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Lênin e a “tensão rumo ao objetivo”


Publicado em: 2 de maio de 2025

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Coluna Henrique Canary

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Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Finalmente, chegamos. O relevo infinito, um jogo indescritível de cores. Diante de nós, como que na palma da mão, todas as latitudes, todos os climas. O sol brilhava irresistivelmente. Um pouco abaixo, a vegetação do norte; mais adiante, os lagos suculentos dos Alpes e a agitada cobertura verdejante do sul. Eu me inspirei em estilo elevado e já estava pronta para declamar Shakespeare, Byron. Olhei para Vladímir Ilitch. Ele estava sentado, profundamente pensativo e de repente disparou: “Como cagam esses mencheviques!”
Lembranças de Maria Éssen (pseudônimo “Fera”) de um passeio com Lênin aos Alpes suíços Apud Louis Fischer, A Vida de Lênin, Moscou, 1997, págs. 65-66

Em uma série de ensaios biográficos sobre Lênin, escritos entre 1918 e 1924, Leon Trótski afirma que o que caracterizava a natureza espiritual do líder soviético era a “tensão rumo ao objetivo”. Essa tensão está, claro, relacionada à própria personalidade de Lênin e sua história individual: um revolucionário profissional que desde muito jovem e até o dia de sua morte dedicou todas as suas forças e pensamentos à causa da libertação do proletariado. Como observou o velho Plekhánov se referindo a Lênin: “É dessa massa que se fazem os Robespierres!”. Não é que Lênin não tivesse quaisquer outros interesses na vida. Gostava de caçar, de xadrez, era um profundo conhecedor da literatura russa e europeia. Mas para ele o verdadeiro prazer provinha do trabalho intelectual e revolucionário. Mesmo no Kremlin, ocupou um pequeno e modesto quarto da grandiosa ala residencial. Uma cama para descansar e uma pequena escrivaninha lhe bastavam, desde que tivesse à sua disposição livros, muitos livros; e estatísticas, muitas estatísticas.

Mas a “tensão rumo ao objetivo” de Lênin não era somente um traço psicológico, uma idiossincrasia de sua personalidade. Trótski faz questão de precisar: essa tensão abarcava todo o seu ser, e principalmente sua forma de fazer política, de construir o partido e de dirigir o Estado soviético. Lênin subordinava não somente o seu tempo, mas tudo à vitória. Enquanto é cultuado por muitas seitas como uma espécie de monumento inabalável, o próprio Lênin era, acima de tudo, um iconoclasta, inclusive de si mesmo. Lênin não considerava que sua missão era a preservação de qualquer tradição, seja ela qual fosse. Tudo poderia ser revisto, revisitado, se isso fosse necessário ao fim objetivado. Nisso consistia, sobretudo, essa “tensão rumo ao objetivo”, de que nos fala Trótski.

A “tensão rumo ao objetivo” em Lênin

Lênin começa sua atividade revolucionária e intelectual no final do século 19 como um crítico demolidor das concepções populistas, predominantes entre a esquerda revolucionária russa. O populismo defendia um socialismo agrário como objetivo e o terrorismo individual como método. Lênin destrói essas ideias uma a uma em uma série de livros e artigos que escreve ainda em sua juventude. No entanto, quando se trata de construir o partido, absorve uma parte das ideias populistas: o partido revolucionário russo não pode ser a organização aberta e amorfa da social-democracia alemã. A repressão tsarista impõe que se construa um partido estrito, bem delimitado, hierarquizado, altamente centralizado, baseado no segredo e na confiança mútua, uma verdadeira confraria de conspiradores, até que o assalto final estivesse na ordem do dia. A heterodoxia do jovem revolucionário russo escandaliza os velhos mestres alemães e austríacos e provoca um interessante debate entre ele e Rosa Luxemburgo sobre a organização dos sociais-democratas. Lênin é acusado de absorver ideias estranhas ao marxismo, ao que argumenta: está apenas aplicando o marxismo às condições especificamente russas.

Mas nada em Lênin é permanente, a não ser a própria mudança. Quando explode a primeira revolução russa, em 1905, polemiza com seus próprios discípulos: exige que o partido se abra e receba os milhares de operários que despertam para a luta política e buscam uma organização. É a polêmica com os “komitetchiki”, ou “homens do comitê”, aqueles organizadores clandestinos muito sérios, talentosos e abnegados, mas demasiado acostumados com a rotina da organização fechada e rígida.

Quando a revolução é finalmente derrotada, em 1906-1907, um novo giro: é preciso aproveitar o simulacro de democracia de uma Duma (parlamento) censitário e carente de reais poderes, mas que pode ser um importante apoio na tarefa de reorganização da classe. Lênin estuda a legislação, escreve discursos para candidatos e deputados eleitos, elabora táticas eleitorais ousadas, celebra acordos com as forças mais improváveis para garantir que a social democracia ocupe o maior número possível de cadeiras na cúria operária (cada classe social da Rússia elegia separadamente sua própria “cúria”, espécie de “bancada” na Duma de Estado).

Em 1914, quando estoura a Primeira Guerra Mundial, Lênin considera que a posição frente ao conflito envolve uma questão de princípios: sob sua orientação, os deputados bolcheviques não hesitam em se opor à guerra, pelo que são cassados, presos e enviados à Sibéria. Nada era mais importante do que a agitação antibelicista e a transformação do conflito interimperialista em insurreição revolucionária. Seus giros bruscos entre fevereiro e outubro de 1917 são bem conhecidos: da oposição de esquerda ao Governo Provisório em abril, passando pela exigência de ruptura com a burguesia em maio, pela recusa a uma aventura ultraesquerdista nas Jornadas de Julho, pela construção da Frente Única contra o golpe de Kornílov em agosto e chegando ao chamado e organização efetiva da insurreição em outubro. Nada fica de pé diante da velocidade de Lênin. Os quadros não conseguem acompanhar. Quando se habituam a uma política, está na hora de um novo giro. As viradas bruscas não são indolores: a quebra de centralismo de Zinóviev e Kámenev em setembro é um dos episódios mais dramáticos. Lênin se enfurece, exige a expulsão de ambos, mas depois se acalma e os laços se recompõem.

Em novembro de 1917, defende a aceitação de um acordo draconiano com os alemães para encerrar a guerra. Bukhárin quer transformar a guerra inter-imperialista em guerra revolucionária. Trótski propõe sua política de “nem guerra, nem paz”: nem assinar um tratado humilhante, nem seguir combatendo. Lênin alerta para o perigo de tal proposta, mas é derrotado e aceita. Os alemães se aproveitam da fragilidade da Rússia revolucionária e tomam quase metade da Ucrânia e Bielorrússia. A questão volta a ser debatida e Lênin defende assinar qualquer tratado que encerre a guerra. Sua posição finalmente triunfa.

Durante a Guerra Civil, aceita a polêmica proposta de Trótski de utilizar oficiais tsaristas no Exército Vermelho. Stálin se enfurece e abre contra Trótski uma intensa luta fracional dentro do Exército, ensaio da luta contra a Oposição de Esquerda alguns anos depois. Mas os números convencem Lênin: os casos de traição por parte de oficiais tsaristas são irrelevantes. Em nome da vitória, é preciso aceitar. Na organização interna, novo fechamento do partido. É preciso evitar o ingresso dos oportunistas, carreiristas e covardes que querem fugir da Guerra Civil ingressando no partido dirigente.

Na Nova Política Econômica (NEP), de 1921, um rearme inesperado. Lênin caracteriza que a principal tarefa é ganhar tempo e que a enorme classe camponesa ainda não está disposta a aceitar uma ordem socialista sem resistência. É preciso admitir relações capitalistas no campo e no comércio, enquanto o Estado controla fundamentalmente a indústria (mas não toda) e o sistema bancário. Novamente, resistência e dissidências. Novamente, a flexibilidade e a sensibilidade organizativa de Lênin, além de sua enorme autoridade, evitam a ruptura.

Quando o capitalismo se estabiliza, a partir de 1920-1921, um novo giro, desta vez “à direita”, não apenas no partido russo, mas em toda a Internacional Comunista. A luta imediata pelo poder é substituída por uma consigna muito mais recuada: “luta pelas massas”. É preciso primeiro ganhar a maioria no movimento operário para somente então pensar na conquista do Estado. Em 1922, Lênin aprofunda o rumo à direita e, junto com Trótski, lança a palavra de ordem de Frente Única em toda a Internacional: a política de unidade com a social-democracia reformista para tarefas defensivas torna-se oficial e ampla.

Qualquer que seja o período analisado, o que se verá em Lênin serão reviravoltas inesperadas, recuos, mudanças, reorientações, avanços bruscos. Não há linha reta. Mas há sempre um fio condutor: a busca da vitória. Lênin via o marxismo não como uma coleção de textos sagrados ou “exemplos instrutivos”, muito menos um conjunto de paralelos e analogias a serem copiadas, mas sim como um método aberto que deve ser aplicado a cada situação concreta. Lênin adaptou o marxismo às condições especificamente russas e por isso conseguiu vencer. Sem deixar de ser um internacionalista até a medula, Lênin é também profundamente nacional no melhor sentido da palavra. O que chama a atenção sempre é o inesperado de suas propostas e a capacidade de lidar com a resistência interna. Uma das condições de sua vitória é a plasticidade de seu partido, a enorme capacidade de adaptação e reinvenção dos quadros: de organizadores clandestinos, passando por agitadores de massas, depois por chefes militares e chegando a administradores de Estado. Souberam fazer de tudo, aprenderam com cada oportunidade, cada luta.

Assim, o que se chama de “partido bolchevique” é, em muito, uma abstração: De qual período? Durante qual luta? Sob quais condições? Essa incrível máquina de fazer política, formar, agitar e organizar saiu tanto da experiência concreta da classe operária russa, quanto da cabeça do homem que foi seu principal arquiteto e a construiu desde o início.

A “tensão rumo ao objetivo” entre nós

As atuais organizações da esquerda radical deveriam se perguntar: atuamos com um espírito realmente leninista? Essa pergunta deveria ser feita por todas as organizações sem exceção porque esse problema diz respeito a absolutamente todos nós. Me parece que, em geral, não. Há muitas coisas não-leninistas em nós. Em particular, me refiro a essa “tensão rumo ao objetivo” que muitas organizações parecem ter perdido ou nunca tiveram.

Muitas correntes socialistas radicais se encontram hoje mergulhadas em uma mortificante rotina. Para quem vive a vida militante, parece que não há rotina alguma: o ritmo é alucinante e cada dia é diferente do anterior. Sofre-se de esgotamento, não de tédio. Mas olhando de uma certa distância, vê-se: a rotina parlamentar, a rotina sindical, a rotina organizativa interna, a rotina da disputa fratricida com outras organizações, a rotina das redes sociais. Nenhum dia é igual ao outro, mas todos os ciclos (eleitorais, sindicais e outros) são iguais entre si.

Muitas organizações da esquerda revolucionária deixaram de combater por uma causa e passaram a combater por um legado, uma identidade, certos textos, certos autores, certos conceitos. Essas organizações mantêm uma mesma política há anos, uma mesma forma organizativa há décadas, uma mesma camada de dirigentes por toda a sua existência. São partidos-museus que se resignaram em ser testemunhas da história e comentaristas da luta de classes. Às vezes, têm sucessos. Ganham lutas, tem parlamentares, dirigem sindicatos, conquistam aparatos, recrutam novos militantes. Até querem vencer. Mas não como Lênin. Querem, antes de tudo, ser fiéis ao credo.

Desenvolvem uma espécie de medo da vitória: medo de capitular, medo das pressões, medo das dificuldades e perigos que resultam da adoção de um rumo ousado e inesperado. Não fazem giros, não mudam de opinião, de estratégia, de métodos.

Querer vencer e estar zangado são coisas diferentes. Uma organização pode ser formada por militantes muito zangados e combativos e mesmo assim ter medo de vencer. Talvez pesem as derrotas; o destino trágico de Trótski como arquétipo militante; o prestígio de ser um pequeno líder de um pequeno grupo. Ou talvez essas organizações estejam relativamente satisfeitas com sua própria marginalidade (sim, por incrível que pareça, a marginalidade, principalmente em tempos algorítmicos, também pode gerar acomodação e conforto). O fato é que certas correntes parecem dispostas a entregar uma única coisa no altar da história: seu próprio sacrifício de mártir. Seremos derrotados, mas permaneceremos no mesmo rumo de sempre e isso basta.

Não estou cem por cento seguro de que esse seja um critério leninista. Se bem é verdade que Lênin permaneceu, é claro, fiel a uma série de princípios, sua atividade prática se caracteriza muito mais pela flexibilidade de formas e objetivos táticos. Como observou certa vez Daniel Bensaïd, mesmo quando tenta ser “ortodoxo” (por exemplo, quando reivindica Kautsky), Lênin interpreta os conceitos à sua maneira, introduzindo às vezes modificações significativas na teoria e resultando em uma visão fresca sobre a realidade.

Em vida, Lênin sempre foi acusado de heterodoxia, de ser excessivamente russo, de advogar um desvio do marxismo “clássico”, como o entendiam principalmente os velhos chefes da social-democracia alemã e austríaca. Foi quando ele morreu que o stalinismo o transformou em cânone imutável e sua imagem passou a ser associada à ortodoxia. Aquilo que era especificamente russo tornou-se, sob os golpes da miséria teórica stalinista, um falso universal.

Nossa tarefa não consiste, portanto, em defender Lênin, Marx ou Trótski de um ataque que ninguém está fazendo, mas em aplicar o marxismo à realidade brasileira, em criar um movimento revolucionário verdadeiramente nacional, verdadeiramente popular, verdadeiramente concreto. Esse “nacional” ou “brasileiro” não pode ser um mero colorido cultural. Ele refere-se ao próprio conteúdo de nossa atuação. É preciso analisar cada fato de nossa vida nacional e buscar a sua singularidade em comparação com outros países e histórias.

Porque uma revolução triunfa ou é derrotada sempre por razões concretas, específicas. Não atuamos na Rússia de 1917, nem num espaço abstrato, mas no Brasil do século 21. Isso muda tudo. É preciso recuperar a “tensão rumo ao objetivo” de Lênin. Ela significa uma incrível concentração de forças e uma busca inabalável pela vitória e somente pela vitória – só ela importa. Mas justamente por isso implica também em uma enorme flexibilidade tática, na adoção de caminhos inesperados e jamais trilhados porque nos guiamos por um método e não por um manual de instruções.


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