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No Pará, indígenas, quilombolas e professores dão aula sobre luta e consciência de classe
Publicado em: 12 de fevereiro de 2025
Em meio a um cenário de apreensão e incertezas, no qual tragédias climáticas e políticas ameaçam nossa esperança no futuro, a vitória histórica de uma aliança inesperada entre povos indígenas, quilombolas e professores surge como uma brisa refrescante de ar puro, oxigenando um cenário político estagnado pela hegemonia de velhos coronéis locais e de lideranças sociais submetidas a eles.
Após 29 dias de uma heróica ocupação na sede da Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC-PA), em Belém, combinada ao bloqueio da BR-163 (Cuiabá/Santarém), na altura do município de Belterra, no Território Indígena Munduruku Takauara e Bragança, o governo do Pará, finalmente revogou a Lei 10.820/24, que retirava direitos dos professores da rede pública estadual de educação e precarizava ainda mais o ensino oferecido às comunidades indígenas e quilombolas nos rincões da Amazônia, em uma sessão histórica na Assembleia Legislativa do Estado (ALEPA), nesta quarta-feira (12/02), que marcou o desfecho da principal mobilizações da classe trabalhadora no país, neste início de 2025.
Embora a BR-163 tenha sido desocupada, há dias, em cumprimento a uma decisão judicial, e a assembleia do Sindicato das Trabalhadoras e dos Trabalhadores da Educação Pública do Estado do Pará (SINTEPP), realizada na segunda-feira (10/02), tenha decidido pela suspensão da greve dos professores, lideranças indígenas e quilombolas decidiram manter a ocupação da sede da SEDUC-PA em Belém, até que a ALEPA publicasse a revogação no diário oficial, uma postura que acabou antecipando a votação, inicialmente marcada para o dia 18/02, para a manhã desta quarta-feira (12/02), quando, por unanimidade, a principal exigência do movimento unificado de indígenas, quilombolas e profissionais da educação pública estadual foi finalmente atendida, com a revogação da lei 10.820/2024.
O momento é de celebração. Mas quais lições podemos tirar desta mobilização histórica? O que esta aliança improvável entre movimentos sociais tão diversos, que se provou forte o suficiente para colocar em cheque um governo que, até dezembro de 2024, contava com nada menos de 76,74% de aprovação (segundo o Instituto de Pesquisas Doxa), pode ensinar às lutas sociais futuras e em curso por todo o Brasil?
Pará: onde a riqueza da floresta contrasta com a miséria na educação
O Pará é segundo maior estado brasileiro, com uma área equivalente à Angola ou duas vezes a área da Ucrânia, embora figure entre os 10 estados com a menor densidade demográfica do Brasil, o Pará é também o estado mais populoso da Região Amazônica e tem se destacado por liderar o ranking de conflitos fundiários, de assassinatos de lideranças no campo e de desmatamento na região. Não por acaso é, também, o estado mais rico, concentrando 28,5% do PIB da Amazônia Legal, e ocupa uma posição estratégica, na confluência entre os biomas amazônico e atlântico, historicamente servindo como principal plataforma de exportação das riquezas de toda a região.
Este tamanho e importância na exploração de uma região tão rica e estratégica como a Amazônia é o que explica a disposição e a truculência das oligarquias locais em atacar direitos básicos da população, como o acesso à educação de qualidade. Até 2021, o Pará figurava na 26ª posição no ranking da educação brasileira, mas com a reeleição de Hélder Barbalho, em 2022, e a nomeação de Rossieli Soares, ex-ministro da Educação de Michel Temer e ex-secretário da educação de João Doria, para chefiar a Secretaria deb Educação do estado, o Pará subiu nada menos do que 20 posições no ranking em 2024, ao adotar o sistema de aprovação automática, no qual o aluno avança para a série seguinte independentemente do seu desempenho acadêmico, o que permitiu melhorar artificialmente o índice de desenvolvimento da educação básica (IDEB).
As manobras contra a educação paraense, implementadas por Rossieli e Hélder Barbalho, não pararam por aí. No dia 18 de dezembro de 2024, enquanto a sociedade paraense se preparava para as festas de fim de ano, sob gritos de protesto dos professores e o barulho dos tiros de borracha e das bombas de efeito moral da Polícia Militar, foi votada na ALEPA, em regime de urgência, com 10 votos contrários e 28 a favor, a Lei 10.820/2024, que revogou todo o arcabouço legal que assegurava direitos duramente conquistados pelos professores, ao longo de décadas, como a diminuição significativa das gratificações devidas àqueles que atuam no Sistema de Organização Modular de Ensino (SOME), levando o ensino presencial às comunidades mais distantes da amazônia paraense, sejam elas indígenas, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas ou se pequenos agricultores. A famigerada lei foi sancionada pelo governador no dia seguinte. Mesmo pegos de surpresa, em um período crítico de fechamento do ano letivo, os professores ofereceram resistência.
Porém, a luta dos professores foi contra um adversário extremamente difícil, Hélder Barbalho, o jovem e carismático herdeiro da mais poderosa oligarquia paraense, filho de senador e de deputada federal, irmão de ministro, marido de conselheira do Tribunal de Contas do Estado e detentor de um império de mídia que inclui jornais impressos, portais de notícias e emissoras de rádio e televisão, que, por mais incrível e trágico que possa parecer, conseguiu se firmar no Pará como única alternativa viável ao Bolsonarismo, contando, para tanto, com as bênçãos do PT e do PCdoB, ao ponto de ser bem cotado, pelos comentarista políticos nacionais, como um dos favoritos na disputa interna do MDB para ser indicado como vice na chapa de Lula em 2026.
A hegemonia dos Barbalho na cena política paraense chegou a tal ponto que nas eleições municipais de 2024, sozinho, o partido do governador, MDB, elegeu 85 dos 144 prefeitos no estado, 59% do total, incluindo a capital, Belém, e Santarém, a maior metrópole paraense fora da região metropolitana de Belém. Derrotar o projeto do governo do estado de desmonte da educação parecia impossível, até que o imponderável entrou em ação.
A confluência entre a luta dos professores e dos povos da floresta
A criação do Ministério dos Povos Indígenas, no terceiro mandato do presidente Lula, abriu a oportunidade para que governos estaduais também pudessem criar suas proprias secretarias dedicadas ao tema. No Pará, a Secretaria Estadual dos Povos Indígenas (SEPI) foi criada em abril de 2023, com a nomeação de Puyr Tembé, que até então ocupava a presidência da Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (FEPIPA), a principal entidade a representar os povos indígenas do estado junto à Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). No entanto, a criação da SEPI não parece ter servido para diminuir as tensões entre o governo Hélder Barbalho e o movimento indígena paraense. Dois dos principais pontos de atrito têm sido a insistência do governo no projeto da Ferrogrão e a polêmica sobre a venda dos créditos de carbono.
A Ferrogrão é o projeto de construção de ferrovia que ligará os municípios de Sinop (MT) e Itaituba (PA), com a finalidade de ampliar o escoamento da produção de grãos do Mato Grosso e do Pará por meio do rio Tapajós. Além de todo o impacto ambiental e social do monocultivo mecanizado da soja no oeste do Pará, o traçado previsto pelo Governo paraense para esta ferrovia afetará seis terras indígenas, 17 unidades de conservação e três povos isolados. E o projeto tem avançado sem que o governo Hélder observe todos os protocolos de consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, um tratado que visa proteger os direitos dos povos indígenas. Além disso, Hélder Barbalho, tem sido acusado de negociar e vender créditos de carbono referentes à floresta preservada em terras indígenas sem a devida anuência de entidades indígenas de base. Então, o desmonte da estrutura que possibilita a educação presencial nos territórios indígenas foi apenas a gota d’água que permitiu que entidades de base do movimento indígena superassem o bloqueio de uma direção comprometida com o governo do estado, uma vez que, o mesmo grupo a frente da FEPIPA, compõem atualmente governo estadual através da SEPI.
Esta rebelião de base, que ofereceu aos professores poderosos aliados, ainda mais empoderados por uma visibilidade internacional no contexto da iminente realização da primeira Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas realizada em território amazônico, só foi possível graças à força do movimento e retomada do pertencimento étnico de comunidades indígenas do Baixo Tapajós e das associações lideradas por mulheres Munduruku do Médio e Alto Tapajós, respectivamente representadas nas figuras de Auricélia Arapium e Alessandra Korap, duas das principais lideranças indígenas presentes desde a primeira hora da ocupação da SEDUC em Belém, servindo de exemplo para que quilombolas e indígenas de outras regiões do estado se somassem a luta em defesa da Educação.
Lições para o próprio movimento indígena
Não foi por acaso que o Conselho Indígena do Tapajós e Arapiuns (CITA) e as associações lideradas por Mulheres Indígenas no Médio e Alto Tapajós, como a Associação Indígena Pariri, estiveram na linha de frente, apontando os rumos para esta mobilização histórica que impôs uma dura derrota ao governo Hélder Barbalho.
O CITA representa todo um riquíssimo processo de retomada de territórios e do pertencimento étnico de comunidades que não eram reconhecidas como indígenas pelo Estado Brasileiro até o final dos anos 90. Desde então, com o avanço da soja e o acirramento dos conflitos fundiários no Baixo Tapajós, varias comunidades, antes classificadas como caboclas, passaram a reclamar o reconhecimento legal como indígenas, assim como os correspondentes direitos étnicos, enfrentando discriminação no interior do próprio movimento indígena, o que possibilitou que este setor estivesse mais disposto a romper com o isolacionismo que tem caracterizado o movimento indígena institucional e estabelecer diálogos frutíferos com outros segmentos dos movimentos sociais, incluindo o movimento sindical de professores.
Já as Associações de Mulheres Indígenas do Médio e Alto Tapajós, cuja principal referência na luta em curso no Pará foi a Associação Indígena Pariri, liderada por Alessandra Korap Munduruku, foram fundamentais para conferir ainda mais legitimidade ao movimento, devido ao tradicionalismo e prestígio das comunidades que representam diante de organizações nacionais e internacionais dedicadas às causas indígenas, além da experiência de suas lideranças em enfrentar o conservadorismo e o machismo no interior do próprio movimento indígena institucionalizado.
Assim, foi possível às ocupações lideradas por indígenas no Pará, cruzarem fraturas no interior do próprio movimento indígena, agregando, não apenas a força do movimento indígena de retomada nos territórios, mas o movimentos indígena de contexto urbano, historicamente marginalizados no interior do movimento indígena institucional embora indígenas fora dos territórios representem quase dois terços da população indígena no Brasil, e formar alianças com outros segmentos da sociedade em torno de um referencial de classe. Compreendendo que muitos professores que atuam em territórios indígenas não são indígenas e precisam de condições dignas de trabalho, e que muitos indígenas que conseguiram se formar como professores, graças às conquistas como a política de cotas, foram forçados à trabalhar fora dos territórios e não seriam beneficiados por políticas visando exclusivamente a educação nos territórios. E compreendendo, também, que o ataque à educação é um ataque aos territórios, uma vez que, sem aceso à educação, os jovens são forçados à migrar para as cidades deixando seus territórios vulneráveis à invasão de sojeiros, garimpeiros, madeireiros e outros inimigos dos povos indígenas.
Das lutas e vitórias recentes do movimento indígena no Pará, podemos extrair três importante lições para as lutas: 1. Não basta ser indígena, é preciso ter compromisso com nossas lutas coletivas; 2. Governo é governo e movimento é movimento; 3. Aliados são todos aqueles dispostos a lutar ao nosso lado e é nas lutas que podemos identificá-los.
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