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BRASIL

Que ano foi esse! E o que nos espera em 2025?

Glória Trogo e Henrique Canary, do Eol
Detalhe de Morro (1951), de Cândido Portinari

O cérebro humano é uma poderosa máquina de buscar padrões e sentidos: nuvens, manchas na parede, buracos na estrada. É o que se chama “pareidolia”. Quando Saigon foi evacuada, em 1975, a imagem do helicóptero retirando as pessoas da Embaixada Norte-Americana foi eternizada como um símbolo de vitória do movimento de massas. O poderoso inimigo podia ser derrotado, colapsar e entrar em desespero. A imagem tornou-se o ícone de uma época, um farol para a humanidade, um símbolo de esperança e júbilo. Quase 45 anos depois, uma imagem muito parecida foi produzida: um helicóptero retirando pessoas desesperadas da Embaixada Norte-Americana em Cabul. Alguns buscadores de sentido tentaram ver nessa imagem o mesmo conteúdo de há 45 anos. Afinal, era novamente a derrota da maior força contrarrevolucionária que a história já produziu: o imperialismo yankee. Mas isso não é assim. A decolagem desesperada do teto da representação diplomática norte-americana em Cabul não repete o sentido da mesma cena em Saigon. É muito mais o símbolo dos tempos atuais: um tempo em que a derrota do nosso maior inimigo não necessariamente é uma vitória nossa. Cabul não é um farol como Saigon. É a prova de que a terrível ordem imperialista pode ser substituída por um estado de coisas ainda pior, por uma barbárie cruel e escancarada. A derrota agora não é apenas da ordem imperialista, mas da civilização como um todo, da humanidade de conjunto. Isso nos leva a refletir sobre a difícil situação em que nos encontramos, a urgência de nosso projeto e os meios para aproximá-lo.

2024 foi marcado pela aceleração da multicrise sobre a qual todos falam: a temperatura média no planeta parece ter consolidado um aumento de 1,5 graus em relação ao período pré-industrial, o que anula imediatamente todo o projeto do Acordo de Paris. As consequências foram perceptíveis – temperaturas extremas no inverno nórdico em janeiro e o dia mais quente da história do planeta em 22 de julho, segundo a NASA; no terreno internacional, seguiu o plano de Israel de eliminar o povo palestino da face da Terra, junto com ataques massivos ao Líbano, Irã e agora Síria. A China se fortaleceu econômica e diplomaticamente, diminuindo o “gap” entre essa potência ascendente e os Estados Unidos; a lenta decadência europeia se fez sentir em seu sistema político, que tem se demonstrado altamente suscetível aos ataques do neofascismo em sua versão “civilizada” (europeia, branca e com algum discurso social). Nos Estados Unidos, a vitória arrebatadora de Trump (inclusive no voto popular) terá um efeito trágico, fortalecendo enormemente os inúmeros projetos fascistas nacionais, sobretudo na América Latina e Europa. Na Síria, a merecida queda do ditador Bashar al-Assad ocorre via ascensão de uma força que é uma dissidência da Al Qaeda e que até agora tem sido um mistério em termos de projeto nacional, alianças internacionais e política religiosa, não se descartando, portanto, um desenvolvimento “a la Líbia”. O retorno de milhões de refugiados sírios até agora não tem passado de um sonho comum, mas pouco palpável. Ao contrário, alguns dados indicam uma nova onda centrífuga.

No Brasil, ao mesmo tempo em que se desvenda a articulação de um golpe de Estado pela cúpula das Forças Armadas (inclusive com prisões), o boicote político e o ataque especulativo contra o governo tem o efeito prático de fortalecer o bolsonarismo na sua disputa pelo poder. Mesmo as alas da imprensa que são críticas a Bolsonaro são parte da agenda ultraneoliberal e pressionam o governo pelos seus interesses antipovo. Até agora, tem prevalecido o recuo do Planalto, o que tem anulado na prática os bons resultados na economia, uma vez que o governo não faz o combate político na sociedade e se rende à ofensiva que busca detonar uma crise econômica em 2025-2026. As eleições de 2026 ocorrerão no contexto de um governo Trump muito mais agressivo e de aprofundamento da multicrise internacional.

Os projetos políticos em debate

Há dezenas de organizações de esquerda em um país continental como o Brasil. Mas não há dezenas de linhas políticas. Com maiores ou menores nuances, pode-se identificar fundamentalmente três linhas de esquerda na realidade atual.

A primeira é a defesa do giro ao centro. Ela parte da ideia de que a derrota da esquerda nas eleições 2024 só pode ser revertida com maiores e mais profundas concessões políticas e programáticas ao centro e mesmo à direita. Trata-se de uma linha extremamente perigosa. É a mesma lógica e os mesmos sujeitos políticos que diziam que não haveria golpe porque o governo Dilma tinha aliados fieis; que Lula não seria condenado; que, se fosse condenado, não seria preso; que Bolsonaro seria um excelente oponente no 2º turno de 2018, já que que Haddad ganharia o centro moderado, isolando o fascista. De uma maneira geral, essa é a linha da naturalização da extrema-direita. É a linha que trata o fascismo como um “player” legítimo do jogo, um rival que tem que ser enfrentado no terreno da articulação política inteligente. Essa linha é muito perigosa também porque é a que tem prevalecido até aqui: cessão de terreno ao centrão, confiança irrestrita na Justiça e na cúpula das Forças Armadas, rendição ao mercado, aposta em uma ampla coligação para 2026 que isole o bolsonarismo e permita a reeleição de Lula.

A segunda linha é bem mais minoritária, mas pressiona fortemente a esquerda radical. É a linha que ignora o perigo de retorno do bolsonarismo e aposta em uma política de oposição de esquerda ao governo. Essa ala também tem uma história. Suas raízes remontam à Operação Lava Jato. Sua lógica é a de que o desgaste do governo do PT não tem um caráter de classe definido e pode ser disputado tanto pela esquerda quanto pela direita. É a linha dos que apostaram que era possível derrubar Bolsonaro depois de poucos meses de governo. Dentro do PSOL, as alas que defendem essa ideia queriam uma candidatura própria em 2022. É a linha do denuncismo permanente dos “conciliadores” e “traidores”. Esse setor tirou das eleições 2024 uma conclusão parecida com aquela sobre a Lava Jato: a de que existe um “espaço antissistema”, amorfo, não-ideológico e sem classe definida e que nossa tarefa agora é disputar esse espaço.

há uma tentativa de golpe em curso no país, uma tentativa que teve seu auge no 8 de Janeiro de 2023, mas que segue até hoje sob a forma de ataques especulativos, campanha de desgaste permanente e boicote ao governo

As consequências políticas dessas duas linhas são as mais nocivas. A linha do giro ao centro impede a disputa da maioria social ao renunciar de antemão à batalha; ignora que o centrão, com quem quer se aliar, já tem posição ideológica e se aproxima muito mais do fascismo do que da esquerda. Em última instância, ignora a enorme mudança estrutural que ocorreu no país depois de 2016 e que impede que se repita no governo Lula 3 o mesmo cenário que se deu em Lula 1 e 2. É a linha da derrota certa.

Por sua vez, a linha que foca na luta contra o governo ignora que a sociedade está fraturada em três blocos: um abertamente fascista de cerca de 30% da população, um de esquerda e progressista no amplo sentido do termo, também de 30%, e uma parcela vacilante que deu a vitória para Lula em 2022, mas que parece ter se deslocado à direita em 2024. E o mais importante: ignora que há uma tentativa de golpe em curso no país, uma tentativa que teve seu auge no 8 de Janeiro de 2023, mas que segue até hoje sob a forma de ataques especulativos, campanha de desgaste permanente e boicote ao governo. Ignora que os fascistas tem um projeto de poder e estão lutando para se impor.

O papel do PSOL

ao mesmo tempo em que luta para defender o governo dos ataques da extrema-direita, o PSOL não se furta ao embate político e ideológico contra o centrão e a extrema-direita, exatamente a única saída para um governo que está cercado por todos os lados

O PSOL tem cumprido um importante papel e a postura do partido tem sido muito correta. É preciso lembrar que essa postura deve-se a um justo posicionamento geral da sigla em relação ao governo. O PSOL ajudou a eleger Lula e faz parte de sua base parlamentar. No entanto, mantém sua independência frente às votações concretas, como foi o caso da urgência do pacote de Haddad e mais recentemente do mérito da questão, quando toda a bancada do PSOL se posicionou contra, inclusive aliando-se nessa questão a deputados do próprio governo, como Orlando Silva (PCdoB-SP), Marcon (PT-SE), Natália Bonavides (PT-RN) e Rui Falcão (PT-SP). O PSOL também está apresentando uma candidatura própria para a presidência da Câmara dos Deputados na pessoa do pastor Henrique Vieira, ao contrário da orientação do PT em torno do deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), candidato de Lira. Ou seja, ao mesmo tempo em que luta para defender o governo dos ataques da extrema-direita, o PSOL não se furta ao embate político e ideológico contra o centrão e a extrema-direita, exatamente a única saída para um governo que está cercado por todos os lados.

Mas é importante lembrar que precisamos de uma articulação de forças muito maior para vencer essa batalha. O PSOL sozinho é importante, mas somos minoria. Nesse sentido, vemos que existem aliados importantes fazendo o combate contra o giro ao centro. O MST e a UNE, sem passar (corretamente) a qualquer postura de oposição de esquerda, têm aumentado o tom das exigências e cobrado uma postura mais combativa do governo, exatamente com o objetivo de fazer o projeto vencedor nas urnas em 2022 vencedor também na realidade viva do país.

Exemplos como a luta do Movimento VAT – Vida Além do Trabalho apontam um caminho de ampliação de direitos e disputa da maioria social no Brasil, exatamente o que precisamos. Nesse caso concreto a extrema-direita teve uma derrota na sua própria base, com parte significativa do bolsonarismo apoiando a luta pelo fim da jornada 6×1.

Articular a luta política pela derrota da extrema-direita passa necessariamente pela potência da articulação das pautas feministas, antirracistas e antilgbtfóbicas

Outro passo importante de luta política será o Festival Mulheres em Luta, organizado pelo Instituto E Se Fosse Você?, em abril de 2025 na cidade de São Paulo. As mulheres são parte decisiva da resistência ao fascismo no mundo inteiro. Articular a luta política pela derrota da extrema-direita passa necessariamente pela potência da articulação das pautas feministas, antirracistas e antilgbtfóbicas.

Precisamos fortalecer a ideia de que, para fazer valer o programa de 2022, será preciso medidas concretas do governo, luta ideológica e ampliação de direitos. Essa parece ser também a única forma de reeleger Lula em 2026. Se a esquerda não voltar a se apresentar como uma força política mobilizadora e combativa, vai perder o pequeno apoio que lhe resta e sua situação entre os mais explorados pode também piorar, comprometendo o pleito e permitindo a volta do fascismo ao poder.

A luta pela hegemonia

Alguém já disse que, mais do que falar do fim do mundo, é preciso falar das ideias capazes de evitá-lo. E nós acrescentaríamos: ideias e lutas! 2025 estará repleto delas, mas seu desfecho é incerto e depende do complexo jogo jogado pela inteligência humana. O Brasil se transformou, os ritmos da história se aceleraram, preparando o país para o desfecho do período. Nesse sentido, cada semana equivale a meses de um desenvolvimento político “normal”, cada embate importa. 2025 prepara 2026, mas num sentido muito mais amplo do que o da importantíssima disputa eleitoral. Será um ano decisivo sobretudo no embate pela hegemonia política no país. Essa hegemonia, hoje conquistada pela extrema-direita, não é um dado da natureza, como querem os céticos. É o resultado de uma luta. Na verdade, de milhões de pequenas lutas. É um dado humano e, portanto, suscetível aos golpes do martelo da história. O futuro pertence a uma esquerda que, sem perder a capacidade de diálogo com as consciências mais atrasadas, esteja à altura do desafio de reconquistar as ruas, os corações e as mentes de milhões.