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Carta N°2 sobre conjuntura: a carestia


Publicado em: 9 de maio de 2025

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Coluna Fábio José de Queiroz

Fábio José de Queiroz

Cearense, marxista, graduado em história, mestre e doutor em sociologia, professor associado da URCA (Universidade Regional do Cariri). Há mais de 40 anos milita sob a bandeira do trotskismo. É militante da Resistência, corrente interna do Psol. É autor, entre outros livros, de "1964: O dezoito de brumário da burguesia brasileira" (2015)

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Coluna Fábio José de Queiroz

Fábio José de Queiroz

Cearense, marxista, graduado em história, mestre e doutor em sociologia, professor associado da URCA (Universidade Regional do Cariri). Há mais de 40 anos milita sob a bandeira do trotskismo. É militante da Resistência, corrente interna do Psol. É autor, entre outros livros, de "1964: O dezoito de brumário da burguesia brasileira" (2015)

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Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Ouça agora a Notícia:

Nesta segunda carta, abordo o tema da carestia, aproveitando que o assunto diminuiu a sua circulação na mídia em geral, o que permite uma reflexão mais cuidadosa. Exposta a tese fundamental da carta, destaco que ela se divide em três pequenas partes: o legado do golpe (de Temer a Bolsonaro), os limites da resposta do governo Lula ao problema e, por fim, a apresentação de possíveis soluções.

O legado do golpe

Na esteira do golpe de 2016, que derrubou o governo de Dilma Rousseff, a internacionalização dos preços no Brasil deu um salto de vara que, entre outras coisas, liberou os preços dos combustíveis como gasolina e diesel (além do gás de cozinha), problema que ainda hoje afeta a população brasileira, embora o governo Lula tenha se desvencilhado do Preço de Paridade de Importação (PPI). 

Constata-se que essa questão não será resolvida sem recuperar a Petrobrás como estatal estratégica (conduta que deve orientar as ações das estatais de um modo geral), pondo um fim, inclusive, ao processo de privatização-financeirização da empresa, posta a serviço da sanha incontrolável dos especuladores por mais dividendos.

Como se sabe, o impacto do preço alto dos combustíveis e do GLP na economia geral do país é descomunal, provocando a elevação do custo de uma infinidade de produtos, tornando um inferno a vida do brasileiro comum.

Compare-se agora esse fenômeno articulado ao aumento do preço de alimentos que constituem parte inseparável do cotidiano das pessoas, e, decerto, esse inferno excede, em muito, as fantasias de Dante Alighieri, lembrando aqui o velho Marx. 

Nesse caso, a discussão exige um recuo no tempo. No caso dos produtos agrícolas, como no caso dos derivados do petróleo, os preços “se ajustam”, cada vez mais, às condições do mercado global. Nesse caso, também, os capitalistas não levam em conta nem as necessidades, sequer as particularidades, do mercado brasileiro.

A verdade é que, a pretexto de reestruturar a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), Jair Bolsonaro encerrou as atividades de 27 unidades do conjunto de armazéns que formam a estrutura material da companhia, o que trouxe prejuízos para agricultura familiar e, sobretudo, para os estratos mais socialmente desprovidos da população nacional. Em situação exatamente inversa, o governo do inelegível disponibilizou linhas de financiamento para o agronegócio cerealista construir ou expandir armazéns privados.

Antes de seguir, porém, cabe uma observação. A CONAB existe desde o começo da década de 1990 e, sem dúvidas, é a mais importante ferramenta política do Estado com relação à agricultura familiar. Logo, não surpreende como a extrema-direita, em seu ultraliberalismo, adote, no que se refere a essa companhia, uma atitude drasticamente destrutiva. Em suma, os 22 armazéns fechados e os outros 64 desprovidos de manutenção dão uma ideia exata do caráter antipopular e antioperário que marcou o governo liderado pelo golpista Bolsonaro.

Assim, em lugar da falsa história decantada pelos bolsonaristas, o que se viu foi o governo da extrema-direita zerar os estoques públicos de arroz, exatamente no ano da eleição presidencial, 2022. Aqui, não custa lembrar, no governo Dilma, as reservas de arroz eram da ordem de 1 milhão de toneladas. Por seu turno, o inelegível reduziu em 500 mil toneladas a capacidade de estocagem da CONAB (que, aliás, tem atualmente uma restrita capacidade de armazenar apenas 1,6 milhão de toneladas) e, como já citado, zerou o estoque de arroz. Eis o resumo da ópera.

Como o governo Lula responde ao tema da carestia?

Toda essa discussão remete o leitor a um assunto estratégico para qualquer país: segurança (ou soberania) alimentar. Nesse sentido, é necessário frisar que, em meados de 2023, o governo Lula retornou a política de estoque público de alimentos. Como refutação objetiva das relações econômicas próprias à ultradireita, o governo de Lula da Silva adquiriu 500 mil toneladas de milho com objetivo anunciado de assegurar preço mínimo para o produto e salvaguardar a renda do agricultor. Aqui é preciso sublinhar o impacto do preço do milho, que pode incidir sobre itens que compõem “a mistura” da maioria da população: frango, ovo e carne suína.

Parece não haver necessidade de comentar esse assunto para além do que já foi exposto. Em contrapartida, há de se indagar: Como abordar questões como o armazenamento de feijão ou a estocagem de arroz? No caso do arroz, o governo alega a contradição entre a necessidade de estocar e o alto preço do produto na atual conjuntura.

Nessa ótica, quando pretende o governo começar a armazenar arroz nas unidades da CONAB? A necessidade de formar estoques é nítida, até porque a carestia se tornou o centro de gravidade da economia popular. Os trabalhadores que ganham até dois salários-mínimos gastam mais da metade do ordenado com alimentos. A fome ameaça bater na porta de uns e já bate na porta de outros. No curto prazo, autorizar a importação de arroz soa apenas como uma admissão da ausência de prudência prévia. Ademais, a importação de produtos, seja ele ou arroz ou não, é sempre algo emergencial, e nem deveria existir.

Nesse quadro, no momento em que escrevo esta segunda carta, não há estoque de arroz, de feijão, de trigo, de café etc. Ou seja: não há reservas para garantir abastecimento e regular os preços de produtos que constituem a zona de costumes do sistema alimentar histórico do(a) brasileiro(a).

Na questão que interessa aos que ganham menos, o fato é que os supermercados seguem majorando os preços amplamente. Desse modo, e ao lado de tudo que anotei há pouco, a inflação dos alimentos se articula à falta de espaço para estocar alimentos, constituindo  uma ameaça à soberania alimentar do povo brasileiro, que não consegue acompanhar a variação ensandecida dos preços. 

A julgar pelos dados da economia e pelo desespero do trabalhador e da trabalhadora dentro do supermercado e no meio da feira, o trabalho só perde, ao passo que o capital não se cansa de se valorizar. Nem a iniciativa de aliviar o ônus fiscal da cesta básica tem sido suficiente para resolver o problema. Longe disso.

Que fazer?

Nos limites de uma carta premeditadamente sucinta, não há como entrar em detalhes, restando trabalhar com aquilo que julgo substancial para elucidação do debate.

Os dados expostos são particularmente importantes não apenas para ressaltar a natureza repugnante do golpe de 2016, bem como dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que, inapelavelmente, abriram caminho para essa situação na qual o Brasil se encontra, carente de soberania alimentar.

Mas esses dados são também importantes para destacar que um governo de reformas mínimas, quase ínfimas, mostra-se aquém das necessidades da ampla massa que o elegeu e nele confiou para buscar as possíveis soluções para as questões mais cruciais que atingem a maior parte da população.

A situação exige do governo Lula uma mudança de rumo, o que implica enfrentar os radicais do mercado com política social, com política de Estado, com ampla formação de estoques públicos, reforma agrária, crédito barato para agricultura familiar, deixando para trás a triste ideia de que os homens do agronegócio são heróis nacionais. 

Nesse domínio, as reformas dos armazéns não podem ser feitas a passos hesitantes. Elas precisam ser tratadas como prioridade. Do mesmo modo, a estocagem de produtos básicos e a garantia de preços acessíveis aos produtos da cesta básica. Para que esse processo avance, com condições de armazenagem, preços nacionalizados (o que reclama a reestatização do Banco Central e a defesa do país frente a avalanche especulativa) e, no final de tudo, a soberania alimentar, é preciso renunciar ao arcabouço fiscal, pois só assim as políticas sociais deixarão de aparecer aos olhos das massas como mera pintura de paredes arruinadas, enquanto os super-ricos dançam rock and roll na Flórida.

 


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