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Trotsky não era infalível


Publicado em: 15 de março de 2025

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Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Os escritos de Trotsky sobre o fascismo represen­tam a única análise direta e desenvolvida do Estado Capitalista moderno, em toda a obra do marxismo clássico. Qualita­tivamente superiores a tudo o que Lenine produziu, tratam contudo de um regime que veio a verificar-se ser uma forma atípica do Estado burguês do século vinte, apesar da impor­tância histórica que foi o seu surgimento nessa altura. Para teorizar a especificidade do Estado fascista como o mais mortal inimigo de qualquer classe operária, teve Trotsky, obviamente, de fornecer elementos de uma contra-teoria do Estado demo­crático-burguês, para estabelecer o contraste entre os dois. Assim, existe um maior volume de análise nos seus escritos sobre a democracia burguesa do que nos dos seus predeces­sores(…)Em particular, aten­dendo a que os seus ensaios sobre a Alemanha sublinharam a imperativa necessidade de conquistar a pequena-burguesia para uma aliança com a classe operária (citando o exemplo do bloco contra Kornilov, na Russia), os seus ensaios sobre a Frente Popular em França deixam de parte as organizações tradicionais da pequena-burguesia local, o Partido Radical(…) A mesma transformação é evidente nos seus artigos sobre a Guerra Civil de Espanha embora acompanhada de outras características e algumas correções. (1)

Perry Anderson

Recorremos a analogias históricas com muito cuidado. O mundo de hoje não permite muitas comparações com mundo de cem anos atrás. Mas o laboratório da história é único que temos disponível para estimular nossa imaginação diante de uma realidade que se transforma acelerada e perigosamente.

Leon Trotsky foi a principal liderança marxista que alertou de forma pioneira sobre o perigo de uma Segunda Guerra Mundial, se Hitler chegasse ao poder. Antes dos principais líderes liberais democráticos, e em polêmica contra Stálin, previu que, se os nazistas viessem a vencer na Alemanha, seria uma questão de tempo para que Hitler invadisse a União Soviética.

O cálculo de Leon Trotsky era que a conquista da supremacia alemã no sistema internacional de Estados só seria possível de ser alcançada com a destruição da URSS, um domínio do Eixo Berlim/Roma/Tóquio se estendendo do extremo oriente chinês até à Europa Ocidental, possivelmente, com a imposição de relações de trabalho forçado de tipo pré-capitalista sobre os povos colonizados.

A imposição de uma derrota histórica aos trabalhadores na Alemanha era a condição para a construção da coesão social necessária para o projeto de guerra mundial. A guerra começou pela ocupação da Polônia, em função da necessidade do regime nazista de se fortalecer antes de enfrentar o inimigo principal. Stalin assinou o pacto Molotov/Ribbentrop  argumentando que precisava ganhar tempo. Mas foi Hitler quem precisava de acumular forças na Europa, porque sabia que a guerra seria decidida na Rússia.

A defesa da Frente Única Operária, ou de esquerda, na luta contra o fascismo nos anos vinte e trinta do século passado, foi a ideia mais poderosa da estratégia que Trotsky defendeu. Esta estratégia respondia a um cálculo de que a situação era, dramaticamente, defensiva. A crise aberta depois de 1929 deixava o governo bonapartista em crise. Só uma unidade da classe trabalhadora poderia construir mobilizações para inverter a relação de forças. Mas tinha como preocupação derrotar o nazismo. E alertava que a linha de oposição de esquerda aos governos bonapartistas, que ajudava ao crescimento do PC, não favorecesse um caminho para os nazistas, que cresciam muito mais rapidamente, chegarem ao poder. A tática exigia calibrar as iniciativa para acumular forças e ganhar tempo.

Ele argumentou, à exaustão, diante do perigo de uma derrota histórica na Alemanha, o país no mundo em que a esquerda socialista era mais influente, a necessidade emergencial, insubstituível e incontornável, de uma Frente Única do Partido Comunista com os social-democratas do SPD, as duas maiores organizações da esquerda. Mas Trotsky defendeu, também, que a estratégia da Frente de Esquerda deveria usar táticas auxiliares, em especial, a unidade de ação com partidos que respondiam às pressões das camadas médias, ou de frações burguesas democráticas, numa Alemanha em que a pequena propriedade ainda era imensa, nas cidades e nos interiores agrários diante da barbárie nazista.

Ou seja, Trotsky era consciente que somente a unidade da social democracia, partido moderado e reformista, mas majoritário entre os trabalhadores, e o partido comunista, a organização revolucionária, não era o bastante. Essa unidade na ação teria como plataforma um denominador comum mais recuado: impedir o nazismo de conquistar o poder, portanto, um programa de defesa das liberdades democráticas do regime da República de Weimar. O giro do partido comunista durante o denominado Terceiro Período pela Internacional Comunista, era insurrecional, apostando na iminência da luta imediata pelo poder. Seus alertas foram ignorados, e a tragédia se consumou.

Prevaleceu no Partido Comunista da Alemanha uma orientação sectária e ultra-esquerdista, que pretendia combater, simultaneamente, o nazismo e a socialdemocracia, apostando numa linha insurrecional. A acusação de que o SPD seria um partido “social-fascista”, socialismo nas palavras e fascismo nos atos, foi uma das maiores deformações ideológicas do estalinismo, nivelando os reformistas com os nazistas. Uma orientação ultraesquerdista autoproclamatória provocou a divisão da classe trabalhadora e seus aliados nas classes populares e abriu, irremediavelmente, uma fratura na resistência antifascista. A subestimação do perigo terminal que Hitler representava foi fatal.

A questão permanece atual, já que envolve a discussão sobre a unidade na ação com as frações burguesas em torno da defesa, quando ameaçados, mas também da conquista de espaços e direitos democráticos, ou seja a utilização de consignas e reivindicações democráticas contra os limites da república democrático burguesa. Como este tema é vital, diante da ofensiva mundial de uma corrente neofascista, nesta terceira década do século XXI, vale a pena conferir o balanço crítico de Perry Anderson tomando, como exemplo histórico, a comparação da politica de Trotsky contra o nazismo na Alemanha antes de 1933, e a Segunda Guerra mundial:

Depois, no começo  da Segunda Guerra Mundial,  Trotsky condenou o conflito internacional como sendo uma mera repetição inter-imperia­lista da Primeira Guerra Mundial, na qual a classe operária não deveria optar por qualquer dos lados – apesar do carácter fascista de um e do carácter democrático-burguês do outro. Justificou-se esta posição pela afirmação de que, fosse como fosse, já que todo o mundo imperialista se deteriorava, enca­minhando-se para uma situação de desastre económico nos anos trinta, a distinção entre as duas formas de Estado_capi­talista tinha deixado de ter importância prática para a classe operária. Os erros desta evolução teórica parecem evidentes. Os próprios primeiros escritos de Trotsky sobre a Alemanha constituem a melhor refutação dos seus escritos posteriores sobre a Guerra. Obviamente, uma vez que a URSS foi atacada pela Alemanha, Trotsky teria alterado a sua posição sobre o conflito mundial. Mas o catastrofismo económico que parece ter originado os erros da sua fase final foi uma constante da Terceira InternacionalL após Leníne, e teve a sua autoridade ultima, como vimos, em Marx. (grifo nosso) (2) .

Perry Anderson tem razão. A posição de Trotsky mudou depois da vitória de Hitler. Trotsky não era infalível e, em função de muitos fatores, durante a revolução espanhola,  subestimou a necessidade de uma aliança mais ampla em defesa da República, e terminou rompendo relações com o POUM de Andreu Nin. Depois, quando da greve geral francesa durante do governo de Leon Blum e, finalmente quando da precipitação da Segunda Guerra Mundial, sobreestimou as possibilidades revolucionárias, e subestimou a necessidade de aproveitar fraturas nas camadas médias e setores burgueses.

Moreno considerava, também, ao final de sua vida nos anos oitenta, que a Segunda Guerra Mundial não deveria ser reduzida a um enfrentamento inter-imperialista. Foi uma simultaneidade de várias guerras: uma guerra contrarrevolucionária contra a URSS, uma guerra nacional na China contra o Japão, uma guerra nacional na Grécia contra a ocupação germânica, e uma guerra mundial do fascismo contra os regimes democrático-liberais, entre dois regimes de dominação. E na luta contra a ditadura militar na Argentina considerou necessário revisar a letra das teses sobre a revolução permanente elaborada por Trotsky:

Aqui temos um problema político grave, tremendo (…) parece que o fato da contrarrevolução capitalista recolocou a necessidade de que deve que haver uma revolução democrática. E que ignorar que o que se apresenta nos países adiantados onde há regimes contrarrevolucionários, também, é una revolução democrática, seria maximalismo, é tão grave como ignorar a revolução democrático-burguesa nos países atrasados. (…) Se é correto, há que mudar toda a formulação das Teses da Revolução Permanente. Me dá a impressão de que é correto e de que Trotsky apontava nessa direção. (…) Se é correto muda toda nossa estratégia com respeito aos partidos oportunistas e, em boa medida, a respeito dos partidos burgueses que se oponham ao régime contrarrevolucionário. Como um passo para a revolução socialista, nós estamos a favor de que vença um régime burguês totalmente distinto ao régime contrarrevolucionário. Assim como estávamos a favor da revolução democrático-burguesa, e dizíamos que era distinta da outra, a revolução socialista, que havia que fazê-la, que havia que derrubar na Rússia o Czar, que era una tarefa democrático-burguesa específica, há que discutir se não temos agora também uma tarefa democrático-burguesa específica, que é derrubar o regime contrarrevolucionário para que venha, ainda que seja um régime burguês. (3)

Ou seja, Moreno avançou na conclusão de que na luta contra a ditadura militar não bastava defender uma Frente de Esquerda. E se apoiava em um balanço histórico:

A guerra civil espanhola demonstrou até que grau o regime democrático-burguês era antagônico con o fascismo, não somente a classe trabalhadora e suas organizacões. A II Guerra Mundial apresenta, como mínimo, elementos similares. Sem desenvolver o tema, cremos que é preciso estudar seriamente se no foi um projeto de estender a contrarrevolução fascista imperialista a todo o mundo derrotando, principalmente, a União Soviética, mas também aos regimes democrático-burgueses europeus e norte-americano. Isto não quer dizer que a Segunda Guerra Mundial não tenha tido também um profundo conteúdo de luta inter-imperialista. O que dizemos é que é necessário precisar bem, assim como na guerra civil espanhola, qual foi o fator determinante. Foi a luta do regime fascista, essencialmente, contra a URSS, mas também contra a democracia burguesa? Ou foi o fator econômico, a disputa entre imperialismos pelo controle do mercado mundial? (4)

Ser herdeiro do melhor da tradição marxista revolucionário não deve ser repetir aquilo que os gigantes que vieram antes de nós, escreveram. Os argumentos de autoridade não podem substituir a análise concreta da situação em que estamos imersos. Precisaremos de muito rigor, mas também, imaginação revolucionária.

Notas

1 ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto,  Afrontamento, 1976, p.153/4)

2 ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto,  Afrontamento, 1976, p.153/4)

3 MORENO, Nahuel.  Escuela de cuadros: Argentina 1984.

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Consulta em 14/03/2025.

4 Moreno, Nahuel. Revoluções do século XX.

https://www.marxists.org/portugues/moreno/1984/mes/revolucoes.htm

Consulta em 14/03/2025


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