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A distopia é real? O fascismo avança sobre as mulheres (e com as mulheres)


Publicado em: 28 de janeiro de 2025

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Clara Saraiva

Carioca, feminista, ateia, mãe da Maria e doutoranda em Serviço Social na UFRJ. Compõe o Diretório Nacional e a Setorial de Mulheres do PSOL, é militante da Resistência Feminista e pesquisadora marxista do Grupo de Estudos de Teoria da Reprodução Social.

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Clara Saraiva

Carioca, feminista, ateia, mãe da Maria e doutoranda em Serviço Social na UFRJ. Compõe o Diretório Nacional e a Setorial de Mulheres do PSOL, é militante da Resistência Feminista e pesquisadora marxista do Grupo de Estudos de Teoria da Reprodução Social.

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Esses dias eu postei um meme, dentre tantos que apareceram após a posse de Trump, que dizia: “Make Orwell Fiction Again” (1), em referência ao slogan eleitoral de Trump (2). George Orwell foi um famoso escritor britânico que publicou a emblemática distopia 1984 – obra que lamentavelmente se parece cada vez mais com o nosso tempo. Outra imagem que pipocou nas redes foram os looks de Melania e Ivanka Trump, mulher e filha de Donald Trump, no dia de sua posse. As cores, vestidos cobrindo o corpo inteiro e o chapéu escondendo os olhos da primeira-dama (que mais parecia viver um luto que uma celebração) foram rapidamente identificados a outro romance distópico: O conto da Aia, de Margaret Atwood. Em 2017 a obra virou série, personificando a tragédia literária e adicionando novos capítulos para a trama.

Mas por que nos reconhecemos tanto nessas distopias? Vejamos melhor as histórias.

Para quem não conhece, 1984 é um romance publicado em 1949 que acompanha o trabalhador Winston Smith em seus questionamentos sobre o regime totalitário que, em um futuro distópico, controlava a sociedade britânica (chamada Oceânia). O misterioso Grande Irmão (3) exercia o poder a partir da vigilância permanente por meio de telas de TV, da Polícia das Ideias e da nova e limitante língua instaurada – a Novafala (ou Novilíngua, a depender da tradução). 

No ano seguinte em que se passa a ficção distópica de Orwell, em 1985, Margaret Atwood publica O Conto da Aia. O romance se passa em um futuro não muito distante em que os Estados Unidos se tornaram uma teocracia cristã totalitária chamada República de Gilead. Em meio a guerras e a uma crise de infertilidade que acometeu a população como uma epidemia, acompanhamos a história de June Osborne quando um grupo fundamentalista e miliciano, com os seus Guardiões da Fé, toma o poder. A partir daí, separam crianças de suas mães, inclusive a pequena Hannah de 5 anos, filha de June, e instauram uma nova ordem que transforma as mulheres férteis em aias, torturando-as com terrorismo psicológico, mutilações e estupros sistemáticos. Viram escravas para gestarem os filhos dos comandantes, que serão criados por suas mulheres. A referência feita à roupa de Ivanka Trump foi ao figurino da personagem Serena Joy, mulher do comandante em que June é a aia, uma das protagonistas da história.

Bom, acho que podemos concordar que após ver a posse de Trump e ouvir as medidas anunciadas, em especial a violência contra as famílias de imigrantes latinos, revivemos a angústia do fortalecimento da extrema direita que marca o nosso tempo. Mais uma vez, nos sentimos dentro dessas distopias que teimam em deixar de ser ficção. Fato é que há, pelo menos, 10 anos, estamos vivendo uma situação política mundial de ascensão de uma corrente neofascista que traz consigo uma sensação permanente de fim do mundo, com o pior do conservadorismo ideológico, fundamentalismo religioso e neoliberalismo em sua máxima potência. Tendo como inimigos principais as mulheres, população negra, LGBTI+s e os imigrantes, estamos vivendo um processo crescente de disseminação da violência, organização de grupos milicianos, negacionismo climático e produção em massa de fake news e políticas de ódio nas redes. Talvez o maior símbolo da atrocidade cruel e desumana desse projeto, e da falta de reação, por outro lado, seja o massacre da Palestina pelo Estado de Israel. “Ignorância é força” – é o que diz um dos três lemas disseminados pelo Grande Irmão (4)

A famosa frase de Mark Fisher, de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” (5) é, a cada dia, mais atual. E diante desta realidade-distópica ou distopia real, tenho me perguntado qual o papel que o feminismo, ou que a questão de gênero, vem cumprindo. 

O levante feminista e suas consequências

É contrastante olhar para esta posse do Trump e recordar da última, em 21 de janeiro de 2017, quando a Marcha das Mulheres tomou Washington e diversas cidades dos EUA, reunindo mais de 2 milhões de pessoas nas ruas. O presidente era o mesmo, e um inimigo tão (ou até menos) cruel do que é hoje. Mas diferente de agora, as mulheres estavam nas ruas. 

Em 2015 iniciou-se um processo internacional de mobilizações feministas, especialmente na Argentina e na Polônia, e que se espalhou por toda a América Latina, Europa, e diversos países do mundo. Nas redes, passamos por uma série de campanhas de conscientização e mobilização de mulheres, como o movimento #MeToo (6). No final de 2020, vivemos a aprovação histórica da legalização do aborto na Argentina, depois de anos de muita mobilização da maré verde e lutas por “Ni Una Menos”. Aqui no Brasil também vivemos intensamente esse ascenso nas ruas e redes, e o nomeamos de Primavera Feminista (que esse ano, completa 10 anos!). Foram anos de luta contra o Eduardo Cunha, o golpe contra Dilma, o governo Temer e suas contrarreformas, reagimos ao bárbaro assassinato de Marielle, e tudo isso culminou no #EleNão: o gigantesco protesto feminista antifascista que tomou o país (7)

Muito se discutiu sobre os efeitos do #EleNão em relação à eleição de Bolsonaro, e há setores da esquerda que defenderam – e defendem até hoje (!) – que a organização do protesto contribuiu para a sua vitória. Evidente que o bolsonarismo utilizou de imagens fake para atribuir ao protesto, disputando sua narrativa, mas isso já naquela época não era novidade. O absurdo desse argumento é que o protesto foi o auge de um movimento que, com as mulheres à frente, alertava para os perigos de uma corrente neofascista no poder. A luta das mulheres neste período foi parte fundamental da disputa de consciência da classe trabalhadora sobre o que significou o golpe parlamentar e a ascensão do bolsonarismo para os direitos democráticos, reprodutivos e sociais. A pandemia, com as mulheres à frente da maior parte dos serviços essenciais e das campanhas de solidariedade, reforçou a oposição feminina ao negacionismo científico e ao desdém pela vida do bolsonarismo. E aqueles que duvidavam que o feminismo havia sido um sujeito fundamental nesse processo, viram estampado no resultado das eleições de 2022: quem garantiu a vitória de Lula foram as mulheres, negros, LGBTI+s, jovens e, claro… os nordestinos <3.

E não é só no Brasil que essa tendência tem se demonstrado. Uma pesquisa encomendada pelo Financial Times nos EUA e na Inglaterra, muito comentada no ano passado, alerta que jovens da geração Z (nascidos entre 1997 e 2012) têm enfrentado uma diferença ideológica cada vez maior entre mulheres e homens. A pesquisa demonstra que as diferenças não se restringem a pautas sobre mudanças climáticas ou direitos reprodutivos, mas também envolvem temas como a intervenção estatal na economia e a preservação de direitos e políticas sociais. Ou seja, uma visão de mundo distinta – ou até mesmo oposta. A rejeição ao levante feminista chegou a dar origem a grupos organizados na internet de homens jovens, ou o que ficou conhecido como a “machosfera”, que promovem o ódio contra as mulheres e LGBTI+s, como os Redpill, Incel e MGTOW (8)

Apesar da reação ao fortalecimento do feminismo ter dado vazão a essa masculinidade tóxica, um ode à virilidade dos políticos (quem consegue esquecer da cena patética do “imbrochável”?), a defesa da família patriarcal e a subjugação feminina, e por mais contraditório que possa parecer, há também um número crescente de mulheres de extrema direita despontando como lideranças políticas. 

Belas, recatadas, do lar… e cheias de opinião pra dar

É um problema bem grande para os planos da extrema-direita que as mulheres sejam, em sua maioria, oposição às suas ideias. Apesar do refluxo de lutas feministas que vivemos hoje comparado ao período entre 2015 e 2020, é inegável que o movimento de mulheres ganhou musculatura e disputa a sociedade em outro patamar. Todos querem tirar uma casquinha deste impulso ao empoderamento feminino, sejam as forças do neoliberalismo de cooptação, ou o que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista”, seja o projeto capitaneado pela própria extrema-direita. Com certeza não é do gosto deles, que se pudessem, seguiriam fazendo política apenas com homens, brancos, ricos e heterossexuais. Mas são, também, obrigados a se adaptar. E sabem fazer isso cada vez melhor. 

Uma das notícias estarrecedoras que tivemos nas eleições municipais do ano passado foi a quantidade de mulheres de direita que foram eleitas: 4 a cada 5. Uma boa quantidade destas, de partidos de extrema direita. Além do perfil de mulher cristã, conservadora, “de família”, há também a vocalização de um “empoderamento feminino de direita”. A mulher que é multifuncional, capaz de cuidar da família e ainda empreender, trabalhar, ter suas finanças, cuidar do corpo, encontrar as amigas, mas claro: sempre subordinada às vontades e desígnios de Deus e seu marido. Muitas vezes, é através delas que o discurso de pânico moral, combate à “ideologia de gênero”, Escola sem partido, “marxismo cultural” e afins, ganha espaço na sociedade. Michelle Bolsonaro e Damares são duas figuras que muito já fizeram nesse sentido, mas que seguem com a mão na massa. As duas, juntas com Celina Leão (PP, vice-governadora do Distrito Federal) percorreram centenas de cidades há 1 ano e meio antes das eleições, promovendo formações e construindo novas lideranças femininas

Carol Marçal, empresária e esposa de Pablo Marçal, é também figura emblemática dessa versão de mulher extremista de direita. Mãe de “3 generais e uma princesa”, como costuma dizer, se apresenta como “mulher de princípios e valores cristãos” e segue o exemplo do marido trabalhando como coach na internet. Oferece cursos e vende produtos, como o seu queridinho “Diário Forte e Corajosa” (uma espécie de agenda/planner) que permite que a mulher, com organização e disciplina, dê conta de toda a sua rotina. Em seus cursos, aborda a aceitação aos papéis de gênero, a virilidade do homem e a submissão da mulher, a importância da manutenção do patriarcado, a criação dos filhos em base a princípios conservadores, a organização da rotina do lar e, claro, o combate ao comunismo, ao feminismo e ao marxismo cultural que destroem as famílias. Quando estava vendo seu instagram para escrever este texto, num estado um tanto quanto atônita, foi impossível não me lembrar da tia Lydia (apesar de esteticamente muito diferentes), personagem de O Conto da Aia. Ela é uma espécie de coach também, cuidadora e disciplinadora das aias, que ensina os valores da nova república de Gilead, com ternura e tortura, preparando-as para cumprir seus novos papéis.

Existe mais de um tipo de liberdade, dizia tia Lydia. Liberdade para: a faculdade de fazer ou não fazer qualquer coisa, e liberdade de: que significa estar livre de alguma coisa. Nos tempos de anarquia, era liberdade para. Agora a vocês está sendo concedida a liberdade de. Não a subestimem. (O Conto da Aia, capítulo 5) 

Taí um belo resumo do que a extrema direita propõe às mulheres hoje: a liberdade de… terem liberdade. Marx faz essa mesma ironia, explorando a ambiguidade da palavra livre, em O Capital, no capítulo 24 intitulado A Assim Chamada Acumulação Primitiva. Diz que o processo de transição do feudalismo ao capitalismo deixou os trabalhadores livres para venderem sua força de trabalho, já que estavam livres dos meios de produção. Ou seja, só lhes restava a possibilidade de vender a força de trabalho para sobreviver. A extrema direita combate o feminismo porque quer retirar das mulheres tudo que ele nos legou de liberdade e direitos. Não é um desafio fácil, mas eles – e elas – estão na atividade para atingi-lo.

Em diversas partes do mundo as lideranças femininas têm ganhado mais espaço dentro dos partidos de extrema direita. Marine Le-Pen, talvez a mais famosa da lista, é a liderança do partido francês radical de direita Reunião Nacional, filha de Jean Marie Le Pen, líder histórico da extrema direita francesa. Elegeu em 2012 sua sobrinha, Marion Maréchal Le Pen, como a parlamentar mais jovem da história da França com apenas 22 anos, e que atualmente aos 35 é deputada do Parlamento Europeu. Georgia Meloni é a primeira mulher na história a ser primeira-ministra da Itália pelo partido Irmãos da Itália, seguindo toda a cartilha da extrema direita anti-imigrantes e LGBTI+, em defesa da “família natural” e contra a “ideologia de gênero”. Frauke Petry é liderança do ultrareacionário AfD (Alternativa à Alemanha), defendendo uma linha raivosa e violenta contra refugiados e imigrantes no país. Eu poderia (e acho que devemos!) seguir falando de várias outras que não citei aqui. Mas o fundamental é chamar a atenção para esse movimento que não é de hoje, mas que se aprofunda agora. Voltando ao início deste texto, não teve nada de fortuito no papel cumprido pelas mulheres Trump: cada detalhe de sua aparição continha um mundo de significados.

É interessante pensar como, após um ascenso feminista, a reação não é apenas masculina, mas vem também através de mulheres inimigas do feminismo, que por sua vez, não estariam naquela posição se não fosse o próprio movimento feminista. É assim mesmo, contraditório. Pensando em outro tempo histórico, a própria Margaret Tatcher me parece ser tanto subproduto quanto reação à onda feminista dos anos 1960/70. Apesar de dizer que não devia nada ao feminismo – “O feminismo é um veneno!”, ela dizia – é inegável que sua ascensão ao poder foi, no mínimo, facilitada pela maior participação política das mulheres. Mas aí que mora a armadilha: será que pelo fato de ser mulher, também não era ela uma candidata mais apta a dar a dura virada política, social e econômica para o neoliberalismo? Não facilitou ser uma mulher, a dama de ferro, para esmagar sem misericórdia a fortíssima greve dos mineiros de 1984-85? Evidente que se há uma base social feminina mais propensa a ideias progressistas, uma liderança de direita que seja mulher pode ser mais capaz de dialogar e convencer essas mulheres de suas ideias. Acredito que é o perigo do que acontece, hoje, em vários partes do mundo. Especialmente na França e Itália e, cada vez mais, (para o nosso desespero) no Brasil. 

O que não avança, retrocede (ou: camarão que dorme a onda leva)

Estamos diante de uma encruzilhada. Um dos acúmulos mais importantes que conquistamos no último período foi a base feminina antifascista, ou no mínimo com instintos corretos para todo o arsenal de submissão feminina, violência racista, misógina, LGBTI+fóbica, negacionismo climático, xenofobia e ajuste fiscal radical vinculados ao projeto da extrema-direita. Mas a realidade está em constante movimento e a política é dinâmica. Esses setores estão em ascensão e sabem que precisam do apoio de metade da classe trabalhadora para conseguir atingir seus objetivos. Não vão medir esforços, portanto, para disputar a consciência das mulheres. E nós precisamos estar preparadas/es/os. Não podemos acreditar que o que se conquistou, já está consolidado. 

O movimento feminista, junto com o movimento negro e LGBTI+, precisa agarrar com força a tarefa de organizar as mulheres, especialmente as mulheres negras, como a vanguarda da luta contra a extrema direita. Mais do que isso: o conjunto das organizações da classe trabalhadora, os sindicatos, as associações, o conjunto dos movimentos sociais precisam parar de menosprezar ou secundarizar o acolhimento, a organização e a disputa das mulheres de suas bases. De outra forma, acredito que estaremos diante de uma derrota com consequências dramáticas para o nosso futuro.

Quando em junho do ano passado o PL 1904/24, que pretende retroceder a garantia de aborto legal nos casos de estupro e gravidez infantil, foi colocado no Congresso em caráter de urgência, a campanha “Criança não é mãe” rapidamente se colocou em marcha, mobilizou ruas e redes, conseguindo maioria de adesão na opinião pública. Falamos sobre um tema que é tido como “bala de prata” da direita, ou seja, a pauta infalível. E mesmo assim, ganhamos. Não só porque o projeto era uma aberração de crueldade, mas porque aliamos um histórico de organização de base, articulação unitária nacional, diálogo paciente, desmonte de hipocrisias da direita e disputa ideológica (ou seria guerra?) nas redes sociais. Acredito que esse processo demonstra o caminho. 

As mulheres trabalhadoras enfrentam todos os dias uma verdadeira crise de reprodução social, sendo esmagadas entre o trabalho e os cuidados com filhos e casa (ou seja, mais trabalho). São vítimas constantes da violência doméstica, do Estado e das milícias. Não à toa fomos a vanguarda das lutas com o aprofundamento da crise do capitalismo: é sob as mulheres trabalhadoras, as mulheres negras em especial, onde mais recai a precarização e privatização de serviços públicos, retrocessos em políticas sociais, desemprego, precarização do trabalho, carestia dos alimentos, endividamento crescente. Precisamos dialogar com essa condição, organizar mulheres, oferecer saídas comunitárias, dialogar com sua fé e suas crenças, ser esteio para seus dilemas, suas dores e seus sonhos. Precisamos abraçar com força a guerra ideológica contra a extrema direita e disputar corações e mentes (é brega, mas é isso mesmo) para os nossos valores, programa e fatos da realidade que, cá entre nós, são muito mais nobres, verdadeiros e efetivos na valorização da vida e do planeta.

Estamos às vésperas do 8 de março, o Dia Internacional de Luta das Mulheres, que neste ano será no sábado logo após o Carnaval. Bebamos da inspiração latino-americana e anti-imperialista de Petro na Colômbia e Claudia Sheinbaum no México e vamos dar continuidade à construção do que Lélia Gonzalez chamou de feminismo afro-latino-americano. Sejamos ousadas na construção da unidade, na busca pelo diálogo e na organização de mulheres em seus bairros, locais de trabalho, periferias, escolas, etc. Façamos rodas de conversa, de batucada, de samba, de formação, de construção de materiais. Do jeito que for, é tarefa colocada organizar mulheres, em toda a sua diversidade. Disputá-las para os valores da solidariedade, da organização coletiva, da força da luta. Para a responsabilização dos homens pelas suas tarefas e do Estado pelos nossos direitos. Para sermos protagonistas da nossa história. 

Como dizia June ao descobrir que havia uma resistência clandestina organizada das aias chamada Mayday: “Essa não parece que deva ser a forma verdadeira do mundo. Mas isso é minha própria ilusão, ressaca de uma versão de realidade extinta. Agora, escuridão e segredos estão por toda a parte. Agora, tem que existir um ‘nós’. Porque, agora, existe um ‘eles’”.

Neste verão distópico, véspera de Carnaval e 8M, organizemos a resistência feminista e brindemos ao futuro! Afinal de contas, não queremos daqui a um tempo fazer como Winston, que desesperançado, escolhia brindar ao passado (9)Deixemos para cantar o fim do mundo no Carnaval com a pequena Eva, fazendo apenas da quarta-feira de cinzas “o final da odisséia terrestre”. O ano está só começando.

Notas

1 Traduzido: Faça Orwell ficção de novo.

2 Make America Great Again, traduzido para o português: Faça a América grande de novo.

3 Em inglês, Big Brother. Sim, o fato de ter o mesmo nome do reality show não é mera coincidência.

4 Os outros dois: Guerra é paz e Liberdade é escravidão.

5 Da obra Realismo capitalista, de Mark Fisher. Editora Autonomia Literária, 2020.

6 A hashtag #MeToo se tornou viral em 2017, quando a atriz Alyssa Milano denunciou o produtor de Hollywood Harvey Weinstein de assédio sexual, disseminando um movimento de mulheres de denúncia de uma série de assédios, violências sexuais e agressões machistas.

7 O processo de organização das marchas foi bastante espontâneo, passando pelo facebook, com um forte protagonismo do grupo “Mulheres contra Bolsonaro”, e pela organização de plenárias de mulheres nas cidades. Construímos protestos massivos e extremamente unitários, cheios de crianças e participação de grupos artísticos. Lembro de cor com alegria da paródia que ecoava nas ruas, uma versão brasileira e feminista de Bella Ciao: “Numa manhã, eu acordei, e ecoava: ele não, ele não, não, não! Numa manhã, eu acordei, e lutei contra o opressor. Somos mulheres, a resistência, de um Brasil sem fascismo e sem horror. Vamos à luta pra derrotar o ódio e pregar o amor.” Às vezes parece que foi ontem, mas já fazem 7 anos desse processo.  

8 De acordo com pesquisa da cientista política Bruna Camilo, divulgada em matéria no G1, há muita semelhança entre os grupos, mas algumas particularidades. “Redpill: pregam que é necessário se aproveitar das mulheres e torná-las submissas para recuperar a virilidade perdida. Incel: autointitulados “celibatários involuntários”, culpam as mulheres por não conseguirem ter relações sexuais e endossam violência contra qualquer grupo sexualmente ativo, inclusive contra comunidades LGBTQIA+. MGTOW: sigla para “man going their own way” (em português, “homens seguindo o seu próprio caminho”). Acreditam que a sociedade deve romper com as mulheres porque, segundo eles, o feminismo tornou as mulheres perigosas.” 

https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2023/03/03/redpill-incel-mgtow-entenda-o-que-acontece-em-grupos-masculinos-que-pregam-odio-as-mulheres.ghtml

A Confraria não pode ser liquidada porque não é uma organização no sentido usual do termo. Nada além da ideia de que é indestrutível a mantém ativa. Vocês jamais contarão com nenhum outro alento além dessa ideia. Não experimentarão camaradagem nem encorajamento. Quando por fim forem apanhados, não receberão nenhuma ajuda. Trabalharão por algum tempo, serão presos, confessarão e depois morrerão. Não há a menor possibilidade de que ocorram mudanças perceptíveis em nossa geração. Nós somos os mortos. Nossa única vida genuína repousa no futuro. Participaremos dela na condição de pó e fragmentos ósseos. Não há, porém, como saber quanto tempo decorrerá até o advento desse futuro. Talvez mil anos. No momento, nada é possível, exceto ampliar pouco a pouco a área da sanidade. Não temos como agir coletivamente. Só podemos disseminar nosso conhecimento de indivíduo a indivíduo, geração após geração. Com a Polícia das Ideias, não há outra saída.  Espere, a garrafa ainda está pela metade. A que brindaremos desta vez?, perguntou, ainda com a mesma insinuação sutil de ironia. À desorganização da Polícia das Ideias? À morte do Grande Irmão? À humanidade? Ao futuro? Ao passado, disse Winston.” (Trecho de 1984)


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