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Revista vexatória e a normalização da tortura sexual: o que está em jogo na decisão do STF sobre o ARE 969520?


Publicado em: 11 de fevereiro de 2025

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Na última semana foi retomado o julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 969520 no Supremo Tribunal Federal, que está analisando se uma prova obtida por meio de revista intima ou vexatória é ilegal e, por isso, inválida. Essa ação possui repercussão geral, portanto muito está em jogo. Na sessão virtual eram seis votos, incluindo do relator, determinando a prática enquanto ilegal e quatro votos contrários, mas o pedido de vista abre um cenário novo: coloca o julgamento em sessões presenciais, podendo continuar a qualquer momento com a reversão dos votos já proferidos. 

Durante a leitura do voto do Ministro Alexandre de Moraes na última quinta-feira (06/02/2025), foi possível compreender a gravidade do que está em curso (1). Os argumentos foram aviltantes e deveriam ser entendidos enquanto tal por todos nós, principalmente nós mulheres. Para que seu caráter racista e misógino seja demarcado, primeiro demonstraremos as (in)verdades e mitos que foram mencionados no julgamento, a começar pelo que é o direito à visita dos presos e porque não deve ser flexibilizado tal direito.

Visita não é favor e não é benefício, é direito do preso e da família ao convívio. Isso está previsto nos Regras de Mandela, nos Princípios e Boas Práticas para Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade da OEA, pela de Lei de Execuções Penais, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas já que é tão importante, por que uma revista impediria uma família que realmente quer se encontrar? Não bastaria aceitar ser revistada? 

A revista vexatória não tem absolutamente nenhuma conexão com o que ocorre em aeroportos ou estádios. Aquela revista é a pessoal. A revista íntima ou vexatória começa com desnudamento forçado na frente de terceiros, que por si só já é vedado. Mas ela ainda é agravada pelo agachamento com exercícios de força no ventre, por vezes colocando espelho para ver o interior do corpo da pessoa que está sendo revistada, somados a pedidos para que ela abra seus órgãos genitais e anus e até mesmo toques por parte de agentes.

Para quem não vivenciou tal experiência talvez considere algo normal a ser realizado pelo poder público, mas não devemos normalizar que mães, avós, filhas, companheiras de diversas idades, e até mesmo crianças de colo possam ser submetidas sistematicamente a tal tipo de violação. Estas mulheres, em sua maioria negras, faveladas e/ou periféricas, estão sendo expostas a tal indignidade toda e cada vez que visitam um familiar ou amigo e não repudiar é sedimentar uma realidade do país que tolera tortura como procedimento padrão. 

Inicialmente cabe mencionar que tortura, crime imprescritível, não pode ocorrer sob nenhuma hipótese. Nem em guerra ou estado de exceção. Ela é considerada uma conduta tão grave que prevê a possibilidade de qualquer país julgar quem a cometa, mesmo que a pessoa esteja somente em viagem. Não existe assim nenhuma possibilidade de quaisquer flexibilizações para sua ocorrência, tampouco para seu correlato tratamento cruel, desumano e degradante.

Conforme recentemente levantado pelo Grupo de Trabalho Mulheres e Meninas Privadas de Liberdade do Comitê Estadual para Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, a revista vexatória, reiteradamente, já foi considerada como tratamento desumano, degradante e cruel, podendo cumular em tortura sexual por órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e pela Organização das Nações Unidas.

Estamos falando, segundo dados da Secretaria Nacional de Política Penal do Ministério da Justiça, de um país com 888.272 pessoas em cumprimento de pena, das quais 668.051 estão em celas físicas, 663.367 em presídios e 4.664 em outras carceragens. Desses e dessas 424.315 são negros (63,5%). No entanto, isso é somente uma foto de um momento do sistema. Só no primeiro semestre do ano passado, 2024, foram 1.206.866 entradas e saídas do sistema prisional.

Não se sabe com os dados publicizados quantas pessoas efetivamente entraram em uma prisão ou que estavam dentro e saíram dela ao longo do ano, mas se sabe que este número está entre 668 mil e pouco mais de um milhão observando estes dados.

O mesmo Ministério indicou que, no primeiro semestre de 2024, foram registradas 3.849.846 visitas, sendo 797.935 pessoas visitadas (lembrando que este número comprova a mobilidade do sistema). Não existem dados de quantos visitam, podendo essas visitações terem ocorrido várias vezes pelas mesmas pessoas ou cada visita ser feita por alguém diferente. No fim, também não se sabe ao certo quantas pessoas visitaram, mas pelos dados, mais uma vez, sabemos que o número está entre os 3 milhões e os 797 mil.

Agora vamos pensar em ações disciplinares, que é o que ocorre caso algum preso fosse pego com algum item irregular – lembrando que irregular não é ilegal necessariamente. A única fonte de dados pública é do Conselho Nacional do Ministério Público. Antes de dizermos o quantitativo, é importante explicar: cada unidade tem uma regra para o que é ação disciplinar ou fato punível, então estes podem ir desde não estar esteticamente como o diretor gosta, passando por ter um celular, xingar um agente, pode ser simplesmente dar a alguém um copo de água ou não estar de cabeça baixa e mão para trás o tempo todo, na posição chamada de confere. Portanto, no sistema prisional, tudo e qualquer coisa pode ser uma ação disciplinar, com o agravante de que possui baixíssimo controle externo, regulação e ampla defesa.

Familiares, por sua vez, normalmente têm seus processos disciplinares tocados de modo ainda mais errático, muitas vezes havendo a tomada da carteirinha necessária à visitação sem nenhuma explicação do motivo.

Ainda assim, no segundo semestre de 2023, os dados do CNMP indicaram 12.355 faltas graves ou ato de desobediência/ indisciplina, podendo ser vários deles em um único caso ou um caso cada, não se sabe. Foi usado 41.397 vezes a sanção de isolamento. 

Assim, mais uma vez, não sabemos quantos e quais foram os casos que envolviam estar na posse de quaisquer itens e atos contrários a qualquer norma (inclusive normas que carecem de bom senso e razoabilidade). Como há um aumento de 10 vezes do número de ações disciplinares para caberem no número de apreensões citadas na audiência não se sabe.

Mas o que se sabe, e é possível trazer como indicativo, é que: toda a unidade tem como regra uma lista de itens que podem ou não entrar na visita, e tudo que não pode é apreendido e (supostamente) descartado. Entre o que é proibido, por exemplo, pode ser a cor da escova de dente, a forma como foi embalado o sabão em pó, a cor do chinelo ou camiseta, o biscoito ser recheado, como drogas e celulares.

Grande parte do sistema cria suas regras, dificultando o monitoramento e a exatidão de dados. Não precisa tratar-se de armas, drogas ou sequer celulares, assim o número de 650 mil citado, sem nenhum contexto, pode induzir ao erro, fazendo crer que há um gargalo maior do que realmente é nas visitas.

Por sinal, os dados da Operação Mute do Ministério da Justiça, que fez diversas revistas entre 2023 e 2024 em busca de celulares nas unidades prisionais, indicam que realmente mais de 600 mil é um número incompatível com a realidade. No total de dois anos foram 5380 celulares encontrados (2).

De tudo isso, chegamos a uma única certeza: não existe nenhum dado factual que possa justificar qualquer medida mais severa de segurança. O que sabemos com certeza é que entre 688 mil presos a um milhão de presos ficaram nus forçadamente, pelo menos duas vezes por dia, uns na frente dos outros, passando por revista coletiva vexatória que ocorre cada vez que se entra e se sai da cela, seja para banho de sol ou visita.

Também sabemos que entre 797 mil e 3 milhões de familiares também estavam sob risco de passar por essa violência. Tal cenário se agrava diante da última sessão do STF no julgamento do ARE 969520, pois o que se assistiu foram argumentos para flexibilizar regras que vedam a tortura de no mínimo um milhão e meio de pessoas pela hipótese antecipada de ocorrência de um aumento de crimes, que na verdade nunca aconteceu.

Tal assertiva pode ser verificada. A Rede de Justiça Criminal em 2015, quando do Boletim Especial da Campanha Pelo Fim da Revista Vexatória (3), apresentou um levantamento feito pela própria Secretária de Administração Penitenciária de São Paulo entregue à Defensoria Pública em 2012 – ano em que a revista vexatória era generalizada – que indicou a realização de aproximadamente 3.5 milhões de revistas vexatórias no Estado, das quais somente em 0.02% dos casos referem-se a drogas ou celulares achados (4).

Tampouco há quaisquer correlações entre a prática e rebeliões. Segundo notícia de 2024 do jornal O Globo (5), Goiás e Paraíba foram os primeiros a proibir a revista vexatória em 2010, seguida de São Paulo em 2012, do Rio de Janeiro em 2015, hoje estando proibida em diversos outros estados.

No entanto, no Rio de Janeiro, por exemplo, que é o local em que foi dada estrutura para efetiva interrupção da prática com compra de scanners, houve uma única rebelião em 20 anos sem nenhum ferido. Então ter interrompido a prática há 10 anos atrás não afetou a segurança de nenhuma unidade, e muito menos precisou ser interrompida a visita, já que existe raquetes de detector de metal, banquinhos e tantas outras formas de realizar a revista que não seja a tortura sexual.

Na próxima quarta, possivelmente, será o final da votação em um cenário que parece apontar para uma proposta consensual, um acordo para autorizar exceções, mesmo que já tivesse sido formada a maioria para a prática ser considerada ilegal. Nesse cenário, parte da atual conformação da Corte, majoritariamente masculina e completamente branca, parece achar possível a aplicação da revista vexatória em mulheres, que em sua maioria são negras, como pesquisa publicada pelas organizações ITTC, Agenda Nacional pelo Desencarceramento e outras (6).

Em pleno século XXI ainda ouvimos frases que visivelmente descrevem a tortura e seus danos emocionais, que se ignora a brutalidade de tal procedimento sobre os corpos de mulheres e adolescentes, que pode ser descrita nos seguintes relatos:

Horrível, humilhante, torturante feri minha dignidade humana. A revista vexatória alcançou o objetivo de humilhar e torturar. (AGENDA NACIONAL PELO DESENCARCERAMENTO ET AL., 2021, p. 4)

Foi muito humilhante o agente me alisou com malícia ao me revistar e disse que eu merecia passar por isso por ter um filho malandro preso” (AGENDA NACIONAL PELO DESENCARCERAMENTO ET AL., 2021, p. 26. grifos nossos)

Certa vez a agente me pediu pra tirar a prótese dentária, o que me causou grande constrangimento (AGENDA NACIONAL PELO DESENCARCERAMENTO ET AL., 2021, p. 26)

Disse que não iria passar por revista manual uma vez que no mural da  unidade havia um comunicado que dizia ‘Evite constrangimento, passe pelo scanner’ e interpelei a agente prisional dizendo que eu não iria passar pela revista uma vez que eu queria evitar o constrangimento de tirar toda minha roupa passando no scanner como dizia no comunicado afixado no mural lá fora da unidade, eles não têm educação e são muito despreparados, não conseguem fazer o trabalho sem se envolver emocionalmente e essa moça gritava que não tinha nada em mural nenhum, e eu falava, ‘vamos lá fora que vou lhe mostrar’ e ela gritava, então vamos e quando ela viu o comunicado ela tirou o papel do mural. (AGENDA NACIONAL PELO DESENCARCERAMENTO ET AL., 2021, p. 28)

Nesse sentido, forçoso é afirmar o papel constitucional na projeção de direitos e garantias fundamentais que não podem ser rebaixados ou eliminados, especialmente quando nos deparamos com violações que são de lesa humanidade, repisa-se não se pode negociar ou criar exceção, especialmente em um país que possui uma trajetória de tortura como o nosso.

Valorização da dignidade da pessoa humana, vedação à tortura, individualização da pena, vedação do retrocesso em direitos humanos não são meros desejos, são mínimos existenciais para um estado democrático. E é isso que está em jogo nesse julgamento: a efetivação do Estado Democrático e de Direito para a população negra, favelada e periférica!

Notas

1 A sessão de julgamento pode ser vista na íntegra aqui: https://www.youtube.com/live/qh4cdZqkLh8 O voto do ministro Alexandre de Moraes inicia em torno do minuto 14.

2 SENAPPEN apresenta ações e os resultados obtidos pelo órgão durante o ano de 2024 — Secretaria Nacional de Políticas Penais  Acessível em https://www.gov.br/senappen/pt-br/assuntos/noticias/senappen-apresenta-acoes-e-os-resultados-obtidos-pelo-orgao-durante-o-ano#:~:text=Somadas%2C%20as%20seis%20fases%20da,maior%20seguran%C3%A7a%20e%20fiscaliza%C3%A7%C3%A3o%20constante. 

3 REDE DE JUSTIÇA CRIMINAL. Boletim Especial da Campanha Pelo Fim da Revista Vexatória, Jul 2015.  Acessível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=756194676&prcID=6202827.

4 REDE DE JUSTIÇA CRIMINAL. Boletim Especial da Campanha Pelo Fim da Revista Vexatória, Jul./2015.  Acessível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=756194676&prcID=6202827.

5 Acessível em https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/10/19/goias-proibiu-revista-intima-vexatoria-apos-video-viralizar-e-acabou-seguido-por-outros-estados-entenda.ghtml.

6 AGENDA NACIONAL PELO DESENCARCERAMENTO; CONECTAS DIREITOS HUMANOS; INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA (IDDD); INSTITUTO TERRA TRABALHO E CIDADANIA (ITTC); NÚCLEO ESPECIALIZADO DE SITUAÇÃO CARCERÁRIA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO; PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL; REDE JUSTIÇA CRIMINAL. Revista vexatória uma prática constante. 2021. Acessível em https://ittc.org.br/wp-content/uploads/2022/03/Relato%CC%81rio-Revista-Vexato%CC%81ria.pdf


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