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Maria José Lourenço, Zezé, uma revolucionária gentil (1945/2025)


Publicado em: 27 de março de 2025

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Coluna Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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No passado 24 de março, às vésperas de fazer em maio 80 anos, Maria José Lourenço, a Zezé, faleceu, depois de sofrer de afasia nos últimos anos de vida. Residia em uma casa modesta em Itanhaém, litoral de São Paulo, com seu companheiro nos últimos quarenta anos, o argentino Jorge Sprovieri. Aposentada como funcionária da Justiça estadual paulista, foi reconhecida como vítima de perseguição pela ditadura militar pela Comissão de Anistia em 2013.

Zezé foi uma revolucionária profissional. Ela tinha coragem incomum, inteligência ágil, intuição política, sensibilidade altruísta, firmeza militante, dedicação incondicional, internacionalismo prático, entrega despojada, e uma confiança inabalável na classe trabalhadora. Maria José Lourenco é uma lenda. No exilio no Chile foi uma das fundadoras da corrente que se inspirou na experiência do trotskismo argentino liderado por Nahuel Moreno. Foi a única mulher na liderança de uma das organizações de esquerda nos anos setenta que tinha o papel de eixo da direção, uma função aglutinadora na divisão de tarefas, algo excepcional na sua geração. Zezé era agregadora, tinha paixão pela construção de uma organização revolucionária. Assim como quase todo o Comitê Central da Convergência foi presa em 1978 e levada para a Penitenciaria Feminina no Carandiru em São Paulo.

Esteve na origem e nas direções do grupo Ponto de Partida, que originou a Liga Operária, assumiu o nome de Partido Socialista dos Trabalhadores e impulsionou a Convergência Socialista, o Alicerce da Juventude Socialista, a Frente Revolucionária e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), do qual se desligou em 1998. Mulher negra Zezé foi uma das principais lideranças da CS, uma das organizações que esteve no impulso da fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980. Sempre foi uma pessoa alegre, intensa, fraterna e gentil em ambientes de militância endurecidos, ásperos e, frequentemente, machistas.

Zezé nasceu no Rio de Janeiro, na Vila da Penha, e foi estudante de Comunicação Social da UFRJ. Ao lado de Jorge Pinheiro colaborou com “O Sol”, encarte cultural do Jornal dos Sports. O “Sol” foi cantado nos versos de “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, no III Festival da Record, em 1967. Ambos faziam parte do Movimento Nacionalista Revolucionário, MNR, uma organização pioneira da tática de luta armada, na Serra de Caparaó em Minas Gerais.

Com o AI-5 e o aumento da violência da ditadura Zezé decidiu se auto exilar no Chile. Em Santiago, Zezé, Túlio Quintiliano, Jorge Pinheiro, Jones de Freitas, Ênio Bucchioni e Valderez Duarte formaram o grupo Ponto de Partida. No Chile, Zezé e Valderez Duarte arrumaram emprego em fábricas, no Cordão Industrial de Vikuña Makenna, sendo que Zezé numa fábrica.

O núcleo conheceu Mário Pedrosa e Hugo Blanco e se aproximou das posições da Quarta Internacional. Mas, era muito crítico da tática de luta armada e apresentou suas posições na publicação A propósito de um sequestro. Este posicionamento crítico exigiu enorme firmeza política e coragem pessoal, porque ia totalmente “contra a corrente”. A esmagadora maioria da militância brasileira no exílio em Santiago insistia em apoiar a tática da luta armada, em suas diferentes interpretações, considerando que era o caminho revolucionário contra a ditadura. O Ponto de Partida não era senão um círculo de militantes jovens e ficaram isolados. Escreveram, então:

“Qual é o resultado obtido quando se sequestra um embaixador para obrigar o governo a libertar algumas dúzias de revolucionários? No dia seguinte, esse mesmo governo poderá impunemente encarcerar centenas de outros militantes políticos, sem que as massas possam opor qualquer tipo de resistência. Não são questões de princípios as que levam os marxistas a oporem-se aos sequestros. O que se discute – e aqui se encontra o ponto básico da questão – é a concepção que se esconde atrás destas ações (,,,) A ditadura militar conseguiu para si uma relação de forças sociais que a favorecem, momentaneamente. Este é o fator básico que lhe permite manter presos milhares de militantes revolucionários (…) Os sequestros de embaixadores, as ações armadas da vanguarda, não alteram esta realidade. O único agente ativo da história, para Marx, são as massas.. A essência do foquismo é sua visão voluntarista da história(…) Os marxistas revolucionários, sabendo interpretar a realidade mundial e tendo confiança nas massas, afirmam, sem o menor medo de errar, que a história, em nossa época, avança muito depressa para que se possa crer em duas outras décadas de ausência de liberdades no Brasil (…) São incapazes de apoiar-se na confiança de que as massas participarão em futuras jornadas de luta, que passarão, inevitavelmente, pela exigência de liberdades para todos os presos políticos. Então sim, teremos a certeza de que a ditadura terá que soltar todos, e não só quinze”.[1]

Túlio Quintiliano foi assassinado pela ditadura chilena em 1973, no contexto da Operação Condor. Após uma rápida passagem por Buenos Aires, quando se reuniram com a direção do PST liderado por Nahuel Moreno, e Waldo Mermelstein se uniu ao grupo, Zezé e outros três companheiros, fundaram a Liga Operária e retornaram ao Brasil, ainda sob a repressão da ditadura, em 1974. Zezé foi uma liderança inspiradora do rápido crescimento da Liga Operária que uniu 100 militantes na clandestinidade em menos de dois anos, através de uma intervenção audaciosa no movimento estudantil.

 

De uma pequena organização, implantada no movimento, estudantil, a Liga Operária foi para as fábricas, com a proletarização de estudantes. Em 28 de abril de 1977, dois militantes da Liga, Celso Brambilla e Márcia Basseto foram presos convocando o 1º de Maio. Junto com eles, um jovem operário de 20 anos, José Maria de Almeida. Os três foram barbaramente torturados e Brambilla ficou com sequelas físicas. Em resposta às prisões, a primeira grande prova de “fogo” da jovem organização em sua luta contra a ditadura, junto com a prisão de militantes do Movimento de Emancipação do Proletariado, MEP, a militância da Liga foi às universidades, passando em sala de aula para pedir solidariedade. Esse foi o elemento denotador, pela primeira vez, dos fortes protestos estudantis de 1977 em São Paulo, nove anos depois de 1968.

Os presos políticos foram soltos. A Liga lançou a campanha para formar um Partido Socialista de massas, através da revista “Versus”. Em agosto de 1978, após um ato com mais de 1200 pessoas no Colégio Equipe em São Paulo, três dirigentes internacionais e 27 dirigentes nacionais do Movimento Convergência Socialista foram presos pela ditadura, entre eles Nahuel Moreno e Maria José Lourenço.

No final de 1978, os presos políticos da Convergência Socialista foram soltos. Durante as eleições a Liga apoiou e ajudou a eleger Benedito Marcílio, presidente do sindicato dos metalúrgicos de Santo André, deputado federal, através da legenda do MDB sob as bandeiras Trabalho, Terra e Liberdade, pela construção de um Partido dos Trabalhadores. Em janeiro de 1979, José Maria de Almeida, metalúrgico de Santo André, defendeu no congresso da categoria em Lins/SP, uma tese de apoio à formação do PT, seguindo a orientação da CS, que foi aprovada, com o apoio de Lula.

Na primeira metade dos anos oitenta, a década do maior ascenso de lutas da história das lutas populares no Brasil, mas na contramão da evolução da situação internacional, Zezé esteve na primeira linha da luta na fase final da ditadura. Em 1984, CS defendeu a linha de “um dia de greve geral no 25 de abril”, dia da votação da emenda por eleições diretas no Congresso Nacional. Zezé orientou o giro para o movimento sindical que passou a ser a prioridade da CS após a fundação da CUT, e a vitória de chapas classistas em grandes sindicatos, como os metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem, e bancários do Rio de Janeiro.

A restauração capitalista e o fim da URSS entre 1989/91 determinaram uma inversão desfavorável da relação de forças. Na década dos anos noventa, mesmo no Brasil depois do Fora Collor, abriu-se uma longa situação defensiva que culminou com a eleição e reeleição de FHC. As derrotas são sempre muito duras. A esquerda revolucionária mundial passou por uma etapa de grandes crises, e uma avalanche de rachas. Diante de um uma realidade totalmente nova, os efeitos desmoralizadores da restauração capitalista, era necessário reavaliar a história e atualizar o programa. Zezé se entregou com paixão internacionalista aos novos desafios, mas muito amargurada pelo fracionamento da organização irmã argentina, que atingiu o Brasil. Em 1978 as lutas internas no PSTu atingiram um ápice incontornável. Nos vinte e cinco anos seguintes, Zezé reorganizou a sua vida.

Na hora mais triste da vida, que é a hora do adeus, Zezé está sendo lembrada por muitos. Ainda há hoje milhares de militantes ativos que preservam uma memória afetuosa de muito respeito pela “baixinha”, que era como ela foi, também, conhecida. Eles estão dispersos em muitas organizações: O PSTU, o MES, o Fortalecer e a Resistência, correntes internas do PSol, a CST, a Emancipação Socialista, o Espaço Socialista e outros núcleos. São ainda mais numerosos os ex-militantes desta longa luta pela revolução brasileira que guardam para si, emocionados, as histórias que, em algum momento das décadas de militância de Zezé, compartilharam ao seu lado.

Estamos mais sozinhos.


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