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A tradição revolucionária e a grande árvore da vida


Publicado em: 15 de março de 2025

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Henrique Canary

Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

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Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

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A árvore da vida, Gustav Klimt, 1905.

Ouça agora a Notícia:

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Chico Buarque, Roda-Viva, 1968

É bastante conhecida a imagem, publicada em muitos livros didáticos, que representa a evolução humana como uma marcha triunfal rumo à perfeição biológica. A fila começa pelo simiesco australopithecus, passa pelo grotesco homo habilis, chega ao desengonçado homo erectus, para encontrar seu desenlace no elegante homo sapiens, sempre homem e sempre branco. Há uma filosofia profunda por trás dessa imagem. Ela vê o ser humano como o produto final de um desenvolvimento que já estava destinado a ser. Todo o passado nada mais é do que a pré-história de nós mesmos. É uma visão hegeliana até a medula: o ser humano atual seria a autorrealização da ideia de ser humano. 

Mas a ciência avançou e hoje se sabe que essa imagem não corresponde à realidade. A evolução é muito melhor representada por uma árvore de galhos caoticamente desenvolvidos, muitos deles mortos porque desembocaram em becos sem saída, mas tantos outros muito bem firmados e com tanto sucesso evolutivo quanto o nosso próprio. Nós somos um minúsculo ramo dessa gigantesca árvore e nosso galho não tem absolutamente nada de especial em comparação com todos os outros. Mas as amebas não são inteligentes! Não construíram uma civilização! Mas do ponto de vista da evolução, isso não tem a menor importância. O que os genes buscam é a transmissão de uma geração a outra. Se o ser que os carrega é inteligente ou não, é composto de uma única célula ou de bilhões delas, opera uma máquina ou rasteja no lodo do pântano, isso importa muito pouco para eles. Graças a Darwin, sabemos que não somos especiais.

Muitas organizações revolucionárias olham para si mesmas e para sua história como a marcha triunfal da evolução dos velhos livros didáticos. Caminham orgulhosos à frente de uma longa fila. São “herdeiros de uma tradição”! Mais do que isso: são os únicos herdeiros. Todos os outros foram sumariamente deserdados. Veem a si mesmos como o ápice de um movimento que estava destinado a ser. Todos os outros ramos não passam de australipithecus semieretos. Na melhor das hipóteses, neanderthais desajeitados. Na prática: minha organização é a única organização revolucionária existente. Minha tradição é o único ramo válido da árvore do movimento revolucionário. Todas as outras tradições e organizações desembocaram no beco sem saída do reformismo, sectarismo, oportunismo, ultraesquerdismo ou seja lá o que for.

Mas o que é então a tradição revolucionária? O que representam as distintas organizações, correntes e partidos na grande árvore do movimento dos trabalhadores? Qual o seu lugar? Eis as perguntas que ora nos interessam.

O trotskismo e a tradição revolucionária

O movimento trotskista tem uma história da qual devemos nos orgulhar. Lutou em duras condições pela continuidade do caráter revolucionário da URSS, pela revolução política, pela revolução mundial e pela autodeterminação democrática das massas. Mas passados mais de 100 anos do surgimento da Oposição de Esquerda, devemos admitir que nossa corrente desenvolveu uma visão distorcida sobre si mesma, seus adversários políticos e seu papel na história.

Trótski rompeu com a III Internacional em 1933, quando esta, já totalmente stalinizada, se negou a chamar a Frente Única Operária para barrar a ascensão do nazismo na Alemanha. O revolucionário russo foi categórico. Com todas as letras, decretou a morte da Internacional Comunista e do Partido Comunista da URSS: “O velho partido bolchevique está morto, nenhuma força poderá ressuscitá-lo” (Trótski, A Revolução Traída, 1936). Mais tarde, em 1938, foi fundada a IV Internacional em alternativa à III Internacional. Era um passo lógico, dada a política aplicada nos anos anteriores. É verdade que Trótski batalhou para que a nova internacional fosse a fusão de grupos de origens distintas, não necessariamente “trotskistas”. Isso era assim porque o organizador do Exército Vermelho nunca considerou que a corrente que ele inspirava fosse um ramo específico do marxismo. Em sua própria opinião, ele era um mero continuador da política de Lênin e da III Internacional dos primeiros anos. Mas o fato é que isso não ocorreu. Por uma série de razões, somente os agrupamentos já pertencentes à Oposição de Esquerda Internacional, portanto já identificados com o “trotskismo” (as aspas são de Trótski), aceitaram fundar uma nova internacional. Portanto, ao invés de uma fusão de correntes distintas entre si, como foi com a III Internacional em 1919, a IV Internacional nasceu como uma organização relativamente homogênea. Além disso, quando se funda uma nova corrente, é preciso dar-lhe um sentido de propósito. Esse propósito era a continuidade da tradição. Essa ideia foi sugerida pelo próprio Trótski em uma série de documentos fundadores da IV Internacional e sempre foi muito poderosa em nosso movimento. Mas Trótski morreu dois anos depois, assassinado por um agente stalinista. A Segunda Guerra Mundial, ao contrário de suas previsões, terminou não com o colapso do capitalismo e do stalinismo, mas com o fortalecimento de ambos. Os Estados Unidos se ergueram como potência imperialista hegemônica, enquanto o stalinismo apareceu aos olhos da classe operária mundial como o responsável pela derrota do nazismo e pela expropriação da burguesia em um terço do globo terrestre. Não restava muito espaço para a IV Internacional. Mas o sentido de propósito permanecia necessário para coesionar nossa frágil organização, e agora já não tínhamos mais Trótski para repensar e equilibrar as coisas. 

Assim, como reação ao crescimento do stalinismo e consequente isolamento do trotskismo, gestou-se dentro da IV Internacional uma visão sectária e autoproclamatória de que os trotskistas seriam os únicos e verdadeiros herdeiros da tradição revolucionária bolchevique. Era compreensível que se pensasse assim porque o stalinismo, em sua marcha avassaladora, estava espezinhando tudo o que o movimento revolucionário conquistara no terreno moral, político e organizativo, jogando velhos bolcheviques na cadeia e fuzilando-os nos porões da NKVD. Ser o guardião da herança era uma honra e um privilégio. Isso afetou a maneira como os trotskistas olhavam não apenas para o stalinismo, mas inclusive para outros fenômenos e correntes da luta de classes mundial. Como explicar a pouca atenção dada pelos trotskistas em geral (há honrosas exceções) ao legado de Rosa Luxemburgo, por exemplo? Ou ainda, como explicar a desconfiança dos trotskistas para com as elaborações de Antônio Gramsci? Conceitos como “auto-organização das massas” (Rosa Luxemburgo), luta pela hegemonia e guerra de posição (Gramsci) eram vistos com desconfiança e criticados de maneira superficial como uma espécie de reformismo disfarçado.

A visão autoproclamatória predominante entre os trotskistas fez com que nosso movimento se tornasse um passivo observador da maior revolução socialista da história, um processo revolucionário dez ou vinte vezes mais importante do que a Revolução Russa: o imediato pós-guerra. Enquanto a burguesia estava sendo expropriada no Leste Europeu e na China, nosso movimento enfrentava enormes dificuldades para reconhecer o caráter operário ou pós-capitalista desses Estados. Prevalecia entre nós uma postura contemplativa e de crítica abstrata. 

Esse distanciamento dos processos reais não nos ajudava a entender os fenômenos. Como explicar, por exemplo, Fidel Castro? Como pode ser que a única revolução socialista vitoriosa da América Latina tenha passado inicialmente por fora de toda a tradição revolucionária que até então conhecíamos? Che Guevara soube antever a evolução do processo e se ligou a ele desde o seu início. Mas e nós, trotskistas? Como mínimo, é preciso reconhecer que tardamos no apoio. E depois, quando a Revolução Cubana, isolada e separada da costa dos Estados Unidos por apenas 140 quilômetros, se ligou à União Soviética para poder sobreviver, qualificamos o castrismo como parte do aparato stalinista mundial, uma caracterização que dificilmente esgota o conteúdo do fenômeno. Como explicar os Panteras Negras, partido de inspiração maoísta que foi um espinho cravado no coração do imperialismo nos anos 1960? Sabemos hoje a importância dessa experiência, mas devemos ter a humildade de admitir que historicamente ela foi muito pouco valorizada pelos trotskistas. E Chavez, um militar de carreira que dirige com mão de ferro o movimento de massas, tem ao seu lado o exército e não vai para a guerra civil aberta com sua própria burguesia? A maior parte do movimento trotskista se conformou com a caracterização de “bonapartismo de esquerda” e olhou com desconfiança para a principal experiência revolucionária latino-americana no século 21. Nos anos 1960-1970, o PCdoB ingressou na luta armada contra o regime militar no Brasil. É claro que podemos discutir se essa foi uma boa ou má política, dado o resultado da luta armada e o fato de que toda a reorganização da classe trabalhadora acabou passando pelos sindicatos a partir de meados dos anos 1970. Mas podemos negar que o PCdoB desse período estava, como mínimo, cheio de revolucionários sinceros que deram a sua vida na luta contra ditadura? 

Com o passar dos anos, adquirimos um hábito ruim. Para onde quer que olhássemos, só víamos traição e capitulação. Esse vício distorcia nossas análises e nos impedia de perceber certos fenômenos, principalmente nas viradas mais bruscas da realidade. Aplicávamos na prática uma concepção de que éramos os únicos revolucionários e que nossa estratégia com relação a todas as outras organizações era derrotá-las na luta política e arrancar-lhes militantes.

Como explicar, desde esse ponto de vista, as correntes que migravam de posições centristas para posições revolucionárias? Uma parte do movimento trotskista tinha até um termo: “trotskizantes”. Ou seja, o trotskismo se tornou para si mesmo o ponto referencial, a medida do que é ser revolucionário. Um erro epistemológico importante, alimentado por uma lógica autorreferenciada.

 Buscando a tradição revolucionária no século 21

Defendo, portanto, a tese de que o movimento trotskista no século 20 cumpriu um papel extremamente progressivo ao preservar uma série de elementos da tradição revolucionária de Marx e Lênin: sua visão sobre o internacionalismo, sobre a democracia operária, sobre a independência de classe e tantos outros temas. Sem o trotskismo, uma parte importante da tradição se perderia frente à avalanche stalinista. Mas o trotskismo errou ao se pretender monopolista da tradição revolucionária do século 20. 

Pois bem. Adentramos agora no segundo quartel do século 21. Um mundo em crise se encontra diante de nós. Tudo que era sólido se desmancha no ar, como dizia Marx. O que fazer? Não seria hora de superarmos essa visão autoindulgente? Não deveríamos admitir que o trotskismo é herdeiro apenas de uma pequena parte da tradição revolucionária? Que o legado de Marx e Lênin, rico e complexo como é, sobreviveu em diferentes formas, no interior de distintas organizações, movimentos, guerrilhas e partidos, às vezes até mesmo apesar do caráter contrarrevolucionário das direções? Não deveria o movimento socialista revolucionário no século 21 ser a superação dialética de todas as várias e fragmentárias tradições particulares do século 20?

O grande físico e astrônomo norte-americano Carl Sagan se recusava a trabalhar como consultor científico para filmes que retratassem graficamente seres alienígenas. Ele dizia que vivemos na periferia de uma galáxia insignificante, orbitando uma estrela insignificante e que por isso nossa compreensão sobre a vida fora da Terra era praticamente nula. Ele afirmava que os alienígenas, caso existissem, seriam tão diferentes de nós que era impossível retratá-los de antemão. Não necessariamente seriam humanoides, não necessariamente sua vida se basearia no carbono. Por isso, nada de representá-los. Era preciso manter a mente aberta. Assim, por sugestão de Sagan, o filme 2001, uma odisséia no espaço não nos mostra nenhum alienígena. Apenas vestígios de suas ações. Não seria o caso de termos a mesma humildade? Talvez admitir que a tradição revolucionária é uma coisa tão grandiosa que simplesmente não cabe em uma única organização? Que ser um revolucionário é algo muito mais vasto do que a nossa imaginação admite? Que existe muito mais na tradição revolucionária do que a nossa organização periférica e torpe permite antecipar? 

O século 20 foi marcado, entre outras coisas, pela fragmentação do movimento revolucionário. O século 21 precisa superar esse quadro. Precisamos de encontros, fusões, unificações. Não de todos, mas daqueles que estejam dispostos a construir a sua própria superação dialética. O século 21 é tão diferente do século 20 quanto a vida na Terra é diferente da vida em outro planeta. Portanto, nada de idealizações. Como dizia Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, a revolução só pode arrancar a sua poesia do presente, nunca do passado. A organização revolucionária do século 21 se apoia sobre os ombros de gigantes. Mas constrói o seu próprio caminho, criará a sua própria tradição.

É hora de abandonarmos a mania de querer marchar à frente do desfile triunfal de nossa própria evolução e ocuparmos a humilde posição que nos cabe na enorme árvore da tradição revolucionária marxista. Enquanto a teoria é cinza, ela continua sendo verde como a própria vida.


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