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Trump e Putin: Paz entre neofascistas e guerra contra os povos oprimidos

O novo fascismo nega abertamente o direito dos povos à autodeterminação. Os governos liberais que restam na Europa estão atônitos. Os povos oprimidos já não podem tirar partido da divergência entre grandes potências que existia no passado, mas têm agora de travar as lutas de resistência em condições mais difíceis do que nunca.


Publicado em: 21 de fevereiro de 2025

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Gilbert Achcar, de Londres

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Sergey Lavrov, ministro russo dos Negócios Estrangeiros com o princípe saudita Mohammed bin Salman bin Abdulaziz Al Saud no âmbito das conversações com os EUA. Foto do Ministério russo dos Negócios Estrangeiros/EPA/Lusa.

Ouça agora a Notícia:

Que Washington e Moscou tenham escolhido o reino saudita como local para uma reunião entre as suas delegações para discutirem as perspetivas da guerra que se desenrola na Ucrânia desde que as forças russas invadiram o país há três anos é uma ilustração clara das profundas mudanças que estão a ocorrer diante dos nossos olhos nos assuntos internacionais. A própria forma como a reunião foi organizada é totalmente coerente com o local: a administração neofascista de Donald Trump não procurou promover a paz entre as partes beligerantes no quadro do direito internacional e das Nações Unidas, como a China tem vindo a apelar sistematicamente desde o início do conflito, mas procura, pelo contrário, estabelecer um acordo direto com o regime igualmente neofascista de Vladimir Putin à custa do povo ucraniano. É, pois, perfeitamente natural que as duas partes não tenham escolhido um espaço neutro e conforme ao direito internacional, como as Nações Unidas, mas sim um espaço conforme à sua natureza, mesmo que o seu regime despótico seja de tipo tradicional.

O que torna a cena ainda mais hedionda é o fato de os EUA serem um parceiro de pleno direito na guerra genocida que está a ser travada contra o povo palestino em Gaza, parte da qual está agora a deslocar-se para a Cisjordânia. A administração Trump apressou-se mesmo a reverter as medidas limitadas que a administração anterior tinha tomado para desviar as culpas, em particular o congelamento da exportação de bombas de uma tonelada que contribuíram grandemente para a destruição da Faixa de Gaza e o extermínio da sua população, bem como para a guerra de eliminação de Israel contra o Hezbollah no Líbano. Pelo contrário, tal como esperado, exceto por aqueles que tentaram escapar à amarga realidade projetando nela os seus desejos (ver “Dois mitos sobre o cessar-fogo em Gaza”), a nova administração ultrapassou a anterior em matéria de unilateralidade sionista com o apelo de Trump à deportação sem retorno dos residentes da Faixa de Gaza, ou seja, à implementação daquilo a que o direito internacional chama “limpeza étnica” – um crime contra a humanidade.

O eixo neo-fascista sionista-americano converge com a Rússia de Putin no seu ódio racial aos povos oprimidos. Moscou tem-se destacado nesta área, não só através da sua agressão colonial contra a Ucrânia, repudiando a sua soberania nacional, mas também na região árabe, onde tem desempenhado um papel fundamental na destruição da Síria e no extermínio de grande parte dos seus habitantes, ao mesmo tempo que é abertamente cúmplice do Estado sionista, permitindo-lhe bombardear à vontade instalações iranianas na Síria (no quadro da rivalidade entre as influências russa e iraniana nesse país). O Ministro dos Negócios Estrangeiros russo chegou mesmo a comparar a guerra de Moscou na Ucrânia com a guerra de Israel em Gaza, comparando a descrição de Putin dos líderes ucranianos como nazis com a descrição sionista do Hamas como nazis. É também de salientar que a reação de Moscou ao plano criminoso de expulsão anunciado por Trump foi moderada, mesmo quando comparada com a condenação explícita expressa por alguns dos aliados tradicionais de Washington, como a França.

Agora temos os americanos envolvidos no assassínio de centenas de milhares de habitantes de Gaza a encontrarem-se com os russos envolvidos no assassínio de centenas de milhares de sírios, ambas as partes partilhando com o Estado sionista um desprezo comum pelos direitos territoriais dos povos. Encontram-se no território de um Estado árabe que, se realmente se preocupasse com o destino dos povos sírio e palestino, deveria ter sido tão hostil a ambas as partes que nem sequer lhes teria ocorrido pedir-lhe que acolhesse o seu encontro.

Aquilo a que estamos a assistir é nada mais nada menos do que a uma remodelação do mapa político do mundo, desde o confronto da Guerra Fria entre um bloco ocidental que dizia defender os valores da democracia liberal (e que os traía constantemente) e um bloco do Leste em que prevaleciam regimes ditatoriais – até à dissolução do sistema ocidental, depois do sistema de Leste, em resultado da crise mortal que atingiu a democracia liberal e da ascensão global do neofascismo (ver “A era do neofascismo e as suas peculiaridades”, 5 de fevereiro de 2025). A era da Nova Guerra Fria, que se seguiu ao colapso da União Soviética e à dissolução do seu bloco, constituiu a transição, combinando a lei da selva e o neoliberalismo desenfreado. Washington desempenhou o papel principal para que estas duas caraterísticas prevalecessem sobre o direito internacional e o desenvolvimento baseado no Estado social e na proteção do ambiente.

Estamos agora a assistir a uma convergência entre neofascistas à custa dos povos oprimidos, porque o novo fascismo, tal como o antigo, nega abertamente o direito dos povos à autodeterminação. Os governos liberais que restam na Europa estão atónitos, tendo confiado durante oito décadas na proteção americana do sistema ocidental sem ousar formar um polo mundial independente de Washington, não só militarmente, mas principalmente no domínio da política externa. O resultado é que os povos oprimidos do mundo já não podem tirar partido da divergência entre grandes potências que existia no passado mas têm agora de travar as suas lutas de resistência e de libertação em condições mais difíceis do que nunca. O caso da Palestina é a prova mais evidente deste fato.

Texto publicado originalmente em árabe no Al-Quds al-Arabi. Traduzido a partir da versão francesa publicada no blog do autor.


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