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Reflexões sobre No Other Land ou sobre os perigos e a força perigosa da arte

Nos tempos de hoje, quais sentimentos são despertados quando um palestino e um israelense realizam um trabalho comovente em regime de cooperação?


Publicado em: 19 de abril de 2025

Cultura

Por George Bezerra, de Crateús (CE)

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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O documentário vencedor do Oscar No Other Land (2024) – Sem Chão, título do filme nos cinemas do Brasil – de Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor é isso. Um filme realizado por um coletivo palestino-israelense que traz o cotidiano de resistência à expulsão em Masafer Yatta – comunidade secular palestina na Cisjosrdânia – pelo exército de Israel e por colonos.

Confesso que, quando Basel e Yuval discursaram juntos no Oscar, a sensação que me habitou naquele instante foi a de uma antiga esperança ingênua, que, por vez ou outra, teima em reaparecer.

Não é para menos. Um filme que denuncia o processo de limpeza étnica na Palestina levar o maior prêmio do cinema dos Estados Unidos, país onde lobby sionista passeia sem muita resistência, é um feito.

E ter uma cena conjunta de dois cineastas – um palestino e outro israelense no palco da festa – denunciando o projeto colonial de Israel e o genocídio em Gaza não é algo comum.

Quem puder (re)ver o discurso dos dois jovens o faça, vale a pena. Imagem e discurso combinados que formam um conjunto de fortes simbolismos de caráter educativo e reflexivo à medida que produz um furo no falso discurso de que as relações entre árabes-palestinos e judeus sempre foram conturbadas e marcadas pela violência e, portanto, sem a possibilidade histórica de um convívio comum e saudável.

Quem, minimamente, se interessa pelos estudos sobre a Palestina, seu povo e o povo judeu sabe que estamos diante de um mito. Árabes e judeus, antes do projeto colonial sionista se tornar hegemônico na Palestina, conviviam e realizavam diversas trocas de ordem simbólica e material.

O apagamento desses registros, assim como colocar o conflito árabe-israelense sendo uma expressão do antissemitismo contemporâneo, são parte de um objetivo: pregar a inviabilidade de um caminho comum. Logo, educar na base do ódio para justificar as ações do estado colonial de Israel em relação à Palestina e sua população originária.

É por isso que iniciativas de cooperação entre palestinos e israelenses, principalmente aquelas no campo das artes que ganham dimensões de escala mundial, ao desestabilizarem o núcleo do discurso colonial, são alvo de ataques.

Somente assim para entender o linchamento, por parte de colonos, seguida de prisão pelo exército israelense, que Hamdan Ballal sofreu uma semana após o documentário levar a estatueta. Hamdam é o outro diretor palestino do filme. A covardia da ação expressa o tamanho da força e do impacto que a arte pode ter sobre a realidade.

No Other Land me fez lembrar 5 Broken Cameras (2012) – Cinco Câmaras Quebradas – de Emad Burnat e Guy Davidi. Outro lindo documentário palestino-israelense, em que Emad Burnat tenta registrar o crescimento de seu filho Gibreel no povoado agrário de Bil’in na Cisjordânia. O filme também recebeu indicação ao Oscar de melhor documentário em 2013.

O que era para ser um registro de uma infância por um pai amoroso se transforma num relato sobre muros, expulsão, perda de terras férteis, assassinato de amigos, a construção de assentamentos com novos colonos e um mundo que cresce a partir de uma divisão, de um apartheid.

No Other Land também me fez recordar a West-Eastern Divan Orchestra, fundada em 1999 pelo já falecido intelectual palestino Edward W. Said e o grande maestro argentino-israelense Daniel Barenboim. O regente foi o primeiro músico de Israel a se apresentar em territórios ocupados. O projeto unia jovens músicos israelenses, palestinos, iranianos e de outras nacionalidades árabes num espírito de cooperação.

Acredito que Said, já canalizando parte de suas energias num árduo tratamento contra a leucemia que o vitimou em 2003, não tocou esse projeto com Barenboim só pelo amor à música clássica, uma herança da intensa relação com a mãe. A West-Eastern Divan Orchestra expressava também o humanismo democrático de Said e a maneira como enxergava o conflito árabe-israelense.

Ao mesmo tempo que crítico dos acordos de Oslo e dos recuos da Autoridade Nacional Palestina, Said era defensor da criação de um Estado Binacional. Ou seja, um único Estado para árabes-palestinos e judeus, laico e sem supremacia étnica.

Entendia que os caminhos de palestinos e israelenses estavam cruzados do ponto de vista histórico e cotidianamente numa mesma Geografia e que, neste sentido, a saída possível era desfazer a ocupação, parar com a política de expansão de assentamentos, reconhecer os direitos do povo palestino de dentro e fora da Palestina para, a partir daí, sem exclusões demográficas e territoriais, reconstruir o convívio, o território e a sociedade.

Se Said estivesse vivo, manteria essa posição? Não é possível saber. Hoje, pensando pragmaticamente, parece-me que um Estado binacional se distancia cada vez mais. A tarefa da atualidade é formar um movimento internacional ativo e solidário que pare o genocídio em Gaza e, baseado na soberania de seus habitantes, reconstrua o território e a economia.

E essa não é uma tarefa rápida, amadora, para sectários e para poucas mãos. Estados nacionais e regimes preocupados com a democracia e direitos humanos devem estar envolvidos nesse desafio.

A Palestina, passados mais de 70 anos desde o começo das revoluções anticoloniais em África, seguia como o único território ocupado por um projeto colonial. Essa imoralidade já fazia dela uma das grandes causas morais da humanidade. Com a destruição de Gaza, a fome generalizada e o genocídio, a reconstrução de Gaza se converteu na grande tarefa moral do nosso tempo. Reerguê-la tem um sentido muito profundo para o conjunto da humanidade e para a luta dos povos oprimidos.

Porém, ao passo que não está num horizonte tangível um Estado binacional, a essência do seu significado deve ser estimulado enquanto prática e discurso. Por isso que No Other Land, Five Broken Cameras e West-Eastern Divan Orchestra são tão importantes. Além de tornarem conhecida a realidade da ocupação israelense na Palestina, ampliando a rede de ações de solidariedade e impondo derrotas a Israel na disputa pela consciência, carregam o gérmen de um outro caminho possível.

Dito isso, vocês podem pensar que No Other Land é um documentário sobre esperança. O é, em minha opinião, “apenas” em dois quesitos: 01) pela bonita e solidária parceria existente entre cineastas palestinos e israelenses; 02) pela resistência e laços de solidariedade entre mulheres, homens e crianças da aldeia Masafer Yatta.

No mais, o documentário vencedor do Oscar é um soco no estômago. É desesperança. É registro dos efeitos sobre oprimidos e opressores do colonialismo e racismo em doses elevadas. É o retrato dos fascismos do nosso tempo. Onde se mata, onde as pessoas possuem mobilidade controlada e vigiada, casas e escolas viram escombros, cavernas são usadas como moradias, fontes de provisão de água são concretadas, parquinhos de criança se transforam em ferro retorcido, tratamentos de saúde são impedidos e ferramentas de trabalho são roubadas o que temos é que Giorgio Agamben chama de vida nua.

Porém, falava Said que “os ideais humanistas de liberdade e instrução ainda instilam nos desprotegidos a energia para resistir a uma guerra injusta e a uma ocupação militar, por exemplo, e a tentar derrubar o despotismo e a tirania. São ambas as ideias que a mim me surpreende encontrar vivas e em bom estado.”

E No Other Land também é isso. Uma prova que essas ideias permanecem vivas, produzindo coisas bonitas. Que a arte, nos tempos fascistas, é o lugar, por excelência, da comoção, do humanismo, da denúncia e da resistência. E que a história não acabou. Como disse Basel a Yuval, nuns dos diálogos do filme, “é preciso paciência”.

Pós-escrito

Quando esse texto estava sendo finalizado, a fotojornalista Fatima Hassoune de 25 anos e mais dez membros de sua família tiveram seus corpos destroçados por um ataque de Israel em Gaza

Fátima foi assassinada menos de 24h do filme que ela protagoniza – Put Your Soul On Your Hand And Walk (Ponha sua alma nao sua mão e caminhe) – ter recebido nomeação de prêmio para a próxima edição do Festival de Cannes.
Esse texto é em homenagem a ela que, horas antes de ser morta, publicou uma fotografia e escreveu:
“Este é o primeiro pôr do sol desde há muito tempo.”

Num post anterior, escreveu: “Quanto à morte inevitável, se eu morrer, quero uma morte barulhenta, não me quero numa notícia de última hora, ou num número com um grupo, quero uma morte que seja ouvida pelo mundo, um rastro que dure para sempre, e imagens imortaia que nem o tempo nem o espaço possam enterrar.”

Fátima Hassoune, presente!

George Bezerra é professor de Geografia do IFCE campus Crateús, psicanalista e militante do PSOL


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