colunistas

O feminismo acertou

Reflexões sobre a última década a partir de um textão no zap


Publicado em: 1 de abril de 2025

Colunistas

Clara Saraiva

Clara Saraiva

Carioca, feminista, mãe da Maria, doutoranda e professora de Serviço Social na UFRJ. É militante da Setorial de Mulheres do PSOL e pesquisadora do Grupo de Estudos de Teoria da Reprodução Social.

Colunistas

Clara Saraiva

Clara Saraiva

Carioca, feminista, mãe da Maria, doutoranda e professora de Serviço Social na UFRJ. É militante da Setorial de Mulheres do PSOL e pesquisadora do Grupo de Estudos de Teoria da Reprodução Social.

Compartilhe:

Ouça agora a Notícia:

Antes de começar, um pequeno (grande) parênteses: (Eu amo escrever. Juntando isso com a missão de disseminar a palavra do feminismo e do socialismo, em janeiro topei virar colunista aqui do Esquerda Online. Minha ideia era fazer um texto a cada quinze dias, mas depois do primeiro que escrevi (esse aqui) já passou fevereiro, passou março, e aqui estou eu, em pleno dia 31 do mês das mulheres pra não deixar esse projeto morrer. A correria da vida de uma mãe, trabalhadora, doutoranda, militante, com um carnaval no meio, aniversário de 6 anos da filha e um 8M pra organizar, o início do semestre letivo e uma vida nova como professora da UFRJ, me impediram de terminar os vários esboços que eu comecei. Existe aí também, eu devo confessar, uma dificuldade de desprendimento textual profunda – ou seria uma insegurança que vem de uma pressão machista de que errar, ou ser superficial, ou pouco original, custa mais caro pra nós, mulheres? Fato é que hoje, não! Só durmo depois que esse texto estiver pronto, mesmo que publicar ele sirva só pra mim. Pelo menos dormirei tranquila.)

10 anos da Primavera Feminista, é possível dizer que o feminismo errou?

Refletindo sobre o que escrever, me peguei pensando: o que eu não consigo deixar de dizer antes das águas feministas de março fecharem o mês das mulheres? E me veio à cabeça a infeliz coluna na Folha de São Paulo publicada por Mariliz Pereira Jorge no dia 21 de março. “O feminismo errou”, disse ela. No ano em que completamos um década do início dos protestos da Primavera Feminista, ela ousou afirmar isso. Quando eu li pela primeira vez seu texto, meu sangue levemente esquentou e respondi com um textão num grupo de whatsapp que faço parte. A partir desse textão, desenvolvi esse texto aqui (que contraditoriamente é muito maior que o textão do zap, mas que por ser uma coluna em um site perde o ‘ão’ e vira só texto – coisas lindas das expressões da nossa língua… e um grande foda-se né, por que eu tô falando disso?). O tanto de reflexão que já foi feita na internet sobre a genial e disruptiva série “Adolescência” eu assino embaixo de um monte, mas dizer que o feminismo é responsável por parte do que o adolescente protagonista da série representa, é de um equívoco sem tamanho. Produziria o feminismo um discurso vingativo contra homens que alimenta os mais jovens a quererem, também, se vingar? É aí que mora o problema?! 

Essa ideia de que o movimento que luta contra a opressão seria o responsável por “letrar” os supostos opressores (ou sofrer com as consequências de sua reação raivosa) não é nada nova. Claro que as crianças e adolescentes são sempre uma responsabilidade coletiva da nossa sociedade, mas assim como não é razoável uma pessoa branca pedir pra uma pessoa negra ensiná-la a não ser racista, ou pior, culpá-la do seu racismo por não tê-la ensinado, é bem absurda a ideia de que o feminismo seria o responsável pelo aumento da misoginia entre os adolescentes porque “excluiu os homens do debate”. Mas vamos refletir melhor sobre o assunto, porque acho que no âmago da sua consciência, muitos homens pensam assim. Posso estar bem errada nisso que vou dizer, mas acompanhando o feminismo argentino um pouco mais de perto, vejo um engajamento bem maior de homens do que vejo por aqui. Talvez, agora, estejamos vendo começar aqui um movimento nesse sentido… Mas lá, há diversos perfis de instagram de pais questionando o papel da parentalidade masculina, fazendo “bromas” de si mesmo, muitos que apoiaram ativamente a luta pela legalização do aborto, por igualdade de gênero, etc… E não é porque lá as feministas incluíram eles com convites, sorrisos e tapetes vermelhos, mas me parece que é porque eles ouviram o grito e se incluíram no debate. Muito provavelmente ainda é absolutamente aquém do que deveria ser. E claro, a força do movimento feminista argentino foi (e ainda é) gigantesca, dividiu a sociedade, incidiu sobre a correlação de forças, então naturalmente impactaria mais… Mas me parece que pensar assim faz muito mais sentido. Ou seja, o movimento se levanta e luta por suas bandeiras, e aqueles que estão de fora decidem se serão aliados de verdade ou se ficam incomodados por terem sido “excluídos do debate”. Quando estive lá no 8 de março do ano passado numa comitiva de mulheres do PSOL, pegamos um dia um uber com um jovem eleitor do Milei. Ao perguntar se ele era contra o aborto ou a luta das mulheres, ele me disse: por que eu seria? E esse não foi o único que nos afirmou que votou no Milei, mas que não era contra as mulheres decidirem sobre o aborto ou que mereciam igualdade em relação aos homens. Ou seja, mesmo entre eleitores do Milei não é automático odiar as feministas (apesar dos esforços dele nesse sentido, claro). A extrema direita se elegeu por outros motivos e apesar do apoio majoritário à luta das mulheres (me parece, vendo de longe…). Há algo curioso lá no 8M. Quando chegamos na marcha, vi muito poucos homens participando, e curiosa com essa questão perguntei o porquê. Elas me disseram: porque estão com as crianças, cuidando das casas, trabalhando para que nós paremos. Se no lugar onde, talvez, se expresse o movimento feminista mais forte do mundo é assim, isso só me faz acreditar ainda mais que o feminismo acertou.

E aí reafirmo meu argumento: o movimento que luta contra a opressão não é responsável em convencer o opressor a não oprimir. O movimento se defende, coletivamente, de uma tonelada de ataques e violências e, assim, disputa a sociedade. Os indivíduos decidem de que lado estão nessa luta. Eu resolvi ativamente me enxergar como mulher branca, compreender meus privilégios e me incluir no debate racial, ou seja, fui estudar, escutar, ler, construir na prática meu feminismo inseparável do antirracismo… E ainda reconhecer o quanto isso é insuficiente e o mínimo do que eu devo fazer. Foi preciso não só estudar e aprender, mas identificar em mim o que havia de branquitude e como ser branca determina a minha experiência de vida nesse mundo. A “identidade” não está só no oprimido (aliás, não há movimento mais identitário do que o fascismo e o nazismo eugenistas). E o processo de tomada de consciência da nossa identidade como parte de um grupo opressor gera incômodos, angústias. Não é pra ser leve e agradável, e sequer é algo que termina algum dia. Mas são sentimentos e consciências que me mobilizam a querer entender mais e ser ainda mais aliada da luta. Uma missão pra todos os dias, um alerta permanente, uma escolha individual (e, claro, coletiva) que devemos fazer. Eu sempre me incomodei com a ideia da “desconstrução” da opressão, da possibilidade de um “homem desconstruído”. Como se na realidade fosse assim: a gente conseguisse apagar de dentro da gente os aprendizados, a cultura, os valores em que fomos socializados desde criança com seus papeis de gênero, raça, sexualidade, nossos desejos mais íntimos, nossos impulsos… O que fizemos no passado reproduzindo opressões faz parte de nós. Digo uma verdade intragável: não é possível desconstruir quem fomos. O que foi feito, amigo, já foi. Mas é possível tirar conclusões sobre nossas ações passadas, compreender porque nos comportamos assim e, principalmente, fazer escolhas de quem queremos ser no presente e no futuro. “O que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir…” Então nessa relação mulher-homem, feministas-machistas, a responsabilidade de superar a opressão do outro nunca pode ser colocada nos ombros das oprimidas. Convenhamos, né! 

Esse debate me lembra muito aqueles que falaram que os protestos do #EleNão ajudaram a eleger o Bolsonaro em 2018. Quando é bem pelo contrário: na verdade criaram a oposição mais forte que ele (e que toda a extrema direita no mundo) tem, que são as mulheres, o voto feminino, a mobilização feminista, etc. A lógica é a mesma: culpam quem mais sofre as consequências do avanço do neofascismo, mesmo quando ocupamos as ruas às milhares. O tamanho da violência política de gênero e raça que sofreram e sofrem tantas de nós que ocupam postos de poder, seja em parlamentos, sindicatos, lideranças de movimentos, é só uma exemplificação da situação em que vivemos. Imaginem uma mãe ter a sua vida e a de sua filha constantemente ameaçada? Perdemos Marielle Franco pelas mãos deles, porque ela era tudo que eles acreditavam que nós não podíamos ser ao chegar num espaço de poder: mulher, preta, favelada, lésbica, socialista. Mas sempre subestimaram nossa capacidade de reagir, e mesmo em meio ao luto, à dor, à angústia, nós seguimos. 

A luta contra o machismo é uma luta contra os homens?

É sempre bom lembrar que o feminismo não é uma coisa só. Além do feminismo liberal, com todo seu verniz mercadológico, do empoderamento individivual e da hipocrisia, e do nosso feminismo popular/antirracista/marxista/classista/para os 99% (ou como quisermos chamar), existe também o feminismo radical. Esse sim é contra os homens radicalmente e extremamente transfóbico, chegando a apresentar ideias explicitamente fascistas. Acho que um texto como esse da coluna da Mariliz induz o leitor a generalizar o feminismo hegemônico que passa longe do feminismo radical como se fosse a mesma coisa… As feministas, especialmente as de uma concepção popular/marxista, sempre buscaram a superação da opressão em nome da unidade da classe trabalhadora. Uma palavra de ordem que volta e meia cantamos nos atos diz assim: quando uma mulher avança, nenhum homem retrocede. Essa lógica anti-homem não é a da maioria do feminismo que tem força hoje em dia… 

Outra coisa é a crítica a um feminismo que fica só no discurso. É preciso organizar a luta em coletivos, nas ruas, por políticas públicas, pelo direito ao aborto das adolescentes, por exemplo, por educação sexual nas escolas, contra a fome e a carestia dos alimentos, por campanhas de conscientização contra o assédio nos transportes, contra o estupro em casas noturnas ou em serviços de saúde, contra a escala 6×1, por socialização do trabalho doméstico, contra a suposta “alienação parental” que protege pais abusadores, contra a violência doméstica e os seus feminicídios, e um grande etc… Essas lutas não são “de mulheres” ou “para mulheres”, mas direitos fundamentais da classe trabalhadora. São pelas nossas crianças e famílias. E também não considero nada contraditórias com os debates produzidos nas redes, o acúmulo cultural que disputa a hegemonia hoje sobre o que deve ser uma mulher, como se comportar, como lidar com relacionamentos violentos, com a divisão dos cuidados com a casa e os filhos, com o machismo cotidiano, com o assédio do chefe; como o machismo rebate de forma particular em uma mulher negra, em uma menina negra; como a violência se expressa em corpos trans, femininos e masculinos; isso tudo é parte do caldo que disputa a consciência das mulheres trabalhadoras em geral. Não à toa, a extrema direita tem produzido muito conteúdo nesse sentido, inclusive de lideranças e influenciadoras mulheres, reforçando ideologias conservadoras. 

No caso dos adolescentes que viram ultra misóginos, antes de culparmos apenas as famílias e, mais precisamente, as mães pela falta de controle e atenção aos seus filhos, precisa entrar com muito peso a ação ativa e consciente (e aliada com as big techs e seus crueis algoritmos) das correntes neofascistas no mundo. Além de quem se omitiu (ou, abertamente, combateu) quando o feminismo foi pra cima em luta contra o conservadorismo e os retrocessos… Então eu diria que errou o Estado, por não absorver a fundo políticas que avançam nos direitos das mulheres, mas que também mitiguem as consequências crueis do poder das big techs, dos crimes de ódio e fake news da extrema direita com sua cultura machista e violência misógina. Errou, também, e é impossível negar, uma parcela das organizações de esquerda que não assimilou o potencial estratégico da luta das mulheres. Erraram muitos homens adultos, muitos maridos, pais, dirigentes de organizações de esquerda, que não se aliaram profundamente ao movimento feminista durante todo esse processo e não compreenderam programaticamente e estrategicamente o que ele representa (salvo exceções, que comemoro com alegria!). Muito importante que essa chacoalhada nos homens venha, e que tomem um protagonismo no seu próprio letramento, educação e compreensão da luta contra a misoginia, o racismo, a transfobia, e etc. O feminismo acertou: foi pra rua, pautou, mudou comportamentos, disse basta. Agora é preciso que individualmente, e coletivamente, se faça a escolha de atender a esse chamado. 

O feminismo é o cordão sanitário contra o avanço da extrema direita

Manuela d’Ávila tem vocalizado muito bem que a derrota da extrema direita só poderá vir se reafirmamos o protagonismo das mulheres, da negritude, dos LGBTI+ nas organizações de esquerda. Mas também de não abrirmos mão das nossas pautas e da luta ideológica que nos move. A crise que atinge o mundo capitalista hoje não se manifesta da mesma forma na classe trabalhadora entre homens e mulheres, entre brancos e negros, entre cis-héteros e trans-lésbicas-gays. As famílias trabalhadoras são chefiadas, majoritariamente, por mulheres, sendo a maioria negras, que trabalham sem parar, enfrentando todo o tipo de violências. A nossa classe trabalhadora é, hoje, muito mais Rick Azevedo e Érika Hilton do que imaginam os inimigos do feminismo. Por isso, nós somos um perigo que deve ser eliminado. Nossas ideias sensibilizam a classe, seja ao dizer que “Criança não é mãe” ou que queremos “Vida além do trabalho”. Por isso, martelam na cabeça dos adolescentes o ódio contra as mulheres, quando eles também são vítimas do próprio machismo que propagam. 

Esse ano, completam-se 10 anos da Primavera Feminista. É impossível não nos sentirmos orgulhosas ao olhar pra trás e ver tudo que construímos até aqui. Não vencemos a luta contra a extrema direita, é verdade. Sequer na Argentina, onde somos mais fortes. Mas construímos a maior resistência ao avanço do neofascismo e a todos os retrocessos democráticos e de retirada de direitos que representam. Disputamos culturalmente a sociedade, desmontamos mitos e ocupamos lugares que não eram para nós. Há muito o que se avançar ainda, inclusive dentro da própria esquerda e até mesmo dentro do feminismo (que é esse todo complexo, cheio de disputas internas). Mas se tem uma verdade inquestionável que acompanha essa última década de tantos retrocessos e que nos dá esperança para olhar o futuro, é essa: o feminismo acertou

xxx

Estamos nos aproximando dos dias 11, 12 e 13 de abril, quando acontecerá em São Paulo o Festival Mulheres em Lutas. Algo que foi pensado para algumas centenas de mulheres já tem mais de mil inscritas, e o limite de participação será apenas das barreiras financeiras e organizativas, porque a vontade de participar tem sido inesgotável de norte a sul do país. Nesses 10 anos de Primavera Feminista, ainda não tivemos um Encontro nacional onde pudéssemos reunir nossa diversidade, nossos sotaques, nossas experiências, nossas lutas, e pensar juntas que mundo queremos construir. Acredito que nesse final de semana daremos um passo gigantesco no movimento feminista brasileiro, e sairemos de lá fazendo um zumbido forte de que vale a pena lutar, se organizar e apostar no futuro. Mais uma prova de que o feminismo acertou, e ainda acerta. Dias mulheres virão!

 


Contribua com a Esquerda Online

Faça a sua contribuição