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A viagem de Lula à Rússia e a comemoração do Dia da Vitória


Publicado em: 12 de maio de 2025

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Coluna Gabriel Santos

Gabriel Santos

Gabriel Santos é nascido no nordeste brasileiro. Alagoano, mora em Porto Alegre. Militante do movimento negro e popular. Vascaíno e filho de Oxóssi

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Gabriel Santos é nascido no nordeste brasileiro. Alagoano, mora em Porto Alegre. Militante do movimento negro e popular. Vascaíno e filho de Oxóssi

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Neste dia 9 de maio, se comemorou os 80 anos da vitória soviética contra o nazifascismo, com a rendição incondicional do Terceiro Reich (a Alemanha Nazista) às Forças Aliadas na Segunda Guerra Mundial.

Diversos líderes e governantes de todo mundo, mas principalmente da África, se reuniram em Moscou para as celebrações. Aqui, nesse texto, não examinaremos, e não entraremos no mérito se a ida de Lula para esta comemoração foi certa ou errada. Mas sim, colocamos o que significou estes 80 anos da vitória soviética e como isso repercutiu.

No Brasil, a viagem da comitiva brasileira para as comemorações do Dia da Vitória, liderada pelo Presidente Lula e que continha ministros do Estado, o presidente do Congresso Nacional, embaixadores e empresários, foi tratada praticamente como um crime pela imprensa nacional.

O Estadão, jornal famoso por sua relação com a escravização negra, no auge de sua irrelevância jornalística afirmou que a visita a Moscou seria ruim para os “direitos humanos”. Já na Folha de São Paulo, que carrega fama por atos mais recentes, como a cooperação com a ditadura militar, foi dito que Lula teria “ódio pelos Estados Unidos”, se “afastava das democracias liberais”, e se aproximava de “ditadores e autocratas”.

As opiniões desses dois jornais são úteis como exemplo porque refletem uma certa ideologia. Aqui usamos ideologia como a expressão de uma visão de mundo. É pouco importante se essa visão é verdadeira ou falsa, se a materialidade a confirma ou não, o sujeito que aplica essa ideologia tem a certeza que o mundo é dessa forma e que ele, diferente dos demais, não é ideologizado.

Essa ideologia que aparece no Estadão, na Folha, no grupo Globo, e etc, aparece também em grande parte dos cursos de Ciências Sociais de nosso país, e infelizmente cada vez mais dentro de organizações da esquerda brasileira.

Essa ideologia acredita que no campo das relações internacionais o principal conflito e a diferenciação entre os países é a oposição entre governos democráticos X governos autoritários. De um lado temos os países do bem, os defensores da democracia liberal, do outro, os países do mal, governados por ditadores, tiranos, autocratas. Assim, o campo geopolítico fica dividido como se fosse um filme da Marvel, heróis contra vilões.

Os defensores dessa visão de mundo ignoram, por hipocrisia ou burrice, que essa suas ideologias também tem um objetivo político e foi criada por alguém. Alguém precisou traçar a linha divisória entre o que são as democracias liberais e quem são seus inimigos autoritários. E se alguém o faz, o faz por ter autoridade, capacidade de Poder e hegemonia para isso, assim como algum interesse por trás dessa ação.

A classificação de formas de organização social é algo que surge na modernidade, junto da expansão europeia pelo planeta com a colonização. Os europeus buscaram apontar como inferiores, atrasadas, bárbaras ou inexistentes, formas de organização social que tiveram contato ao invadirem a África e a América. Esse suposto atraso social, cultural e científico, se tornou uma das justificativas para o domínio colonial.

A divisão de países em democracias contra o totalitarismo é uma ideia bem recente na história. Surge nos Estados Unidos no século XX, mas se expressa ao máximo com o fim da União Soviética e o assim dito triunfo dos valores da civilização liberal.

São desenvolvidos critérios para análise e classificação como regimes democráticos liberais ou não. O problema é que esta lógica é binária. Ignora as contradições de forma consciente. Se prende na aparência e ignora o conteúdo destes regimes. Se fossemos levar a sério as análises e categorização que são propostas, praticamente nenhum país do mundo poderia ser classificado como democracias.

O marxismo, por sua vez, não busca fazer como a ciência política tradicional e esconder o conteúdo de conflito e contradição dos regimes políticos. Já que eles surgem pela forma que a sociedade se organiza. Na nossa visão todo regime político é subordinado no fundo (o que não quer dizer que não possa haver contradições e conflitos) à questão do Estado, e o Estado sempre terá um caráter de classe.

Desse modo, todo regime democrático vai trazer seu caráter de classe, e portanto traz em si sua contradição. Ele pode ser democrático, mas ao mesmo tempo vai conservar um aspecto de ditadura e repressão para o grupo social que não tem o Poder. Ou seja, toda democracia de classe é também uma ditadura de classe.

O que para o marxismo determina uma sociedade mais ou menos democrática é o grau de liberdade política que a classe trabalhadora exerce. No campo internacional, a dicotomia democracia x autoritarismo, se revela falsa. A principal contradição no cenário político entre os países é a divisão do mundo entre Estados do centro x Estados da periferia.

O que a ideologia liberal vai classificar como regimes democráticos ou não, em nada tem haver com funcionamento do parlamento, divisão dos poderes, formas do sistema eleitoral (absolutamente diferentes nos EUA, Alemanha e Brasil). Na prática, a classificação tem haver com a construção e consolidação, ou não dentro dessa sociedade, de valores e tradições criadas pelo Ocidente.

Portanto, o que nessa visão define de fato os países do mundo como democracias ou não é: 1) se esses países fazem parte daquilo que foi constituído historicamente como bloco Ocidental. 2) Caso não seja, se esse país vai passar a reivindicar a tradição e valores construídos por esse Ocidente. 3) em último caso, se esse país aceita se submeter aos interesses econômico-políticos das principais potências ocidentais, sem confrontá-las.

É possível vermos países como as monarquias do Golfo, onde se tem alto grau de repressão a opositores, nenhuma participação popular, regimes monárquico com influência religiosa, porém estes governos não são colocados como países do “eixo do mal”. Não se fazem campanhas midiáticas pedindo democracia para suas populações. A ausência de eleições e atos de tortura não são pautas dos telejornais. Seus governantes são chamados de reis e príncipes, não de ditadores ou tiranos.

A ironia e hipocrisia do mundo Ocidental se revela quando a linha divisória entre democracia e autoritarismo, não tem haver com a forma de regimes e muito menos com os governos, mas sim ao quanto os países se abrem para os interesses das potências ocidentais ou não. Aqueles que aceitam se subjugar, são países aliados, e aqueles que minimamente confrontam essa lógica, passam a ser uma ameaça para a segurança global. Se tornam a reencarnação do mal e precisam ser depostos. Viram autoritários.

A viagem de Lula à Rússia para o Dia da Vitória, atingiu nossa burguesia e nossa imprensa liberal em seu objeto do desejo. Na psicanálise a ideia do desejo é central. Mais que isso, Lacan compreende o desejo como uma falta, mas não a falta de algo, e sim como uma força inconsciente que constantemente busca algo inatingível. Aquilo que o sujeito busca para se sentir completo e preencher essa falta é o objeto do desejo, que nunca pode ser alcançado em sua plenitude. Assim, o sujeito é definido pela sua relação com esse vazio, com essa falta e sua busca para preenchê-la.

Podemos dizer que nossa burguesia e nossa mídia liberal tem essa mesma relação com seu grande desejo, ser parte do mundo Ocidental. Na impossibilidade de abandonar esse solo e os Condenados da Terra que aqui vivem, buscam alcançar minimamente esse desejo agindo como se fossem aquilo que desejam ser. Assim, assumem para si o discurso de valores ocidentais, da democracia como valor universal, e a defesa desta e da honra, da moral, e da brancura do Ocidente contra os governos totalitários reunidos essa semana em Moscou.

O Ocidente, esse grande bloco, é vítima de ataques dos povos atrasados, de seus ditadores bárbaros e suas cruzadas anti civilizatórias, e por isso precisa se proteger e se fortalecer contra os inimigos. Mas afinal, esses inimigos fazem parte do fardo civilizatório que a civilização ocidental carrega por ter expandido seu domínio sob o globo terrestre com a colonização e expansão do modo de produção capitalista, tendo o dever de como um farol iluminar com sua cultura eurocêntrica, sua filosofia judaico-cristã, seu sistema democrático liberal, outros povos e nações atrasados.

É nisso que acreditam nossa mídia liberal e nossa burguesia. E em nome do eurocentrismo e da brancura assinam uma irmandade em defesa do Ocidente, achando que dessa forma automaticamente entra pelas portas da civilização ocidental.

Portanto, para eles, o Presidente Lula cometeu sim um crime. Deu as costas para a Europa e se juntou, sentou à mesa, jantou e fez negócios com aqueles que são críticos das potências ocidentais.

Ao colocar veto aos países membros, e ameaçar punir os que buscam entrar no bloco e foram para o Dia da Vitória. A União Europeia avisou: aqueles que pegaram avião para Moscou não serão bem-vindos em Bruxelas.

Ao mesmo tempo que faz isto, a União Europeia segue em seu apoio incondicional a Zelensky. Este, apesar de ter suprimido as eleições, proibido partidos de oposição, transformado nazistas da segunda guerra em herói nacional, não é chamado de ditador. A União Europeia segue também enviando armas para o exército ucraniano, realizando o desejo da esquerda social democrata europeia e de alguns grupos trotskistas. Exército este que conta integrados na sua fileira com o batalhão de Azov. Um conhecido grupo paramilitar ucraniano que reivindica o nazismo e atua como tal. Utilizando saudações, bandeiras, símbolos nazistas, além de perseguir e assassinar sindicalistas, comunistas e membros de minorias étnicas.

Este fato, para alguns uma coincidência, para outros tema menor, apenas comprova 80 anos depois da derrota do nazismo que Aimé Césaire tinha razão. O problema para a Europa nunca foi a existência de Hitler. Mas sim, Hitler querer fazer com a Europa o que os europeus fizeram com o resto do mundo.

O tempo não deu apenas razão a Césaire, mas, infelizmente, ainda o mantém atual. É a civilização ocidental que não apenas se cala diante do genocidio cometido pelo Estado sionista na Palestina, mas exerce apoio direto ou indireto a essa limpeza étnica.

Aqui, não se trata de um julgamento moral, mas de uma dinâmica histórica: essa grande civilização Ocidental se realiza por meio da barbárie.

Foi a Europa e a civilização que ela ergue a fogo e ferro, que saqueou continentes, dizimou cidades, torturou, e assassinou povo inteiros. O mundo que surge, em nome de Cristo, da Ciência, é da Civilização, é a imagem e semelhança de seus criadores: colonizadores. A colonização, o imperialismo, são a parteira do novo mundo, o mundo dominado pela lógica do Capital. Um não existe sem o outro.

Com a crise de acumulação de capital, e perda de hegemonia da potência imperialista que até então reinava sozinha, a civilização ocidental convida novamente para a festa sua mais cruel criação, seu filho mal visto, o fascismo. É o fascismo que surge como resposta da burguesia de diversos países para o aumento do lucro e manutenção de suas posições na ordem imperialista.

Guardada as devidas diferenças e particularidades históricas, cem anos atrás o cenário era de crise do capital e de crise de hegemonia no sistema mundo. O império britânico perdia força, e via os Estados Unidos se consolidarem como potência principal no cenário internacional. O fascismo histórico, além de uma resposta burguesa à crise econômica-social, ao crescimento das ideias socialistas, foi também um meio dos países disputarem posições na ordem interimperialista.

Diferente do século passado, onde o fascismo histórico surgiu e tomou forma nos países que desafiavam as principais potências e buscavam o topo do sistema. Hoje, o fascismo tem caráter quase universal. Ele se apresenta de formas distintas na periferia do sistema, e em seus países centrais, mas principalmente naqueles que estão no controle, nos países imperialistas mais poderosos. O fascismo não chega com aqueles que estão desafiando a ordem imperialista porque querem mais colônias para si, ele agora é arma daqueles que querem a manutenção da ordem do Império, é a violência bruta para não perder as colônias já conquistadas.

Agora, o fascismo é a cartada do mundo Ocidental em decadência. A atual crise do imperialismo é a crise da civilização ocidental. O fascismo é filho do Ocidente, é sua característica pura, sua essência, sem maquiagem, desnudado.

A história da civilização ocidental é a história dos crimes ocidentais. Da pilhagem, dos roubos, da escravatura, das guerras mundiais. É a história da colonização.

Lembrar o Dia da Vitória, como feito por diversos chefes de Estado na Rússia, é também uma disputa, mas não uma “disputa de narrativas”, como afirmam os jornais liberais, mas sim uma disputa contra a falsificação do passado. É uma lembrança que sem o Exército Vermelho e a ação de milhões de mulheres e homens que agiam sob a bandeira da foice e martelo, o nazifascismo teria conquistado a Europa, provavelmente vencido a guerra e o mundo seria diferente.

É também uma afirmação, nós lembramos daquilo que o Ocidente insiste em esquecer. Lembramos quem venceu Hitler, lembramos também quem criou Hitler, e em quem o líder nazista se inspirava: no processo de segregacao e apartheid racial que existia nos EUA, na “conquista do Oeste” e assassinato de povos originários do mesmo país, colonização belga no Congo, nos campos de concentração franceses na Argelia. Hitler é o filho da civilização Ocidental, é a Europa Se olhando no espelho.

A civilização Ocidental quer esquecer os fatos. Quer mudar o passado. Quer fingir que não tem responsabilidade pelo presente. Ela não consegue responder como uma coisa tão nefasta como o nazifascismo surge, cria, e se desenvolve no seio de um regime como o capitalismo ocidental, o mais perfeito dos mundos? Como pode ter sido o maior dos males, o socialismo, aquele responsável pelos maiores atos de heroísmo da história moderna?

Não consegue lidar com o regime político antítese do capitalismo ocidental, e também o mais odiado, demonizado e combatido por esse mesmo capitalismo, o regime que supostamente ameaça a civilização e merecia ser destruído, sendo aquele que derrotou a ameaça nazista, fruto e criação desse mundo Ocidental.

A União Soviética mobilizou 34 milhões de soldados no Exército Vermelho, quase 3 vezes mais combatentes do que as outras 25 nações aliadas juntas. Os soviéticos foram responsáveis por 75% de baixas nazistas na guerra. E o país teve mais de 26 milhões de pessoas mortas no conflito, 14% de sua população.

As comemoração no Dia da Vitória lembram a heroica luta do povo soviético, as ações do Exército Vermelho, e que foi o socialismo que venceu o nazifascismo. Porém, mais do que o passado, no mundo em crise que vivemos, elas falam sobre o presente. Falam sobre a hipocrisia Ocidental que tenta reescrever a história, enquanto acoberta um genocidio televisionado na Palestina e normaliza o fascismo do século XXI.

Fala também sobre o futuro, diante do crescimento da corrida armamentista, da emergência climática, do fortalecimento de ideias de extrema direita e fascistas, da crise do imperialismo, e da decadência da civilização ocidental, é necessário pensar alternativas e possibilidades.

Por fim, enquanto um colunista da Folha de São Paulo diz em tom de ironia e desprezo sobre os que estavam presentes em Moscou, “foram convidados países que nem existiam quando a guerra aconteceu”, em referência aos países africanos. Nós lembramos que no mesmo dia em que foi derrotado o nazifascismo, a democrática França foi responsável pelo Massacre de Sétif e Guelma na Argélia, onde mais de 45 mil argelinos foram brutalmente assassinados em nome do colonialismo e da civilização ocidental.

É, como afirmou Aimé Césaire, a Europa e o Ocidente, realmente são indefensáveis.

 

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