editorial
O esquerdismo pós-traumático Parte II
Os sintomas
Publicado em: 18 de fevereiro de 2025
No primeiro artigo desta série, nos detivemos em analisar dois momentos: 1) o que é o esquerdismo na concepção elaborada por Lênin nos anos de 1920; 2) o contexto que produziu o esquerdismo e suas especificidades históricas no século XXI. A compreensão de Lênin da “doença infantil do comunismo” é central já que identifica elementos estruturais do pensamento esquerdista, características que permanecem até hoje no fenômeno atual. Já a centralidade do contexto histórico que produziu o “esquerdismo pós-traumático” se dá pelo fato de que, por um lado, determina várias das questões novas do esquerdismo hoje e a maneira que as características clássicas se manifestam, assim como demonstra o alcance do trauma coletivo sofrido pela esquerda socialista e pela classe trabalhadora nas últimas décadas.
Agora, nos deteremos a analisar as três características centrais do esquerdismo pós-traumático: tanto no que diz respeito a organizações “puramente” esquerdistas, quanto no que se refere a organizações que, mesmo não sendo esquerdistas per se, reproduzem lógicas do esquerdismo. Como poderemos notar, essas três características estão intimamente ligadas e alimentam umas às outras mutuamente.
1) Purismo ideológico como mecanismo de defesa
Na estrutura de pensamento esquerdista, há um completo esquecimento da célebre máxima leninista: “flexibilidade tática, firmeza estratégica”. O debate sobre estratégia e tática é riquíssimo, mas não cabe no presente texto. Vale constatar, entretanto, que essa fórmula resume de maneira sintética a visão de Lênin sobre o tema. Um partido revolucionário que tenha clareza da sua estratégia, dos princípios políticos basilares, pode — e, na verdade, deve — explorar com destreza o arsenal tático disponível em busca daquela que melhor se aplica na realidade concreta. O esquerdismo, entretanto, vê a luta política de maneira extremamente rígida. Qualquer movimento tático — alianças, compromissos, enfrentamentos e recuos — só são desejáveis se for possível manter-se inteiramente “puro”, isto é, aplicando inteiramente a sua cartilha revolucionária. Qualquer concessão é uma traição, qualquer aliança com quem não seja idêntico a si é dar as mãos ao inimigo, qualquer recuo é uma capitulação. Não existe meio termo para o esquerdista porque flexibilidade é uma palavra fora do seu vocabulário. De todo modo, mais do que um messianismo autoproclamatório — “somos os únicos verdadeiramente marxistas, revolucionários, leninistas” e por aí vai — esta visão orientadora de suas táticas é também uma forma de proteger-se daquilo que lhe desafia: o confronto com suas ideias e a disputa das massas.
O esquerdismo traça um quadrado em volta de si e declara que qualquer coisa fora daquilo é reformismo, peleguismo, entreguismo, corrupção das mais variadas formas. Ao fazê-lo, afasta qualquer possibilidade de contato honesto com ideias contrárias às suas e que circulam entre outras organizações da esquerda. O convívio com correntes de pensamento diferentes das suas lhe apavora, pois só é possível sustentar a sua narrativa do mundo se trabalhar com caricaturas. Adentrando a realidade concreta e precisando lidar com suas contradições, o castelo de areia da sua construção ideológica desmorona. Pode acontecer o que é extremamente terrível ao esquerdismo: convencer-se de que está errado e o outro está certo.
Do mesmo modo, apavora o esquerdismo a ideia de confrontar sua linha com a realidade, com o mundo concreto no qual a classe trabalhadora está envolvida e é construtora. Os seus laços com a classe são frágeis — o que é realidade para grande parte da esquerda, esquerdista ou não —- e buscam refúgio nessa fragilidade. O objetivo, apesar de dizerem o contrário, não é tornar-se uma organização massiva: o objetivo é captar a ínfima parcela da classe trabalhadora que possui uma visão política que converge de algum modo com a visão esquerdista. Assim, podem colher o sentimento de satisfação ao conseguir estabelecer o contato com essa pequena parcela, acreditando estar captando “o melhor da vanguarda”. De todo modo, na disputa de ideias com a massa de trabalhadores, suas ideias descoladas da realidade não encontram eco entre a classe. Argumentam que a classe foi amansada pelo reformismo, corrompida pelos ideais neoliberais, que está muito atrasada por conta das derrotas causadas pelos traidores da classe — e, vejam bem, de fato há elementos de verdade na constatação do problema — e disso tiram que o equívoco não está na sua linha e o problema não é o desastre de suas táticas, mas única e exclusivamente as ações do campo adversário.
A nossa história recente demonstra o resultado desastroso desse purismo em diversos momentos, mas gostaríamos de explorar dois, a título de exemplo. Primeiro, uma das principais lutas da nossa geração até hoje: derrotar Bolsonaro eleitoralmente. Quatro anos de governo ultrarreacionário e de extrema-direita infligiram sofrimentos extremos à classe trabalhadora, especialmente durante a pandemia. Nosso país foi arrasado e atingiu o ponto mais baixo de uma série de ataques instituídos desde o golpe de 2016. Um segundo mandato seguido de Bolsonaro significaria, na melhor das hipóteses, um aprofundamento na miséria das massas trabalhadoras sem precedentes na história recente. A tarefa prioritária, na ordem do dia, era uma: impedir que Bolsonaro seguisse na presidência. Apesar do PT ter sofrido reveses significativos, explorados no primeiro artigo desta série, o partido conseguiu se reerguer nos últimos anos, especialmente após Lula deixar a prisão. O campo do esquerdismo viu mais uma das suas previsões provar-se completamente equivocada, isto é, a ideia de que o lulismo estava agonizando. Mesmo com a realidade gritando na cara, as organizações que vinham apostando em táticas estéreis e absurdas seguiram fieis a sua visão distorcida da realidade. Derrotar Bolsonaro e denunciar o lulismo, na visão destas organizações, eram tarefas no mesmo patamar. Enquanto parte importante da esquerda e de forças liberais contrárias a Bolsonaro juntaram-se à campanha de Lula, outras 3 candidaturas de esquerda foram lançadas (UP, PCB e PSTU). Os resultados eleitorais destas candidaturas variaram dentro do irrisório, não impactaram o resultado geral da luta eleitoral contra o bolsonarismo. De todo modo, a questão principal não é essa. A questão principal é a cegueira política de tais organizações. Tal cegueira não atingiu apenas estas pequenas correntes, mas também correntes de dentro do PSOL — o maior partido de esquerda depois do PT — que defenderam fervorosamente a candidatura própria, não apenas levantando uma disputa política, mas uma verdadeira guerra contra a direção do PSOL por sua capitulação e por transformar o partido num “puxadinho do PT” — o que nos parece ser puro discurso já que, passado esse momento, correram para ser vices do PT em 2022 e 2024, como é o caso no Rio Grande do Sul onde o MES seguiu exatamente esse processo: primeiro esbravejar contra a traição para, na outra semana, declarar-se vice do PT.
A oposição do esquerdismo à candidatura de Lula se deu por duas bases: Uma, a crença de que uma alternativa “radical” ao lulismo poderia atrair a classe trabalhadora; a outra, a incapacidade de conceber alianças que signifique concessões. Qualquer concessão seria uma traição, o programa do partido revolucionário da classe trabalhadora deve ser puro, refletir a totalidade da sua crítica ao capital. Nos é útil a caracterização que Gramsci faz dos maximalistas, os esquerdistas do movimento comunista italiano:
Ele [o maximalista nas fileiras comunistas] é intransigente, e não oportunista. Mas ele também acredita que seria inútil agir e lutar dia após dia; ele está apenas esperando o grande dia. As massas – ele diz – não podem deixar de vir até nós, porque a situação objetiva leva-os à revolução. Então vamos esperar, sem todas essas histórias sobre manobras táticas e expedientes semelhantes (…) O camarada Lenin nos ensinou que, para derrotar o nosso inimigo de classe, que é forte, que tem muitos meios e reservas à sua disposição, devemos explorar todas as brechas à sua frente e devemos usar todos os aliados possíveis, mesmo que sejam incertos, vacilantes ou provisórios. Ele nos ensinou que, em uma guerra de exércitos, não se pode atingir o objetivo estratégico, que é a destruição do inimigo e a ocupação de seu território, sem antes ter atingido uma série de objetivos táticos – que visam a desmembrar o inimigo – e depois confrontá-lo no campo. (“Maximalismo e extremismo”, 1925. Destaques nossos)
Para Gramsci e Lênin o esquerdismo fia-se em uma leitura equivocada da realidade e da correlação de forças (“o capitalismo fracassou, basta indicarmos o caminho e o proletariado nos seguirá”) e numa fé fundamentalista aos seus princípios de tal modo que envolver-se com outras organizações ou firmar qualquer tipo de compromisso com qualquer força que considere fora do “campo revolucionário” é capitular aos inimigos da classe. Foi assim no tempo dos mestres do século passado, durante todo o período de governos progressistas na América Latina, na oposição à extrema-direita e segue até hoje. Outro exemplo da postura catastrófica do esquerdismo é particularmente recente e diz respeito à impressionante luta contra a escala 6×1. Num momento como o que vivemos, o movimento Vida Além do Trabalho e a eleição de Rick Azevedo no Rio de Janeiro são elementos muito progressivos, um dos poucos combates recentes que conseguimos ganhar a opinião de contingentes significativas das massas trabalhadoras. É claro, nada disso ocorre sem contradições. Qual a postura do esquerdismo? Atacar o que consideram recuado na proposta do VAT, Rick e Erika Hilton, lançando-se na construção de um espaço próprio, com seu programa puro e com suas demandas radicalíssimas — independentemente se tem chances ou não de passar no parlamento. Somar-se a um importante movimento com uma pauta com grande popularidade nas massas é aceitar um programa rebaixado, já construir uma frente ultra-revolucionária, mesmo que composta basicamente pelos seus próprios militantes, é comunista!
Em suma, é indispensável para o esquerdismo que o critério para ser um “verdadeiro marxista revolucionário” seja tão específico e tão irreal que ninguém possa se enquadrar nele, caso contrário a complexidade da realidade destruiria o simplismo da concepção esquerdista. De tal modo, o purismo ideológico do esquerdismo lhe protege da realidade em si e das muitas falhas na sua análise da luta de classes hoje.
2) Um estado paranoide permanente
Além da necessidade de um inimigo externo, o esquerdismo necessita instaurar um constante estado de vigilância interno. Como a régua pela qual medem o seu padrão revolucionário é altíssima, não são apenas os adversários que não cumprem os requisitos, podem também ter nas suas fileiras elementos com desvios oportunistas e reformistas. Todo debate, por mais tático que seja, leva a grandes debates sobre a estratégia revolucionária e os princípios que os guiam. Toda inovação tática é vista como desvio, reformismo, capitulação e outros adjetivos típicos do linguajar esquerdista. A política para o cotidiano não é balizada pelos princípios, mas os princípios são transportados mecanicamente para os desafios concretos da realidade, sem levar em consideração as mediações necessárias para a política. É nessa base que o estado paranoide do esquerdismo se sustenta: Do lado de fora, inimigos querendo destruir o partido revolucionário. Do lado de dentro, possíveis traidores — intencional ou não intencionalmente, já que o esquerdismo também concede a misericórdia de considerar que a pessoa não está agindo de má-fé, mas foi corrompida por um “desvio oportunista”. A lógica da purificação interna que o esquerdismo aplica não é nova e muito menos exclusiva a ele. Trata-se, na verdade, de uma prática comum de seitas. Por mais que organizações esquerdistas não sejam cultos religiosos, suas práticas de “disciplina” são muito semelhantes. Essas práticas consistem em 3 elementos que buscam solidificar a coesão interna e impedir que o dogma seja questionado. Essas práticas consistem em: a) Reafirmar a lealdade através de uma disciplina autoritária; b) Criar um estado de insegurança que justifique a vigilância; c) “Purificação ideológica” pela exclusão da dissidência.
a) O esquerdismo define que existe uma doutrina revolucionária “pura”, o verdadeiro marxismo. Essa doutrina é fundamentada na leitura ortodoxa e dogmática de Marx e também de seus continuadores, estes a depender do gosto da organização. O que é importa é que monta-se o dogma e ele é a verdade, tal qual a bíblia para um cristão fundamentalista não pode faltar-lhe nem o pingo de um i ou uma vírgula. A lealdade à teoria oficial do partido é frequentemente usada como uma medida para distinguir os que são considerados “companheiros” de verdadeira fé revolucionária daqueles que se desviam ou se deixam seduzir por influências externas, como o reformismo ou o oportunismo. Define-se que o alinhamento total à linha oficial é condição indispensável. O estudo da teoria deixa de ser estudo e passa a ser a absorção das palavras imutáveis dos mestres. Os debates políticos tornam-se repetições de máximas revolucionárias e um acumulado de citações dos revolucionários marxistas do passado. Em vez de incentivar a reflexão crítica e a adaptação das ideias à realidade em constante mudança, o esquerdismo busca garantir que a ideologia permaneça pura e imutável. Assim, o questionamento é dissidência. A adaptação à realidade é revisionismo. A ousadia tática é oportunismo. Qualquer coisa fora da linha traçada pelo partido é traição.
b) Também semelhante às seitas religiosas, a lealdade ao purismo esquerdista cria uma incessável insegurança na sua militância. Se por um lado a fé cega no seu revolucionarismo messiânico concede uma paz espiritual ao esquerdista, a possibilidade de vacilação sua ou dos seus camaradas lhe perturba constantemente. Toda posição que pareça minimamente destoante é vista com desconfiança, mas também todo pensamento dissonante causa insegurança do militante consigo mesmo: “Estaria eu sendo influenciado pelo oportunismo?”. O medo de ser acusado de qualquer adjetivo no vocabulário de ofensas esquerdistas é o maior terror — e maior ofensa — de todo militante dessas organizações. Se o militante é jovem, começando sua trajetória na organização, ele é educado da maneira que o esquerdismo sabe: “Não pense essas coisas, são bobagens reformistas, oportunistas, desvios, revisionismos, infiltração de um pensamento pequeno-burguês”. Se o militante é mais experiente, entretanto, o que lhe espera é o ostracismo e a caricatura até a sua expulsão ou, tratando-se de diferenças mais disseminadas na organização, o racha.
c) Assim, os expurgos e rachas tornaram-se prática comum na esquerda e, em especial, no esquerdismo. Toda diferença tática é levada até as últimas consequências. Toda disputa política é uma luta à morte pelo partido, por sua moral marxista, por seu caráter revolucionário, por seus princípios fundantes. Os derrotados nas disputas não são apenas camaradas com diferenças, mas devem ser submetidos à direção e sua linha aniquilada. A lógica é ultimatista: ou aceitam ou caiam fora. E se continuarem com essa ideia, querendo corromper nossa militância, serão sumariamente expulsos. O racha ou a expulsão, na lógica esquerdista, não é um problema ou uma tragédia para a construção revolucionária: faz parte do processo normal de purificação do partido revolucionário. E é assim que encontramos dezenas de partidos “verdadeiramente revolucionários” na atualidade.
Os rachas são uma característica clássica do esquerdismo, de tal modo que o racha tornou-se parte da caricatura. Mais do que uma piada ou sinal do fracasso da linha esquerdista, é um problema profundo que atinge toda a esquerda. As últimas décadas são fartas de exemplos do tipo, muitos vindo da corrente trotskista — uma análise para outro momento. Mas, como demonstração de que o esquerdismo não é privilégio de uma corrente ou outra, podemos falar de um dos exemplos mais recentes e explosivos: o racha do PCB e surgimento do PCBR. A esquerda em geral acompanhou, ao vivo, a última grande crise do “Partidão” ocorrida entre 2023 e 2024. O nível do debate interno estava tão fracional e fratricida que as polêmicas e acusações extrapolaram os debates internos e percorreram as redes com ataques de ambos os lados. De um, ligado a maioria da direção do partido, acusavam os dissidentes de estarem expondo o partido, de serem indisciplinados, uma minoria barulhenta que não aceita perder nos processos internos. Do outro, os dissidentes acusavam a direção de serem autoritários, de silenciar o debate interno e, é claro, de quererem capitular ao reformismo. Basicamente, duas alas de um mesmo partido esquerdista reproduzindo as mesmas práticas. O que impressiona no exemplo é o fato de dar-se num partido que acreditava estar acima do “fraccionismo tipicamente trotskista”, sem notar que as semelhanças entre eles e as seitas de outras correntes são muito maiores que as diferenças, e também pela violência dos ataques em ambos os lados. Para qualquer uma das alas a outra era traidora: dos princípios marxistas, da visão revolucionária, da classe trabalhadora. O resultado foi a explosão de um partido já pequeno e com limitadíssima influência política. Agora são dois e a influência se dividiu. Um lado mantém o que tinha de influência sindical e tenta se reestabelecer como “Partidão”. O outro arrastou sua influência no movimento estudantil e avança velozmente para posições mais esquerdistas, mais revolucionaristas, mais descoladas da realidade. Ambos acreditam terem purificado seu partido.
3) Esquematismo revolucionarista
É no esquematismo que se resume o fundamento do esquerdismo. Distantes da realidade, alienados na sua busca pela pureza ideológica, rodeado de “inimigos”, o esquerdismo ignora a imagem real do mundo e cria a sua própria imagem, completamente distorcida. O dogma estrutura o esquema e o esquema dá consequência a ele. É através do esquema que o esquerdismo encontra respostas rápidas e fáceis para problemas difíceis e complexos. É claro, o central não é a resposta estar alinhada com a realidade, mas corresponder ao dogma da organização. Todo e qualquer desafio da conjuntura pode ser solucionado abrindo os livros sagrados dos mestres e encontrando respostas que eles deram no seu tempo histórico, correspondendo a sua realidade material, mas que o esquerdismo encontra paralelos com a sua realidade e visa transportar mecanicamente. No esquema o esquerdismo já tem todas as respostas para os problemas atuais e para os que ainda virão, já que para eles a criatividade revolucionária é, na maioria das vezes, vista como revisionismo ou distorção do marxismo. Assim, não há questão que Marx, Lênin, Trotsky, Mao ou Stálin não tenham respondido.
Ao tratar de fenômenos atuais, o esquerdismo os vê de maneira simplista. Se é verdade que a história se repete, como tragédia e depois farsa, o esquerdista acha que a história é apenas repetição. Ascensão do fascismo? Vamos ler os clássicos e ver como eles combateram o fascismo do seu tempo, para então replicar. Um governo popular e reformista? Vamos ver como os mestres se posicionaram diante de Kerensky, Blum e Noske. Frente Única, Popular ou Ampla? Bom, só nos resta ler os debates da III sobre o tema e as polêmicas dos anos 1930. Ignoram por completo que o marxismo é uma ciência viva e em constante transformação porque visa entender e responder à realidade do tempo em que é aplicado. Isto deve significar, por óbvio, fazer coisas semelhantes e coisas diferentes do que foram feitas no passado. Mas não para o esquerdismo, pois o passado é sagrado.
No esquematismo esquerdista tudo é lá ou cá, não há meio termos. É por isto que organizações esquerdistas viram as mobilizações contra Dilma e o PT, a partir de 2015, como terreno em disputa. O PSTU, um baluarte do esquerdismo há tempos, adotou o Fora Todos com a intenção de disputar a “direção” das manifestações, já que viam nelas elementos progressistas. Ora, se havia um movimento massivo de oposição a um governo de conciliação de classes, então o esquema já dava a resposta: organizar uma oposição de esquerda ao governo e “ganhar as massas”. Não passou pela visão do PSTU os elementos fascistas e golpistas das mobilizações, algo que o próprio PSTU tem dificuldade — sendo generoso — em admitir até hoje. De maneira semelhante, o MES fez coro e defendeu a Lava-Jato, uma campanha para incapacitar o PT e a esquerda como um todo, dando espaço para o crescimento da extrema-direita. Para o MES, já que a classe média e parte da classe trabalhadora estava se movimentando contra o governo e o partido reformista com referência na classe trabalhadora, então havia elementos progressivos e, assim como o PSTU, via como um espaço de disputa. Não é preciso falar muito para explicar o quão vexatório todo esse processo foi para as correntes esquerdistas, mas para todo o movimento socialista no Brasil. Bolsonaro e o bolsonarismo se alimentaram e cresceram a partir dessas movimentações. Moro foi ministro de Bolsonaro. O esquerdismo foi linha auxiliar do fascismo, mesmo acreditando fervorosamente estar a serviço da revolução.
São compreensões que se baseiam em fórmulas prontas, não feitas pelos mestres do marxismo, mas tomadas de processos liderados por esses mestres e vulgarizadas, simplificadas, para então tornarem-se um passo a passo ao esquerdismo. A situação segue a mesma, ou pior, agora com o governo Lula III. Elementos como a onda neofascista no mundo, o peso avassalador que o bolsonarismo segue tendo, um governo de conciliação nessas condições, tudo isto não é analisado pelo esquerdismo como elementos novos, como desafios do nosso tempo. Basta reeditar exemplos de oposição socialista a governos reformistas e pronto. É assim que o esquerdismo segue atuando, sendo necessário uma breve passada nos materiais de PCBR, MRT, PSTU, MES e outros para constatar que as fórmulas de hoje são as mesmas dos governos Lula I e II, governo Dilma e, inclusive, governos progressistas do século passado. Assim, para os esquerdistas, a revolução está sempre por perto. Toda movimentação ou insatisfação que constatam na sociedade é o trem da revolução passando. Basta uma fagulha e o incêndio começará, a classe vai dar-se conta do papel cumprindo pelos dirigentes reformistas e então, ignorando o fascismo e seus apelos, se jogará na luta revolucionária encabeçada pelos dirigentes revolucionários da classe trabalhadora. “Se os mestres fizeram e deu certo, por que não daria certo agora?” o esquerdista se pergunta, batendo a cabeça contra a realidade e se questionando por que dói.
Lênin jamais utilizou “esquerdismo” como ofensa. Pelo contrário, o revolucionário bolchevique foi duro, rigorosamente crítico, mas seu empenho não era desmoralizar adversários, mas apontar os equívocos e consequências do esquerdismo para, assim, auxiliar o movimento comunistas na superação desses desvios. Essa deve ser a intenção de qualquer um que deseje abordar o tema do esquerdismo e é, sem dúvidas, a intenção nessa série que estamos escrevendo. Especialmente pelo fato de que as características aqui descritas não se limitam a organizações “puramente esquerdistas”, sendo encontradas em maior ou menor grau, com maior ou menor intensidade, em praticamente toda a esquerda. Por esta razão, compreender o esquerdismo é central para que a esquerda atual consiga superar seu fraccionismo e vícios, estando a altura dos desafios do nosso tempo. É sobre isso que trataremos no último artigo desta série.
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