Durante a campanha eleitoral de 2020, a campanha de Joe Biden destacou muito as diferenças gritantes entre sua candidatura e Donald Trump. Quando Biden venceu, muitos estadunidenses respiraram aliviados e acredicaram que a América poderia retornar ao “normal” depois de quatro anos desastrosos da presidência de Trump. Embora isso seja verdade em relação aos assuntos domésticos, pouca coisa mudou em relação à política dos EUA para o Oriente Médio.
A atenção de Biden estava voltada para outro lugar. A China era vista como a grande rival dos Estados Unidos e a Ásia era a maior prioridade do presidente. Ele planejava seguir o “pivô para a Ásia” de Barack Obama. É por isso que, durante seu mandato, Biden nunca rompeu completamente com a política de Trump para o Oriente Médio. Manter o status quo — o que Daniel Moynihan certa vez chamou de “negligência benigna” — parecia uma abordagem razoável.
Por exemplo, Biden nunca retornou ao acordo nuclear do Irã de 2015. Trumo e os republicanos, aliados com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, criticaram os democratas durante anos sobre o acordo negociado por Obama. Uma das maiores propostas da campanha de Trump foi retirar o país disso, o que ele havia feito em 2018. Quando Biden assumiu o cargo, ele não estava disposto a gastar o capital político necessário para negociar um novo acordo.
De forma semelhante, ele manteve o severo embargo diplomático e financeiro de Trump à Palestina. Isso incluiu o fechamento do “escritório” da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Washington/DC [2] e a suspensão da assistência financeira e de segurança à autoridade palestina [3] pelo governo Trump. Biden também não reverteu a transferência da embaixada dos EUA para Jerusalém ou o reconhecimento da soberania israelense sobre a Cisjordânia e as Colinas de Golã. Todas foram aprovadas durante o primeiro governo Trump.
Trump também encerrou o apoio dos EUA à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA) [4], o que prejudicou gravemente os serviços essenciais para os refugiados palestinos na Cisjordânia, Gaza, Síria e Líbano. Biden retomou esse financiamento por um tempo, mas o interrompeu após Israel falsamente acusar o pessoal da Agência da ONU de ligação com o Hamas [5]. Ele nunca retomou o financiamento, mesmo depois das acusações serem refutadas [6]. Os Estados Unidos foram o único entre dezesseis países doadores que não retomaram o apoio financeiro. Em um segundo mandato, Trump não apenas continuará essa política: ele pode se unir a Israel para exigir a dissolução total da UNRWA [7].
A distração proposital de Biden ao Oriente Médio e sua falha em priorizar o conflito israelense-palestino conduziu aos horrores da guerra em Gaza. Gerenciar um conflito é diferente de fazer um esforçado trabalho necessário para resolvê-lo. A gestão muitas vezes resulta em danos ainda maiores quando as tensões aumentam. Se o presidente tivesse se engajado mais, ele poderia ter atuado de forma mais rápida e decisiva. Ele poderia ter sido capaz de aliviar o sofrimento ou até mesmo encerrando as hostilidades, como fez durante um conflito anterior em 2021 [8]. A distração do presidente [Biden] convenceu Netanyahu de que ele poderia conduzir uma guerra de extermínio contra o Hamas e o povo de Gaza — e escapar impune. Biden provou que Netanyahu estava certo. Uma segunda presidência de Trump promete ainda mais dor e sofrimento em toda a região, incluindo uma potencial guerra regional entre Israel, apoiado pelos Estados Unidos e seus aliados ocidentais, e o Irã, junto com seus aliados regionais.
Trump e Biden: hostilidade duplamente assegurada contra o Irã
Trump compartilha traços de personalidade e ideologia política com o líder israelense. Ambos são narcisistas malignos [9] que acreditam que seus próprios interesses pessoais são idênticos aos da nação. Ambos são autoritários que enxergam inimigos em todo lugar. Ambos estão dispostos a destruir a democracia para alcançar seus objetivos.
O pleno apoio de Trump a Israel durante seu primeiro mandato foi impulsionado por um de seus mais generosos doadores, o falecido Sheldon Adelson, um bilionário pró-Israel que doou US$ 100 milhões para sua campanha de 2020. O magnata dos cassinos fez lobby intensivo em benefício de Israel para a mudança da embaixada para Jerusalém e o reconhecimento da soberania israelense sobre a Cisjordânia.
A abordagem de Trump não foi nem estratégica ou transacional. Quem o bajulasse ou o financiasse seria seu favorito. Ele retribuía sua admiração fazendo favores para eles. O que explica a proximidade extraordinariamente estreita entre os dois líderes e os “presentes” políticos que Trump concedeu a Israel, bem como a aprovação de Trump sobre o perigoso e provocativo assassinato do mais importante e amado líder militar do Irã, Qasem Soleimani. A Unidade 8200 de Israel [10] forneceu informações-chave de inteligência de sinais, permitindo que a CIA localizasse, mirasse e assassinasse Soleimani.
Os críticos da retirada de Trump do acordo nuclear argumentaram corretamente [11] que isso libertaria o Irã para avançar em direção à capacidade de produzir armas nucleares. Ao se recusar a assinar um novo acordo, Biden continuou essa política fracassada.
Durante a guerra em Gaza, o presidente dos EUA, já no fim de seu mandato, abandonou o povo palestino e permitiu que Israel exterminar o Hamas e, junto com isso, grande parte de Gaza. Isso encorajou Israel a perseguir uma estratégia de agressão máxima contra seus inimigos no Líbano, em Damasco e no Irã.
Há alguns meses, em Damasco, Israel assassinou um importante comandante militar iraniano e destruiu um complexo diplomático. Este ataque foi seguido por duas rodadas inéditas de ataques diretos do Irã contra Israel e os ataques retaliatórios deste último. Estes foram os primeiros ataques de ambos os lados contra o território inimigo.
Esse confronto entre Israel e Irã poderia ter levado a ataques massivos de mísseis contra alvos econômicos estratégicos e centros populacionais em ambos os países. Os dois possuem centenas de milhares de mísseis. Além disso, Israel possui uma força aérea capaz de atacar o território iraniano.
Biden percebeu finalmente que a região estava à beira de uma guerra total e pressionou Israel a não atacar as instalações nucleares iranianas. A contenção atípica de Netanyahu pode ser a razão que evitou a guerra, embora recentemente ele tenha afirmado que Israel atacou ativos relacionados ao programa nuclear [12]. Nem o Irã nem autoridades de inteligência ocidentais confirmaram essa alegação.
Analistas tem apontado que tal ataque israelense poderia ter sinalizado aos iranianos que apostar em armas nucleares seria seu trunfo. Se tornando uma potência militar, asim como fez a Coreia do Norte, seria o último, e talvez o único, garantidor da segurança iraniana.
O novo governo Trump dificilmente provavelmente restringiria os objetivos militares israelenses na região. Consequentemente, existe uma maior chance de novos conflitos e guerras. Embora Netanyahu provavelmente ceda cada vez mais ao objetivo de Trump de encerrar a guerra em Gaza até janeiro, um segundo mandato de Trump poderia ser ainda mais perigoso que o primeiro.
Biden fez um grande favor a Trump ao negociar um cessar-fogo entre o Hezbollah e Israel [13], o que foi anunciado no início desta semana. Como em outros esforços fracassados, Netanyahu hesitou até o último minuto. Mas uma ameaça dos negociadores estadunidenses [14] de abandonar as conversas obrigou Netanyahu a assinar o acordo, que seu gabinete, então, aprovou. No entanto, o acordou durou apenas sessenta dias — cronometrado perfeito para alguns dias após a posse de Trump. O presidente eleito não desejará que nada estrague esse evento. Assim, talvez Israel respeite este cessar-fogo para ganhar o favor dele.
Mais tarde, em seu mandato, se Israel atacar o Hezbollah, é improvável que Trump se empenhe com a mesma intensidade de esforços que a administração Biden, que passou meses em negociações exaustivas. Em vez disso, o presidente eleito pode incentivar Israel em seus ataques contra o Hezbollah no Líbano e Irã. Israel, de algum modo, se sentirá encorajado a atacar quando e onde desejar.
A relação entre Trump e Netanyahu
A política e o temperamento de Donald Trump e Bibi Netanyahu fazem deles um perfeito par. Netanyahu é um grande manipulador. Ele sabe como bajular Trump, que está em busca disso. Se o primeiro quer atacar o Irã, não será difícil persuadir o presidente dos EUA para concordar com isso.
Mas Trump desejará manter suas mãos limpas. Ele não vai querer forçar os EUA a participar, pois isso envolveria ainda mais o país na guerra no Oriente Médio. A atitude de Trump provavelmente será: se Bibi quer lutar contra o Irã, o deixe. Ele estará fazendo aos EUA um favor e eliminando um inimigo que ambos odeiam.
Israel tem se envolvido durante anos em uma guerra de múltiplos fronts no Irã e seus aliados regionais, incluindo o Hamas e o Hezbollah. Isso tem degradado seriamente, especialmente nos últimos seis meses, a força de cada um por meio do assassinato de líderes importantes e repetidos ataques aéreos e terrestres em Gaza e no Líbano. Trump colocará poucas, se existirem, restrições sobre as agressões israelenses em toda a região, incluindo o Yemen, o Iraque, o Irã, o Líbano, a Síria e a Palestina.
No segundo mandato de Trump como presidente, nós podemos esperar uma política externa muito mais agressiva do que em seu primeiro [15], quando ele foi limitado por conselheiros mais tradicionais e cautelosos. Seus recentemente nomeados para cargos militares [16] e de inteligência [17] estão totalmente alinhados com suas vontades e objetivos pró-Putin e pró-Israel. Não haverá ceticismo ou precaução. Ao contrário, veremos esses oficiais competindo para implementar as políticas mais radicais que o chefe sugerir. Os freios terão sido liberados e as políticas poderão tomar rumos para onde quer que Trump as leve.
Isso coloca os Estados Unidos em uma zona perigosa de incerteza. Embora Trump proclame a intenção de retirar as forças estadunidenses do Oriente Médio, sua colaboração com Israel, que mantém a hegemonia militar na região, trabalhará contra isso.
Apesar do primeiro-ministro israelense ter desafiado todos os esforços do governo Biden de conter suas ações genocidas em Gaza, ele pode aceitar o desejo do presidente eleito de encerrar a guerra antes de ele iniciar seu segundo mandato [18]. O primeiro-ministro provavelmente se sentirá mais em dívida com um presidente que compartilha de sua política, islamofóbica e com visão antipalestina. No entanto, embora uma guerra possa acabar, outras continuarão a crescer, já que suas causas subjacentes permanecerão sem solução.
O segundo mandato de Trump provavelmente continuará com a abordagem do laissez-faire de Biden de negligenciar o colapso gradual na Cisjordânia em Israel, que tem testemunhado uma “nova Nakba” [19], com a expulsão de milhares de palestinos de seus vilarejos, onde viveram durante gerações. Enquanto o genocídio em Gaza é explícito, a Cisjordânia caminha para algo semelhante. Isso tem incluído campos de concentração em que as casas, veículos e negócios palestinos são incendiados, moradores espancados e alguns assassinados por colonos israelenses.
Israel ainda não anexou formalmente a Cisjordânia devido à pressão que estados árabes fizeram a Trump durante seu primeiro mandato. Mas em um segundo mandato, é improvável que a Arábia Saudita exercerá a mesma pressão, nem que Trump provavelmente se oponha à anexação. Pelo contrário, ele provavelmente dará boas-vindas a isso [20].
A anexação apressará a absorção de toda a Cisjordânia (e talvez até Gaza) por Israel propriamente dito. Os palestinos vivendo ali não conseguirão a cidadania israelense, permanecendo em um limbo sem Estado que eles suportaram por quase sessenta anos. Sem direitos, sem oportunidades de trabalho e econômicas, e com recursos de terra e água continuamente confiscados, eles se tornarão vítimas de um regime de apartheid completo.
O Tribunal Penal Internacional, após meses de atraso, finalmente emitiu esse mês mandados de prisão para Netanyahu e o ministro da defesa israelense, Yoav Gallant [21]. Onze [países] signatários do Estatuto de Roma já declararam que honrarão os mandados se os dois entrarem em seus territórios [22]. O Reino Unido e a Austrália afirmaram que “cumpririam suas obrigações legais” sobre o tratado, que podemos chamar de um “sim” qualificado. A Alemanha é uma das poucas partes que se recursou abertamente a fazer isso. É um passo encorajador para responsabilizar Israel por crimes de guerra. O próprio tribunal exortou todos os seus membros a afirmarem seus compromissos na execução dos mandatos: “Os Estados que são parte do Estatuto de Roma do TPI tem uma obrigação de cooperar com o TPI, de acordo com o Capítulo Nove do estatuto”, disse o porta-voz do tribunal, Fadi El Abdallah, nesta segunda. “Os Estado que não são parte do TPI podem cooperar de uma forma voluntária se quiserem”.
O tribunal também alertou que as nações que são recalcitrantes ou que se recusarem a fazer isso, podem enfrentar um processo interno disciplinar. Mas apenas uma maior determinação para fazer cumprir a decisão do TPI pelo resto dos 124 membros levará à responsabilização dos crimes de Israel.
Biden denunciou a nova regra. Trump, por seu lado, tem declarado [24] sua antipatia com o TPI. Ele, junto com Israel, farão todo o possível para minar o órgão da ONU e sua decisão nesse caso. Isso permitirá que Israel escape impune dos assassinatos.
Os líderes israelenses visados provavelmente evitarão estes países.O mundo, caso intimidad ou indiferente, provavelmente não oferecerá muita resistência. É improvável que Israel pague um preço. Nem que essas nações se levantarão em favor ou defenderão os palestinos. Isso continuará a perpetuar o sofrimento e o ódio palestino. Trump contribuirá para essa disfunção. Ele continuará a abordagem de Biden de fornecer a Israel as armas que ele usa para cometer genocídio, ao mesmo tempo em que o protege da responsabilização por meio dos vetos do Conselho de Segurança dos EUA. Isso, por sua vez, provavelmente continuará o ciclo trágico da resistência armada que conduziu ao ataque do Hamas de 10 de julho. A firmeza de um povo não pode ser suprimida, independentemente de quão implacável seja a política dos EUA ou de Israel em relação às vítimas palestinas.
[1] https://archive.is/stMlX
[2] https://www.aljazeera.com/news/2018/9/10/trump-administration-announces-closure-of-washington-plo-office
[3] https://archive.is/cIk38
[4] https://www.brookings.edu/articles/in-one-move-trump-eliminated-us-funding-for-unrwa-and-the-us-role-as-mideast-peacemaker/
[5] https://www.un.org/unispal/document/unrwa-claims-versus-facts-press-release-26feb2024/
[6] https://archive.is/20240323211016/https:/www.haaretz.com/us-news/2024-03-23/ty-article/.premium/u-s-officially-bars-unrwa-funding-through-march-2025/0000018e-6cfb-d477-abbf-effb6e770001
[7] https://www.thenewhumanitarian.org/analysis/2024/03/06/gaza-depth-why-israel-wants-end-unrwa-and-what-its-closure-would-mean
[8] https://www.axios.com/2021/05/22/gaza-crisis-israel-biden-response
[9] https://worldcrunch.com/world-affairs/putin-trump-netanyahu-narcissist
[10] https://apnews.com/article/middle-east-iran-jerusalem-israel-military-intelligence-cfba78c69ae656697684ab92c4cac5b9
[11] https://responsiblestatecraft.org/iran-nuclear-deal/
[12] https://www.bbc.com/news/articles/cy0l1ep34pro
[13] https://www.cbsnews.com/news/israel-hezbollah-ceasefire-netanyahu-war-lebanon-gaza-hamas/
[14] https://www.middleeastmonitor.com/20241125-us-envoy-hochstein-threatens-to-withdraw-from-israel-lebanon-ceasefire-efforts-until-tel-aviv-agrees-on-proposal/
[15] https://www.aljazeera.com/news/2024/11/6/what-does-trump-2-0-mean-for-us-foreign-policy
[16] https://www.pbs.org/newshour/politics/7-things-to-know-about-pete-hegseth-trumps-defense-secretary-pick
[17] https://www.nbcnews.com/politics/national-security/trumps-pick-top-intel-job-accused-traitorous-parroting-russian-propaga-rcna180073
[18] https://www.timesofisrael.com/trump-told-netanyahu-he-wants-gaza-war-over-by-time-he-enters-office-sources/
[19] https://www.theguardian.com/world/2023/oct/31/west-bank-palestinian-villages-israeli-army-settlers
[20] https://www.cbsnews.com/news/will-israel-annex-west-bank-after-trump-takes-office/
[21] https://www.icc-cpi.int/news/situation-state-palestine-icc-pre-trial-chamber-i-rejects-state-israels-challenges
[22] https://www.newsweek.com/netanyahu-arrest-warrant-list-countries-comply-icc-1990062
[23] https://www.hrw.org/news/2020/07/06/donald-trumps-attack-icc-shows-his-contempt-global-rule-law
Artigo originalmente publicado em https://jacobin.com/2024/11/trump-biden-israel-middle-east
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