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A Estética da Coragem


Publicado em: 14 de maio de 2025

Cultura

Pablo Henrique, de Belo Horizonte (MG)

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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O espaço da Escola Guignard, escola de artes plásticas da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), é mais do que um polo de formação em artes visuais: é uma instância viva da experimentação estética e política, um lugar onde o fazer artístico é inseparável da experiência histórica e social. Fundada sob a inspiração modernista de Alberto da Veiga Guignard, a escola carrega o peso e o privilégio de ser uma das instituições mais importantes na formação de artistas brasileiros contemporâneos, sempre marcada pela ousadia, pela liberdade criativa e pelo compromisso com a transformação social.

Foi neste solo fértil que o EncorAge Coletivo concebeu duas obras singulares no contexto da premiação XX Mostra interna que, que resultou na residência  artística de ocupação da Galeria Guignard” — um projeto que transforma a galeria em um grande ateliê coletivo, permitindo que artistas em formação experimentem processos criativos compartilhados e aprofundados. As obras, intituladas A luta continua e Por todas as vitórias, não são apenas manifestações isoladas: são fruto de uma longa trajetória de construção popular e coletiva. O fundo de cartazes que sustenta ambas foi realizado em seis ateliês populares, com a participação de estudantes da UEMG e da UFMG, em oficinas abertas à comunidade.

A luta continua apresenta uma fotografia retirada da greve em 2024, onde trabalhadores em educação enfrentavam o governo Zema em Minas Gerais. A mão erguida segura um crachá — uma votação em assembleia — que simboliza a resistência dos corpos presentes, a perseverança da luta política. É o gesto de quem não se rende à opressão. Já Por todas as vitórias figura uma jovem negra empunhando uma marreta, em pleno ato de destruição do “capitalismo”, num gesto de força, dignidade e construção de um novo mundo possível.

Essas imagens ressoam de maneira potente com a estética da totalidade proposta por Georg Lukács, que vê na obra de arte não uma simples reprodução da realidade imediata, mas a construção de uma imagem mediada e profunda da vida social, se afastando da individualidade fragmentada e se concentrando na compreensão do todo, da sociedade como um organismo vivo e complexo. Para Lukács, a grande arte é aquela que “revela a essência das relações humanas sob a aparência superficial dos fatos” (Lukács, Estética). O gesto da jovem negra não é apenas um gesto de destruição; é uma abertura para a construção de outro futuro, para a redenção histórica dos corpos oprimidos e para a refundação de um tempo novo.

Hegel, por sua vez, via a arte como o sensível elevado à Ideia, a expressão de verdades universais através de formas concretas. Como ele afirma na Estética: “A verdadeira obra de arte é aquela que sabe carregar dentro de si o espírito do seu povo.” Nesse sentido, as obras do EncorAge Coletivo incorporam o espírito de uma juventude que recusa aceitar o mundo tal como é dado, clamando pela construção de um tempo onde a vida esteja acima do lucro, da exploração e da opressão.

O fundo das obras — composto por cartazes vibrantes, em vermelho, amarelo e preto — remete diretamente à estética da luta popular. Slogans como “Futuro”, “Justiça por Clara Maria”, “Fim da escala 6×1 já!”, “Vidas trans importam” e “شجاعة” (coragem em árabe) surgem como fragmentos de um grande grito coletivo. Essa multiplicidade de vozes e demandas ecoa a concepção de arte como práxis revolucionária, como discutido por Herbert Marcuse: “A arte tem o poder de antecipar uma realidade diferente, não por meio da descrição factual, mas ao romper a ordem sensível do existente.” (Marcuse, A dimensão estética).

A escolha de trabalhar em ateliês populares também é uma decisão estética e política. Recusar o ateliê individualizado em favor da criação coletiva é uma forma de tensionar as estruturas tradicionais da produção artística, democratizando os processos criativos. É, também, a prática viva do que Paulo Freire defendia como “educação libertadora”, aquela que constrói conhecimento a partir da experiência comum e da luta concreta dos sujeitos.

Nas imagens, há também uma articulação entre memória e futuro. A fotografia do crachá carrega as marcas da greve, do embate político real, e por isso inscreve na obra não apenas uma imagem, mas uma história em movimento. A jovem negra com a marreta, por outro lado, projeta o que ainda está por vir. Como disse Walter Benjamin, “cada segundo é a porta estreita pela qual pode adentrar o Messias” (Benjamin, Teses sobre o conceito de história). A arte aqui atua como essa porta estreita, essa fissura no presente que aponta para o impossível tornado possível.

No nível formal, as obras utilizam procedimentos de montagem e justaposição, remetendo à tradição construtivista, e às práticas contemporâneas de colagem urbana. No entanto, o fazem com uma consciência aguda de contexto: não se trata de apropriação vazia, mas de uma imersão radical nas condições históricas locais, nos conflitos concretos que atravessam a vida brasileira hoje.

O gesto da marreta contra o “capitalismo” evoca diretamente a crítica marxista, mas também carrega ressonâncias existenciais profundas. Como escreve Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas: “Para o negro, a desalienação só pode ser alcançada pelo confronto direto com as estruturas que o oprimem.” O ato de destruir simbolicamente o capitalismo é, portanto, também o ato de reconstruir o próprio ser, de afirmar a possibilidade de uma existência não mediada pela lógica da mercadoria.

Importante notar que a juventude negra, representada na obra Por todas as vitórias, assume aqui não uma posição passiva ou subalterna, mas sim ativa, insurgente, transformadora. Trata-se de uma inversão do olhar colonial, que durante séculos tentou fixar os corpos negros na posição de objetos. A jovem com a marreta é sujeito da história, autora de seu destino.

A relação entre palavra e imagem, tão importante nas duas obras, sublinha ainda a tensão entre discurso e ação. Os cartazes gritam palavras de ordem, nomes de mártires (Clara Maria e Ngange Mbaye), reivindicações; mas é no gesto corporal — no punho erguido, na marreta em movimento — que a palavra encontra sua efetividade, sua carne. Como dizia Bertolt Brecht: “A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para moldá-lo.” (Brecht, Escritos sobre teatro).

Assim, A luta continua e Por todas as vitórias são mais do que objetos estéticos: são instrumentos de luta, peças de um processo mais amplo de transformação. Elas nos lembram que, como dizia Gramsci, “a crise consiste justamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer” (Gramsci, Cadernos do cárcere). As obras são a expressão sensível dessa tensão, dessa dor criadora, desse tempo intermediário em que resistimos, sonhamos e lutamos.

Por fim, não é possível deixar de mencionar a potência simbólica de instalar essas imagens no espaço público da Escola Guignard. A galeria ocupada e a entrada da Escola, não são apenas lugares de contemplação: torna-se campos de batalhas estética, territórios de disputa de sentidos, arena onde a arte se confunde com a vida, com o trabalho, com o amor, com o desejo de um mundo novo. 

Hegel dizia que, em certas obras, o espírito absoluto se manifesta em sua liberdade mais intensa. Lukács acrescenta: não como utopia alienada, mas como prática histórica enraizada na luta de classes. Em tempos de crise — crise da educação, da cultura, da vida — essas obras não apenas denunciam; elas anunciam. Anunciam que a história não acabou. Que as vítimas do sistema erguem suas vozes e seus corpos não apenas para protestar, mas para criar mundos possíveis.

O belo, aqui, não é o decorativo. O belo é o que emociona e convoca. É o que exige do espectador mais do que contemplação: exige posicionamento, exige escolha. Diante dessas imagens, não há neutralidade possível. Ou se é cúmplice do velho mundo, ou se é parte da força que o arranca pela raiz.

O EncorAge Coletivo, ao organizar esse processo de criação com dezenas de mãos, corpos e histórias, recoloca no centro da arte o que talvez tenha sido, desde sempre, sua razão de ser: a capacidade de imaginar, vislumbrar e construir aquilo que ainda não existe, mas que precisa existir, o reino da liberdade, mas para ele nascer precisamos do alicerce de toda transformação radical: Coragem

Pablo Henrique é Bacharel em artes plásticas e operario do metrô de Belo Horizonte.

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