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Paquistão e Índia: à beira da guerra?

Para a maioria dos caxemires, a melhor solução seria um Estado autônomo unificado com as suas necessidades de segurança garantidas pelo Paquistão e pela Índia. As alternativas são inatingíveis ou piores.


Publicado em: 7 de maio de 2025

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Tariq Ali, do portal SideCar

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Foto: Farroq Khan/EPA/Lusa

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A Índia e o Paquistão preparam-se para a guerra. O casus belli é, mais uma vez, a ocupação de Caxemira. O controle desta região disputada é, desde 1947, o principal obstáculo à normalização das relações entre os dois Estados. Em 21 de abril, um grupo de militantes de Caxemira atacou e matou 26 turistas que desfrutavam da beleza dos prados floridos, dos riachos cristalinos e das montanhas cobertas de neve de Pahalgam; a responsabilidade pelo ataque foi reivindicada e depois rapidamente desmentida por uma organização pouco conhecida chamada “Frente de Resistência”. Foi uma afronta particular para Narendra Modi (cujo historial inclui ter presidido, enquanto Ministro-Chefe, à mortandade de cerca de 2.000 civis no massacre de Gujarat em 2002, e ser desde há muito tempo um defensor dos pogroms anti-muçulmanos). Nacionalista hindu de extrema-direita, atualmente no seu terceiro mandato como primeiro-ministro da Índia, Modi tinha declarado anteriormente que já não existia qualquer problema grave em Caxemira. A sua solução final – revogar o estatuto de autonomia de Caxemira em 2019 – tinha sido bem sucedida.

Nada justifica o massacre dos turistas de Pahalgam e muito poucos muçulmanos de Caxemira ou da Índia apoiariam tais ações. Mas é necessário um contexto histórico para compreender a situação geral na província. Até Israel tem um Ha’aretz. A Índia não tem. Caxemira continua a ser uma questão intocável. Esta província de maioria muçulmana nunca foi autorizada a determinar o seu próprio destino, como prometido pelos líderes do Congresso aquando da independência. Em vez disso, foi dividida entre as novas repúblicas da Índia e do Paquistão, após uma breve guerra em que o comandante britânico do exército paquistanês se recusou a concordar com a sua utilização, deixando uma força desorganizada a combater as tropas regulares da Índia. O famoso pacifista, Mahatma Gandhi, abençoou a invasão indiana. Os artigos 370º e 35º-A da Constituição indiana foram concebidos para garantir o estatuto especial de Caxemira, nomeadamente negando aos não caxemirenses o direito de comprar propriedades e de aí se estabelecerem. Esta medida foi combinada com uma repressão brutal de quaisquer sinais de descontentamento, transformando Caxemira num Estado policial com unidades militares nunca distantes. Os assassínios e as violações eram frequentes. Foram descobertas valas comuns.

Cidadãos indianos corajosos (Arundhati Roy, Pankaj Mishra e outros) expuseram incansavelmente estes crimes. Angana Chatterji citou numerosos exemplos descobertos no decurso do seu trabalho de campo entre 2006 e 2011:

Muitos foram forçados a testemunhar a violação de mulheres e raparigas da família. Uma mãe que terá sido obrigada a assistir à violação da sua filha por pessoal do exército pediu a libertação da filha. Eles recusaram. Ela então disse que não podia assistir e pediu para ser mandada para fora da sala ou então ser morta. O soldado encostou-lhe uma arma à testa, afirmando que iria satisfazer o seu desejo e matou-a a tiro antes de violarem a sua filha.

Isto não teria sido ilegal. A Lei das Forças Armadas (Poderes Especiais) de 1958, , confirmada pelo Supremo Tribunal indiano, concede impunidade aos defensores uniformizados do Estado Central em “áreas perturbadas”.

A estratégia de Modi em 2019 era inundar Caxemira com tropas indianas, impondo confinamentos, prendendo líderes locais e jornalistas e incutindo terror suficiente na população para garantir que não haveria protestos que pudessem suscitar objeções das potências ocidentais. O objetivo era transformar o Vale no centro de produção de lacticínios de todo o país. A repressão parecia ter funcionado – até agora.

O Governo indiano está convencido de que os assassínios foram orquestrados pelo exército paquistanês. Até à data não foram apresentadas provas, mas a acusação é mais plausível do que a resposta paquistanesa de que se tratou de uma operação de bandeira falsa. Para aumentar a confusão, em 24 de abril, o Ministro da Defesa paquistanês, Khwaja Asif, confirmou na televisão britânica que o Paquistão tinha uma longa história de treino e financiamento de tais organizações terroristas, afirmando: “Há cerca de três décadas que fazemos este trabalho sujo para os Estados Unidos”. Alguns dias mais tarde, Asif previu também uma “excursão” indiana ao Paquistão, tendo posteriormente retirado a sua observação.

Políticos indianos de todos os quadrantes estão a apelar à guerra. Shashi Tharoor, membro do Partido do Congresso e antigo alto funcionário da ONU, declarou “Sim, será derramado sangue, mas mais do deles do que do nosso”. A disposição popular é a favor de uma guerra de vingança curta e certeira. O genocídio de Israel em Gaza tem sido referido com aprovação, mas é mais provável que se adote outro modelo. Depois de Israel ter bombardeado a embaixada iraniana em Damasco, em abril de 2024, a CIA apressou-se a organizar uma resposta cuidadosamente controlada por parte do Irão, com as defesas aéreas americanas, francesas, britânicas e jordanas na região preparadas para abater os drones e mísseis iranianos que se aproximavam.

O Exército e a Força Aérea indianos estão atualmente empenhados em planear um ataque, mas este poderá ser do tipo iraniano. Generais reformados estão a gabar-se das reservas de drones da Índia. A medida mais extrema que está a ser discutida é ocupar a Caxemira controlada pelo Paquistão e uni-la à sua irmã ocupada pela Índia. As ameaças de cortar o abastecimento de água ao Paquistão são pura fanfarronice e a resposta de Bilawal Bhutto – “Se a água não correr, o vosso sangue correrá” – foi imatura e estúpida, mesmo para um antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros paquistanês.

A imprensa indiana alega que um discurso público inflamado dirigido a representantes da diáspora paquistanesa em 17 de abril pelo Chefe do Exército do país, General Asim Munir, foi o sinal para Pahalgam. Outros, incluindo um antigo major do exército paquistanês, Adil Raja, afirmam que o ataque foi uma iniciativa pessoal de Munir para reforçar a sua própria posição e abrir caminho a uma nova ditadura militar. O ISI, os serviços secretos paquistaneses contrariou isto. Controlo de danos ou verdade? É difícil dizer, embora o terrível discurso de Munir ofereça algumas pistas.

O discurso foi claramente concebido para tornar claro aos paquistaneses ricos do estrangeiro que o exército dirige o país. Algumas pessoas da plateia devem ter sido contratadas para aplaudir de pé os comentários grosseiros, rudes e ignorantes sem precedentes do Chefe do Exército. Não me lembro de um único ditador militar do país ter falado desta forma. O General Ayub Khan, formado em Sandhurst, era brando e secular. O General Yahya Khan era muito divertido quando estava bêbedo e evitava as aparições públicas. O general Zia-ul-Haq era um sádico religioso, mas estava desesperado por um acordo com a Índia; denunciar os hindus não era o seu estilo. O General Musharraf era essencialmente secular, relativamente culto e muito empenhado numa aproximação à Índia.

A tentativa do General Munir de se fazer passar por uma versão paquistanesa fardada de Modi foi um fracasso lamentável. Ele fez três afirmações, todas elas mentiras nacionalistas nojentas. Primeiro, que os hindus eram e sempre foram o inimigo, e que os muçulmanos nunca poderiam viver com eles. Esta é a inversão da afirmação de Modi de que todos os muçulmanos indianos são convertidos do hinduísmo e devem regressar à antiga fé. Alguém devia ter educado o general: os muçulmanos coexistiram com os hindus e, mais tarde, com os sikhs durante quase doze séculos antes de 1947. O período Mughal (odiado tanto por Modi como pelos fundamentalistas islâmicos) deu origem a exércitos integrados com generais e soldados hindus e muçulmanos que defendiam o império criado pelos muçulmanos.

O Islão viajou tão rapidamente que muitas tradições e rituais pré-islâmicos da África Ocidental, da Europa, da Índia, da China e do Sudeste Asiático foram incorporados na nova religião. A versão exclusivamente wahhabita da história ensinada atualmente no Paquistão é limitada e falsa. Houve muitos casos de culto conjunto de santos entre hindus e muçulmanos em partes da Índia pré-britânica e mesmo mais tarde. Esta versão imbecil da história islâmica presta um enorme mau serviço aos paquistaneses no país e no estrangeiro. É uma das razões da incapacidade de tantos jovens muçulmanos para combater a islamofobia.

Munir referiu-se a Caxemira da seguinte forma: “Será a nossa veia jugular, não a esqueceremos, não abandonaremos os nossos irmãos caxemirenses na sua luta histórica”. Na realidade, a maior parte dos caxemirenses vive sob o domínio indiano desde agosto de 1947. A Caxemira controlada pelo Paquistão não se enquadra na metáfora anatómica do General. Poderia ser mais corretamente comparada a uma conduta redundante do fígado do General Yahya.

A terceira referência, ultra-emocional, dizia respeito à inviolabilidade da “teoria das duas nações” que constituía a base da carta ideológica do Paquistão. Mas esta foi violada pelo exército paquistanês em 1970, quando se recusou a reconhecer o facto de os bengalis do Paquistão Oriental terem obtido uma maioria absoluta nas eleições desse ano. Foi a recusa do general Yahya em aceitar o resultado que levou a enormes massacres de muçulmanos bengalis pelos seus supostos irmãos do Paquistão Ocidental, seguidos de uma guerra civil e de uma intervenção indiana. Foi o fim da teoria das duas nações. Contrariamente ao que o general disse à sua audiência, longe de salvar o Paquistão, o Alto Comando do Exército aproximou-o da ruína política e económica. Uma lista dos chefes do exército que se reformaram como bilionários deveria ter sido disponibilizada aos expatriados reunidos.

Aceitemos, para efeitos de argumentação, que Pahalgam foi uma operação paquistanesa. Porquê agora? Os responsáveis paquistaneses argumentam que a Índia está por detrás do Exército de Libertação do Baluchistão (ELB), uma organização de guerrilha nacionalista que pretende que a província do sudoeste se separe do Paquistão. A mais ousada ação recente do ELB foi em 13 de março, quando descarrilou um comboio na região selvagem do Passo de Bolan e fez reféns os passageiros civis. As unidades do ELB têm atacado acampamentos militares e estações de caminho de ferro com bastante regularidade. Esta atrocidade em particular foi muito bem preparada. O Paquistão tem a certeza – e muitos observadores concordam – de que a Índia está a armar e a financiar o BLA. A especulação sobre a atividade naval chinesa no porto de Gwadar sugere a muitos que os EUA poderiam ser acrescentados à lista de financiadores do ELB. Dezenas de trabalhadores chineses foram mortos por nacionalistas baluches.

É um quadro complexo e o Paquistão está longe de ser inocente na criação desta mistura letal, mas, como os nacionalistas curdos descobriram, não há verdadeira independência no mundo atual; os curdos aliaram-se a Israel e aos EUA no Iraque e na Síria. O ELB enfrenta escolhas semelhantes; expulsar a China de Gwadar não pode ser o único objetivo. Os velhos nacionalismos progressistas de descolonização estão mortos há muito tempo. A escolha para os Baluches é o Paquistão ou a Índia, mais os seus respetivos aliados. Tal como nas zonas curdas, os líderes nomeados enriquecerão enquanto o povo comum sofre. É pouco provável que o Baluchistão seja diferente, e os seus minerais e outros recursos subterrâneos serão explorados pelos gigantes multinacionais. Vejam o Iraque.

Terá Pahalgam sido uma retaliação pelo ataque ao desfiladeiro de Bolan um mês antes? É possível. Será que a guerra vai resolver alguma coisa, mesmo que a Índia consiga acrescentar uma pequena parte à Caxemira que ocupa? Duvido. Nos bastidores, a Índia ofereceu ao Paquistão um acordo nos seguintes termos: “Vamos concordar com o status quo existente e aceitar a Linha de Controlo (fronteira) como permanente. Depois, um tratado de paz, comércio aberto, levantamento de todas as restrições ao críquete paquistanês e viagens sem vistos”. Disseram-me que o exército paquistanês estava tentado, mas dividido. A fação “Caxemira é a nossa veia jugular” ganhou.

No que diz respeito à maioria dos caxemires, a melhor solução seria um Estado autônomo unificado com as suas necessidades de segurança garantidas pelo Paquistão e pela Índia e a reinserção dos artigos 370 e 35A na Constituição da Índia. Demasiado bom para se tornar realidade? Talvez. Mas as alternativas são inatingíveis ou piores.

Durante a última ronda de protestos contra o regime autoritário de Modi na Índia – tal como após a queda da ditadura militar de Zia em 1988 – estudantes e outros, hindus, muçulmanos, cristãos e sikhs, reuniram-se em ambos os lados da fronteira para recitar um poema de Faiz Ahmad Faiz, denunciado pelo povo de Modi como “anti-hindu”:

Veremos

Veremos com certeza

O dia que foi prometido

esculpido em pedra no início dos tempos

testemunharemos o dia

quando a poderosa montanha de opressão e crueldade

será soprada como algodão

quando sob os pés de nós, os oprimidos

A terra se moverá, vibrará e estremecerá

Quando sobre as cabeças daqueles que governam

Trovões e relâmpagos brilharão e rugirão

E apenas o nome de Deus permanecerá

que está à nossa volta e escondido de nós

que é ao mesmo tempo o espetáculo e a audiência

E o slogan erguer-se-á, ‘Eu sou a verdade’

E isso significa eu, e isso significa tu

E o próprio povo de Deus governará finalmente

E isso significa eu, e isso significa tu

Veremos certamente esse dia

Publicado originalmente em SideCar a partir de Esquerda.Net

 

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