cultura
A Escola, a vida e a cidade
Publicado em: 16 de fevereiro de 2025
Arte: NANDA
Em um texto intitulado A Escola e a Vida, de 1946, Mário Pedrosa (1) analisa uma das primeiras exposições (2) realizadas por estudantes do Instituto de Belas Artes de Belo Horizonte, atual Escola Guignard. Ao concluir sua crítica sobre a mostra, ele lança a seguinte provocação:
“Esperemos novas florações para ver o amadurecimento desses artistas, e sobretudo a capacidade de libertar-se do mestre, de desgarrar-se, de transbordar, com mais calor, da escola para a vida, que é o grande posto dos criadores.” (3)
Quase 80 anos depois daquela exposição, a Escola Guignard promove uma série de mostras com trabalhos de alunos que concluem suas habilitações (4) em desenho, gravura, escultura, fotografia e outras técnicas. Dentre mais de 70 estudantes, cujas obras merecem atenção, destaca-se uma série que, em minha percepção, sintetiza de maneira exemplar o desejo expresso por Pedrosa: que os discípulos de Guignard transcendam a influência do mestre, rompam com a zona de conforto acadêmico e transbordem para a vida. Trata-se da série Esperança, de Fernanda Midori Yada (NANDA).
Fernanda parece encapsular de maneira visceral o chamado crítico de Mário Pedrosa para que os artistas transcendam os limites da escola e do mestre, mergulhando na autonomia criativa e na conexão com a vida. Ao analisar sua obra à luz do texto de 1946, é possível traçar paralelos entre o desejo de Pedrosa e as escolhas estéticas, técnicas e conceituais de NANDA. Vamos explorar como sua produção pode representar esse “transbordar” para além da formação acadêmica:
O título Esperança não é casual. Nosso tempo marcado por crises ecológicas, desigualdades e desilusões coletivas, a série pode operar como um gesto de resistência. Aqui, o “calor” mencionado por Pedrosa se traduz em obras que pulsam com urgência, desafiando a sobriedade acadêmica, em composições que evocam movimento e transformação.
Se partirmos da definição de que a cidade é um organismo vivo e dinâmico — reflexo da complexidade das interações humanas —, é possível afirmar que sua essência transcende a geografia física: ela se constitui como um signo das diversidades e dos desafios coletivos de cada época. Em suas estruturas, materializam-se as contradições políticas, econômicas e ambientais inerentes à sociedade.
O desenvolvimento do atual modo de produção revela-se em urbes marcadas por edificações monumentais e espaços urbanos que regimentam o tempo. Tornamo-nos escravos do “tempo a ganhar” e do “tempo a perder”, imersos em uma mobilidade caótica que só existe — quando existe — para sustentar a exploração cotidiana. A grandiosidade dos arranha-céus, símbolos do poder capitalista, parece sussurrar ao indivíduo: “Você não é nada”. Essa arquitetura do excesso, ao mesmo tempo que impõe admiração, reduz o humano à insignificância, esmagando-o sob o peso de um sistema que prioriza o acúmulo sobre a dignidade.
Ao desenhar com nanquim uma cidade e suas edificações com uma figura humana aprisionada entre os prédios, seus traços firmes realizam a denúncia dessa tentativa de redução dos indivíduos à insignificância diante do capital. Mas a série não se resume à denúncia: ela também é sobre reflexões. Assim como a cidade, é movimento.
Movimento que carrega em seu fluxo as contradições acumuladas no seio da sociedade. Em seu percurso, aspectos antagônicos colidem: o progresso tecnológico contrasta com a exclusão social; a promessa de modernidade esbarra na herança de desigualdades históricas. São justamente essas colisões que geram fissuras no tecido urbano — rachaduras por onde emergem revoltas e revoluções. Oprimida, mas não aprisionada, a arte de NANDA tenta derrubar, domar nem que simbolicamente os prédios que oprimem, convidando-nos a refletir sobre um caminho a ser tomado diante desse esmagamento que tentamos combater.
Assim, em NANDA, sua arte nos revela a urbe não apenas como espaço geográfico, mas como campo de tensões. Palco de conflitos e resistências, ela encarna a luta entre forças opostas: a dominação e a liberdade, o controle e a subversão. Nas ruas, nas praças, nas fachadas de concreto, escreve-se a história de quem a habita — uma narrativa sempre inacabada, tão contraditória quanto a própria humanidade.
O título, o contexto e as referências sugerem que NANDA está trilhando um caminho que honra o passado sem se aprisionar a ele — exatamente o que Pedrosa celebrava como triunfo da criação. Mais que isso, é um grito para que vençamos a opressão do capital.
Pablo Henrique é bacharel em Artes Plástica pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais.
Notas
1 Mário Xavier de Andrade Pedrosa foi um advogado, escritor, jornalista, crítico de arte e ativista político brasileiro, fundador do trotskismo no Brasil.
2 Inaugurada em 1 de novembro de 1946 na sede da Associação Brasileira de Imprensa no Rio de Janeiro.
3 Obra crítica, vol. 1: Das tendências sociais da arte à natureza afetiva da forma (1927 a 1951) Companhia das Letras pág 147.
4 Durante os próximos dias estarão expostos os trabalhos divididos em três exposições, de 11/02 a 09/03 no Palácio das Artes Av. Afonso Pena, 1537 – Centro, Belo Horizonte. Do dia 13/02 a 23/03 no Museo Mineiro Av. João Pinheiro, 342 – Lourdes, Belo Horizonte. Na galeria da Escola Guignard do dia 14/02 a 15/03 Rua Ascânio Burlamarque, 540. Bairro Mangabeiras Belo Horizonte – MG.
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