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MUNDO

Encantar, enquanto ainda há tempo

Há décadas, a ciência alerta sobre os riscos de colapso associado ao aquecimento global. É a esquerda em 2025, e não a extrema-direita com seu discurso “antissistema” ou os liberais colocando o lucro acima da vida, que tem as melhores respostas para as crises que ameaçam a vida no planeta

Por Guilherme Cortez, deputado estadual de SP pelo PSOL
Lauro Alves/SECOM

O ano de 2024 chegou ao fim sob um clima de apreensão e desesperança. Enquanto o planeta se aproxima da data-limite apontada pela ciência para uma guinada nas emissões de gases de efeito estufa a tempo de evitar um colapso ambiental que inviabilize a vida como a conhecemos, por todo o mundo a extrema-direita mantém sua dinâmica de crescimento, tendo levado a melhor na mais importante disputa de um ano em que quase metade da população global foi às urnas: as eleições americanas.

Tamanha desilusão não é sem motivo, afinal, no começo do ano, o ponteiro do Relógio do Juízo Final estava a apenas 90 segundos do limite – a menor distância registrada na história. Na esteira da guerra da Ucrânia e do genocídio do povo palestino, das tensões crescentes entre os Estados Unidos e a China e da emergência climática, o gasto militar global atingiu o maior nível desde a Segunda Guerra Mundial.

Há décadas, a ciência alerta a humanidade sobre os riscos de colapso dos limites planetários associado ao aquecimento global e que, para evita-lo, seria necessário um grande esforço consciente, coletivo e racional de toda a humanidade, que deixasse de lado as desigualdades entre nós em prol de um objetivo comum – a sobrevivência da espécie humana e a manutenção do equilíbrio ambiental. Afinal, a atmosfera não reconhece as fronteiras imaginárias criadas por nós. O efeito estufa não se importa se os gases que o intensificam são oriundos do Canadá ou da África do Sul, do desmatamento na floresta Amazônica ou da queima de carvão na China, do fracking americano ou de alguma petrolífera dinamarquesa no sudeste asiático.

Esforço esse que não poderia parecer mais remoto. Na contramão das recomendações científicas, a humanidade parece caminhar exatamente na direção contrária de uma articulação global, responsável e solidária para fazer frente às mudanças climáticas. Por todo o mundo, a extrema-direita se fortalece com um discurso negacionista, divisionista e individualista, esvaziando organismos de cooperação multilateral, enquanto a esquerda e os verdes perdem terreno.

Eleições

No Brasil, as eleições municipais mostraram uma esquerda que não conseguiu ganhar terreno após a volta ao governo federal, um centrão turbinado pelo dinheiro público drenado através de emendas parlamentares e uma extrema-direita dinâmica dois anos depois da derrota de 2022, capaz de produzir novos quadros em velocidade muito superior às forças progressistas. Nos Estados Unidos, a vitória acachapante de Trump contra o governo federal, e apesar da sua amplamente reconhecida lista de crimes, mostrou que o neofascismo não é um fenômeno passageiro nem acidental e que a defesa da democracia em abstrato não é mais capaz de barrar os seus inimigos. O respiro do ano ficou a cargo do México, com a vitória da Claudia Sheinbaum, dando continuidade ao projeto do Movimento Regeneração Nacional (MORENA), e da França, onde a esquerda unificada e com um programa popular conseguiu impedir uma vitória da extrema-direita, apesar do golpe de Macron para burlar o resultado das urnas.

“Não por outro motivo, a extrema direita tem sido tão bem-sucedida em vender a si própria como ‘antissistema’, embora seja ela mesma a expressão mais pura e atrasada do sistema que diz combater.”

O mundo nunca esteve tão perto do abismo e caminhando tão rápido em sua direção. As vozes que se opõem a esse rumo suicida encontram muitas dificuldades para avançar. Em São Paulo, um prefeito inexpressivo conseguiu levar a melhor sobre um dos melhores nomes da esquerda surgidos nesse século, enquanto os porto-alegrenses reelegeram com folga o prefeito que deixou a cidade submersa. Greta Thunberg e a greves globais pelo clima têm hoje apenas uma fração da audiência de anos atrás. É compreensível, portanto, o desencanto generalizado com qualquer perspectiva otimista de futuro.

Então, o que fazer? Algumas pessoas sucumbem ao adoecimento mental. Outras optam pela alienação. Aquelas que decidiram dedicar alguma parte do seu tempo a mudar a realidade ao seu redor o fazem com cada vez menos convicção.

Transformar o presente para disputar o futuro

Aprisionada em uma maré reacionária e refém de uma política defensiva há anos, a esquerda tem falhado em apresentar um projeto motivador de futuro. Diante de um mundo em crise, a extrema-direita tem sido a força política mais convincente ao apresentar alternativas – por mais ineficientes, imorais e mentirosas que elas sejam. Aproveitando o vácuo das forças progressistas, canalizando o medo, as inseguranças e o ressentimento de grupos sociais contra inimigos imaginários – sejam eles imigrantes, chineses, cotistas, sindicatos ou o movimento LGBT –, dopando seus apoiadores com uma boa dose de negacionismo científico e manipulando com brilhantismo a máquina das redes sociais e dos algoritmos, a extrema-direita tem pautado a reação à crise do mundo como o conhecemos.

À esquerda, enfraquecida por décadas de desmonte neoliberal das entidades de representação coletiva e pela adaptação de boa parte de suas direções aos limites da democracia liberal, tem restado oferecer uma cambaleante resistência à ascensão das forças reacionárias e à depenação das estruturas restantes do Estado, quando não o triste papel de defensor das últimas posições de um sistema em decomposição. Não por outro motivo, a extrema-direita tem sido tão bem-sucedida em vender a si própria como “antissistema”, embora seja ela mesma a expressão mais pura e atrasada do sistema que diz combater.

Com mentiras, notícias falsas, teorias da conspiração, ridicularizando adversários ou recorrendo ao velho racismo, à misoginia e ao pânico moral, a extrema-direita tem conseguido motivar seus adeptos e oferecer uma saída para uma realidade amplamente marcada pela desesperança: o escapismo para um passado utópico onde não se ouvia falar em mudanças climáticas, comer carne ou ter um carro eram marcadores de qualidade de vida e os papeis sociais eram rigorosamente estáticos. Enquanto isso, a esquerda apresenta com cada vez menos entusiasmo uma visão de mundo ceticista, desanimadora e autocontenciosa, com pitadas de policiamento moral e hiperracionalização. Não é difícil pensar no que é mais convidativo – o que não significa mais ético ou consequente com a realidade.

“Temos pouco tempo para fazermos mudanças radicais a nível global, enfrentando interesses econômicos poderosos, que colocariam em xeque as concepções fundamentais do capitalismo.”

Encantar – palavra banida do vocabulário da esquerda objetivista – as pessoas em torno de uma proposta inspiradora de futuro nunca foi tão necessário. Temos pouco tempo para fazermos mudanças radicais a nível global, enfrentando interesses econômicos poderosos, que colocariam em xeque as concepções fundamentais do capitalismo e da forma como nossa sociedade se organiza, se quisermos ter alguma chance de sobreviver às mudanças climáticas e às múltiplas ameaças à vida no planeta Terra. Isso só será possível conquistando maioria social e com capacidade de mobilização – o que, por sua vez, depende de levarmos a melhor contra a extrema-direita na disputa das saídas da crise multifatorial que vivemos.

Para disputar contra populistas reacionários fluentes na linguagem dos algoritmos, a esquerda precisa mobilizar ela própria os afetos das pessoas diante da crise generalizada ao seu redor, ao invés de insistir em uma abordagem cética ou no retorno impossível para um ponto de equilíbrio. Apresentar a si própria como a mais consequente alternativa ao “sistema”, porque é a única que questiona os pressupostos da relação entre o poder político e o econômico que tornam a democracia liberal uma fachada da manutenção dos interesses de uma minoria sobre o desalento da maioria. Se alfabetizar no dialeto das redes sociais e entender que, no século XXI, as “ruas” não têm hierarquia sobre o terreno digital, mas o complementam.

A conjuntura defensiva que hoje é reconhecida pela maior parte dos setores consequentes da esquerda não pode nos fazer abdicar da defesa das nossas próprias bandeiras de futuro, por mais distantes que possam parecer. É a partir delas que podemos mobilizar afetos para passar da defesa à ação. Vale lembrar que Bolsonaro defendia suas pautas mórbidas muitos anos antes de conquistarem a devoção de milhões de pessoas, numa época em que elas pareciam para a grande maioria inapropriadas. Ou que a luta contra a escala 6×1 irrompeu logo após um resultado eleitoral muito desfavorável para os defensores da redução da jornada de trabalho.

“Mostrar que o caminho para superarmos essas crises passa por mais solidariedade e cooperação e não por individualismo e divisão.”

Há um limite para o quanto somos capazes de nos mobilizar contra retrocessos. Depois de três, quatro ou cinco derrotas, é natural que uma parte se pergunte se ainda vale a pena sair de casa, comprometer sua vida pessoal, seu trabalho ou seus estudos para tentar frear uma onda de retrocessos que parece avassaladora. Por isso as manifestações de rua estão cada vez mais esvaziadas. É preciso dar às pessoas uma razão para se engajar. Não apenas lutar “contra”, mas “a favor de”.

A esquerda tem as melhores respostas para as crises que hoje ameaçam a vida no planeta Terra. Decretar imediato cessar-fogo nas guerras existentes, recompor as estruturas do Estado e as políticas públicas, substituir o orçamento militar por investimentos pesados em compensação, adaptação e prevenção dos efeitos das mudanças climáticas, descarbonizar urgentemente a economia e cobrar a conta de quem lucrou por séculos com a exploração do nosso meio ambiente, reflorestar áreas devastadas, remodelar nossas cidades, tornar todos os recursos ambientais públicos e instituir sua gestão democrática, com protagonismo das comunidades e povos originários. Resta torná-las convincentes, atrativas e motivadoras. Mostrar que o caminho para superarmos essas crises passa por mais solidariedade e cooperação e não por individualismo e divisão. Que a vida em um mundo de paz e equilíbrio ambiental significa mais liberdade e qualidade de vida, não restrições e policiamento.

Em 2025 precisamos sonhar mais e encantar com um projeto de futuro digno e animador, mais convincente do que as alternativas hipócritas da extrema-direita.

Publicado originalmente me Jacobina