto de Gwadar, é apresentado como a peça central, vital do projeto. Atualmente é o terceiro maior porto do Paquistão e desfruta de uma posição estratégica por estar localizado a 600 km do Estreito de Ormuz, por onde passam 40% do tráfego mundial de petróleo. Em 2015, o Paquistão entregou uma concessão de 40 anos à empresa estatal chinesa Overseas Port Holding Company (COPHC) para administrar o porto de Gwadar.  O corredor econômico é ante tudo um corredor geopolítico.
Perspectivas

O Paquistão, antíguo aliado de Estados Unidos na região até o fim da guerra de Afeganistão, logo fez uma mudança estratégica, optando por uma ampla aliança com a China, que lhe fornece apoio econômico e militar. Esse alinhamento coloca, de fato, o conflito do Cachemire no tabuleiro da disputa global pela hegemonia, entre Estados Unidos e a China.  Servirá essa nova aliança como contrapeso ao bloco geoestratégica formado pela Índia e os Estados Unidos na região? Ou servirá de pretexto para abrir outra guerra “por procuração”, esta vez em território do Caxemire paquistanês?

A ascensão do nacionalismo  hindu burguês na Índia, apoiada por discursos reacionários sobre a necessidade de recuperar o resto da Caxemira administrada pelo Paquistão devem ser combatidos com firmeza, com a unidade de todos os povos e etnias que historicamente conviveram nesses territórios, defender o direito do povo de Caxemira à autodeterminação e libertá-los da repressão tanto do estado indiano quanto do paquistanês.  Fomentar uma luta conjunta de trabalhadores, camponeses e estudantes contra o militarismo para impedir o avanço do fascismo e do imperialismo.

 


Contribua com a Esquerda Online

Faça a sua contribuição