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MUNDO

Compreendendo a Rebelião na Síria: Uma entrevista com Joseph Daher

Entrevista com Joseph Daher Por Tempest

A rebelião na Síria pegou o mundo de surpresa e levou à queda da ditadura da família Assad, que governava o país desde que o pai de Bashar al-Assad, Hafez, tomou o poder em um golpe de estado há 54 anos. Nem as forças militares do regime, nem seu patrocinador imperial, a Rússia, e seu apoio regional, o Irã, foram capazes de defendê-lo. Cidades sob controle do regime foram libertadas, milhares de prisioneiros políticos foram libertados de suas masmorras notórias e abriu-se espaço para uma nova luta por uma Síria livre, inclusiva e democrática pela primeira vez em décadas.

Ao mesmo tempo, a maioria dos sírios sabe que essa luta enfrenta enormes desafios, começando pelas duas principais forças rebeldes: Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e o Exército Nacional Sírio (SNA), apoiado pela Turquia. Embora tenham liderado a vitória militar, ambas são autoritárias e têm um histórico de sectarismo religioso e étnico. Alguns no campo da esquerda afirmaram sem fundamento que a rebelião foi orquestrada pelos EUA e Israel. Outros romantizaram de forma acrítica essas forças rebeldes, acreditando que elas reacenderam a revolução popular original que quase derrubou o regime de Assad em 2011. Nenhuma dessas visões captura as dinâmicas complexas que se desenrolam na Síria hoje.

Nesta entrevista, realizada em meio a uma situação rapidamente mutável na Síria, o Tempest entrevista o socialista suíço-sírio Joseph Daher sobre o processo que levou à queda do regime de Assad, as perspectivas para as forças progressistas e os desafios que elas enfrentam na luta por um país verdadeiramente libertado, que sirva aos interesses de todos os seus povos e classes populares.

Tempest: Como os sírios estão se sentindo após a queda do regime?

Joseph Daher: A felicidade é inacreditável. É um dia histórico. 54 anos de tirania da família Assad se foram. Vimos vídeos de manifestações populares por todo o país, de Damasco, Tartus, Homs, Hama, Aleppo, Qamichli, Suwaida, etc., de todas as seitas religiosas e etnias, destruindo estátuas e símbolos da família Assad.

E, claro, há uma grande felicidade pela libertação de prisioneiros políticos das prisões do regime, especialmente da prisão de Sednaya, conhecida como o “abatedouro humano”, que podia conter de 10.000 a 20.000 prisioneiros. Alguns deles estavam detidos desde a década de 1980. Da mesma forma, pessoas que haviam sido deslocadas em 2016 ou antes, de Aleppo e outras cidades, conseguiram voltar para suas casas e bairros, vendo suas famílias pela primeira vez em anos.

Ao mesmo tempo, nos primeiros dias após a ofensiva militar, as reações populares foram inicialmente mistas e confusas, refletindo a diversidade de opiniões políticas na sociedade síria, tanto dentro quanto fora do país. Algumas seções estavam muito felizes com a conquista desses territórios e o enfraquecimento do regime, e agora com sua possível queda.

Mas alguns setores da população estavam, e ainda estão, temerosos de HTS e SNA. Eles estão preocupados com a natureza autoritária e reacionária dessas forças e seu projeto político.

E alguns estão preocupados com o que acontecerá na nova situação. Em particular, amplos setores dos curdos, assim como outros, enquanto celebram a queda da ditadura de Assad, emitiram condenações contra os deslocamentos forçados e assassinatos promovidos pelo SNA.

Tempest: Você pode nos contar a sequência dos eventos, especialmente o avanço dos rebeldes, que derrotaram as forças militares de Assad e levaram à sua queda? O que aconteceu?

JD: Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e o Exército Nacional Sírio (SNA), apoiado pela Turquia, lançaram uma campanha militar no dia 27 de novembro de 2024 contra as forças do regime sírio, alcançando vitórias impressionantes. Em menos de uma semana, HTS e SNA tomaram o controle da maior parte das províncias de Aleppo e Idlib. Em seguida, a cidade de Hama, localizada a 210 quilômetros ao norte de Damasco, caiu nas mãos de HTS e SNA após intensos confrontos militares entre eles e as forças do regime, apoiadas pela força aérea russa. Após Hama, o HTS tomou o controle de Homs.

Inicialmente, o regime sírio enviou reforços para Hama e Homs e, com o apoio da força aérea russa, bombardeou as cidades de Idlib e Aleppo e suas redondezas. Nos dias 1 e 2 de dezembro, mais de 50 ataques aéreos atingiram Idlib, com pelo menos quatro instalações de saúde, quatro escolas, dois campos de deslocados e uma estação de água sendo impactados. Os bombardeios deslocaram mais de 48.000 pessoas e interromperam gravemente os serviços e a entrega de ajuda. O ditador Bashar al-Assad havia prometido derrotar seus inimigos e afirmado que “o terrorismo só entende o discurso da força.” Mas seu regime já estava desmoronando de todos os lados.

Enquanto o regime perdia cidade após cidade, as províncias do sul, Suweida e Daraa, se libertaram; suas forças de oposição populares e locais, separadas e distintas de HTS e SNA, tomaram o controle. As forças do regime então recuaram de localidades a cerca de dez quilômetros de Damasco e abandonaram suas posições na província de Quneitra, que faz fronteira com as Colinas de Golã, ocupadas por Israel.

À medida que diferentes forças armadas da oposição, novamente não HTS nem SNA, se aproximavam da capital, Damasco, as forças do regime simplesmente desmoronaram e se retiraram, enquanto manifestações e a queima de todos os símbolos de Bashar al-Assad se multiplicavam nos diversos subúrbios de Damasco. Na noite de 7 e 8 de dezembro, foi anunciada a libertação de Damasco. O destino e a localização exatos de Bashar al-Assad eram inicialmente desconhecidos, mas algumas informações indicaram que ele estava na Rússia sob a proteção de Moscou.

A queda do regime demonstrou sua fraqueza estrutural, tanto militar quanto econômica e politicamente. Ele desmoronou como um castelo de cartas. Isso não foi uma surpresa, pois parecia claro que os soldados não iriam lutar pelo regime de Assad, dada a péssima condição de seus salários e condições de trabalho. Eles preferiam fugir ou simplesmente não lutar, em vez de defender um regime pelo qual tinham pouca simpatia, especialmente porque muitos haviam sido recrutados à força.

Junto a essas dinâmicas no sul, ocorreram outras em diferentes partes do país desde o início da ofensiva dos rebeldes. Primeiro, o SNA liderou ataques contra territórios controlados pelas Forças Democráticas Sírias (SDF), lideradas pelos curdos, no norte de Aleppo, e depois anunciou o início de uma nova ofensiva contra a cidade norte de Manbij, que está sob o domínio da SDF. No domingo, 8 de dezembro, com o apoio do exército turco, da força aérea e da artilharia, o SNA entrou na cidade.

Em segundo lugar, a SDF capturou a maior parte da província de Deir-ez-Zor, anteriormente controlada pelas forças do regime sírio e milícias pró-Irã, depois que elas se retiraram para se reagruparem em outras áreas para lutar contra HTS e SNA. A SDF então estendeu seu controle por vastas áreas do nordeste, anteriormente sob o domínio do regime.

Tempest: Quem são as forças rebeldes e, em particular, a principal formação rebelde HTS e SNA? Quais são suas políticas, programas e projetos? O que as classes populares pensam sobre elas?

JD: A bem-sucedida tomada de Aleppo, Hama, Homs e outros territórios em uma campanha militar liderada pelo HTS reflete, de muitas maneiras, a evolução desse movimento ao longo de vários anos para se tornar uma organização mais disciplinada e estruturada, tanto politicamente quanto militarmente. Hoje, o HTS pode produzir drones e possui uma academia militar. O HTS conseguiu impor sua hegemonia sobre vários grupos militares, tanto por repressão quanto pela inclusão, ao longo dos últimos anos. Com base nesses desenvolvimentos, o HTS se posicionou para lançar esse ataque.

O HTS se tornou um ator quase estatal nas áreas que controla. Estabeleceu um governo, o Governo de Salvação Sírio (SSG), que atua como a administração civil do HTS e oferece serviços à população. Nos últimos anos, houve uma clara disposição do HTS e do SSG em se apresentar como uma força racional para as potências regionais e internacionais, com o objetivo de normalizar seu governo. Isso resultou, especialmente, na ampliação da presença de algumas ONGs operando em setores chave como educação e saúde, áreas nas quais o SSG carece de recursos financeiros e expertise.

Isso não significa que não exista corrupção nas áreas sob seu controle. O HTS tem imposto sua autoridade através de medidas autoritárias e de policiamento. Ele reprimiu ou limitou atividades que considera contrárias à sua ideologia. Por exemplo, o HTS interrompeu vários projetos de apoio às mulheres, particularmente nas áreas de refugiados, sob a alegação de que esses projetos cultivavam ideias de igualdade de gênero que eram hostis ao seu governo. O HTS também perseguiu e prendeu opositores políticos, jornalistas, ativistas e qualquer pessoa que considerasse crítica ou opositora.

O HTS — que ainda é categorizado como uma organização terrorista por várias potências, incluindo os EUA — também tem tentado projetar uma imagem mais moderada de si mesmo, buscando reconhecimento como um ator racional e responsável. Essa evolução remonta à ruptura de seus laços com a Al-Qaeda em 2016 e à reestruturação de seus objetivos políticos dentro do quadro nacional sírio. O HTS também reprimiu indivíduos e grupos ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico.

Em fevereiro de 2021, em sua primeira entrevista com um jornalista dos EUA, seu líder, Abu Mohammad al-Jolani, ou Ahmed al-Sharaa (seu nome verdadeiro), declarou que a região sob seu controle “não representa uma ameaça à segurança da Europa e da América”, afirmando que as áreas sob seu domínio não se tornariam uma base para operações no exterior.

Essa tentativa de se definir como um interlocutor legítimo no cenário internacional incluiu a ênfase no papel do grupo na luta contra o terrorismo. Como parte dessa transformação, o HTS permitiu o retorno de cristãos e drusos em algumas áreas e estabeleceu contatos com alguns líderes dessas comunidades.

Após a captura de Aleppo, o HTS continuou a se apresentar como um ator responsável. Por exemplo, os combatentes do HTS imediatamente postaram vídeos na frente de bancos, oferecendo garantias de que queriam proteger a propriedade privada e os bens. Eles também prometeram proteger os civis e as comunidades religiosas minoritárias, especialmente os cristãos, porque sabem que o destino dessa comunidade é amplamente monitorado no exterior.

Da mesma forma, o HTS fez várias declarações prometendo proteção similar aos curdos e a minorias islâmicas, como os ismailitas e os drusos. Também emitiu uma declaração sobre os alauítas, convocando-os a romper com o regime, sem no entanto sugerir que o HTS os protegeria ou esclarecer algo sobre seu futuro. Nessa declaração, o HTS descreve a comunidade alauíta como um instrumento do regime contra o povo sírio.

Por fim, o líder do HTS, Abu Mohammad al-Jolani, declarou que a cidade de Aleppo será administrada por uma autoridade local, e todas as forças militares, incluindo as do HTS, se retirarão completamente da cidade nas próximas semanas. Está claro que al-Jolani quer se envolver ativamente com potências locais, regionais e internacionais.

No entanto, ainda é uma questão em aberto se o HTS cumprirá essas declarações. A organização tem sido autoritária e reacionária, com uma ideologia islâmica fundamentalista, e ainda tem combatentes estrangeiros em suas fileiras. Muitas manifestações populares nos últimos anos ocorreram em Idlib contra seu governo e violações das liberdades políticas e dos direitos humanos, incluindo assassinatos e tortura de opositores.

Não basta tolerar as minorias religiosas ou étnicas ou permitir que elas rezem. A questão central é reconhecer seus direitos como cidadãos iguais, participando na decisão do futuro do país

Tempest: Não basta tolerar as minorias religiosas ou étnicas ou permitir que elas rezem. A questão central é reconhecer seus direitos como cidadãos iguais, participando na decisão do futuro do país. De maneira geral, declarações do líder do HTS, al-Jolani, como “pessoas que temem o governo islâmico ou viram implementações erradas dele ou não o entendem corretamente,” definitivamente não são reconfortantes, mas justamente o contrário. E quanto ao SNA apoiado pela Turquia?

JD: Em relação ao Exército Nacional Sírio (SNA) apoiado pela Turquia, ele é uma coalizão de grupos armados, em sua maioria com uma política islâmica conservadora. O SNA tem uma péssima reputação e é responsável por inúmeras violações dos direitos humanos, especialmente contra as populações curdas nas áreas sob seu controle. Eles participaram, por exemplo, da campanha militar liderada pela Turquia para ocupar Afrin, em 2018, que resultou no deslocamento forçado de cerca de 150.000 civis, a grande maioria curdos.

Na campanha militar atual, novamente, o SNA serve principalmente aos objetivos turcos, visando áreas controladas pelas Forças de Defesa Sírias (SDF), lideradas pelos curdos, e com grandes populações curdas. O SNA capturou, por exemplo, a cidade de Tal Rifaat e a região de Shahba, no norte de Aleppo, que antes estavam sob o controle da SDF, resultando no deslocamento forçado de mais de 150.000 civis e várias violações de direitos humanos contra indivíduos curdos, incluindo assassinatos e sequestros. O SNA então anunciou uma ofensiva militar, apoiada pelo exército turco, contra a cidade de Manbij, que abriga 100.000 civis e era controlada pela SDF.

Portanto, existem diferenças claras entre o HTS e o SNA. O HTS tem uma relativa autonomia em relação à Turquia, ao contrário do SNA, que é controlado pela Turquia e serve diretamente aos seus interesses. As duas forças são diferentes, buscam objetivos distintos e têm conflitos entre si, embora, por enquanto, esses conflitos tenham sido mantidos em segredo. Por exemplo, o HTS atualmente não busca confrontar a SDF. Além disso, o SNA publicou uma declaração crítica contra o HTS por seu “comportamento agressivo” contra membros do SNA, enquanto o HTS, por sua vez, teria culpado os combatentes do SNA pelo saque de bens.

Essas dinâmicas refletem a complexidade do cenário sírio, onde as alianças são frequentemente pragmáticas e as rivalidades internas podem ser reprimidas enquanto os objetivos mais amplos, como a luta contra o regime de Assad, continuam a ser a principal prioridade. Mas a questão da justiça social, da proteção das minorias e da construção de um futuro democrático e plural ainda está distante da realidade sob essas forças. As classes populares, especialmente as minorias, têm razões legítimas para estar cautelosas em relação a essas organizações, dado o histórico de repressão e violação de direitos humanos.

Tempest: Para muitos que não estavam prestando atenção à Síria, isso surgiu do nada. Quais são as raízes dessa situação na revolução, contra-revolução e guerra civil síria? O que aconteceu dentro do país nos últimos períodos que desencadeou a ofensiva militar? Quais são as dinâmicas regionais e internacionais que abriram espaço para os avanços dos rebeldes?

JD: Inicialmente, o HTS lançou a campanha militar como uma reação à escalada dos ataques e bombardeios sobre seu território no noroeste da Síria, realizados pelo regime de Assad e pela Rússia. O objetivo também era recapturar áreas que o regime havia conquistado, violando as zonas de desescalonamento acordadas em um acordo de março de 2020, negociado por Moscou e Teerã.

Com o sucesso surpreendente da ofensiva, no entanto, o HTS ampliou suas ambições e passou a chamar abertamente pela derrubada do regime, o que acabou sendo realizado por eles e por outras forças rebeldes.

O HTS e o SNA foram tão bem-sucedidos devido ao enfraquecimento dos principais aliados do regime. A Rússia, patrocinadora internacional chave de Assad, desviou suas forças e recursos para a sua guerra imperialista contra a Ucrânia. Como resultado, o envolvimento russo na Síria tem sido significativamente mais limitado do que em operações militares anteriores. Esse redirecionamento de recursos criou uma brecha no apoio militar crucial que o regime de Assad recebia, permitindo que os rebeldes avançassem com maior sucesso.

Além disso, a Turquia tem desempenhado um papel fundamental em apoiar o SNA e outras forças de oposição, utilizando sua influência para moldar o equilíbrio de poder no norte e noroeste da Síria. A Turquia tem uma agenda estratégica própria, incluindo a contenção da influência curda e o controle de áreas próximas à sua fronteira, o que contribui para a dinâmica do conflito. O apoio militar da Turquia, incluindo armas, treinamento e assistência aérea, tem sido vital para o avanço do SNA.

Dentro da Síria, a recente ofensiva também foi impulsionada por uma crescente desilusão com o regime de Assad, especialmente entre as populações que ainda estão sob seu controle. A repressão brutal, a corrupção generalizada, e a falta de qualquer perspectiva de uma solução política para o conflito têm alimentado a frustração. Além disso, as condições econômicas e humanitárias nas áreas controladas pelo regime continuaram a se deteriorar, exacerbando o descontentamento popular e fortalecendo a resistência contra Assad.

Ao mesmo tempo, a falta de um compromisso claro por parte da comunidade internacional em apoiar uma solução democrática e inclusiva para a Síria, e a continuidade das intervenções externas com objetivos muitas vezes conflitantes, criaram um vácuo de poder e uma instabilidade que ajudaram a permitir o avanço rebelde. A retirada parcial dos EUA e da Rússia da região, bem como a ausência de um mecanismo eficaz de diplomacia internacional, deixaram as portas abertas para uma intensificação da luta no terreno.

Portanto, a ofensiva dos rebeldes não surgiu do nada; ela é o resultado de uma combinação de fatores internos e externos. A evolução do conflito sírio, a fragmentação da oposição, e o enfraquecimento dos aliados internacionais de Assad criaram o contexto para uma mudança no equilíbrio de poder, resultando no recente avanço rebelde e na queda do regime de Assad. A dinâmica regional, com o envolvimento da Turquia, e a diminuição do apoio russo, também desempenharam papéis cruciais nesse desenvolvimento.

Devido a todas as suas fraquezas estruturais, à falta de apoio da população que governa, à falta de confiabilidade de suas próprias tropas, e sem apoio internacional e regional, provou-se incapaz de resistir ao avanço das forças rebeldes e, cidade após cidade, seu domínio sobre elas desmoronou como um castelo de cartas.

Os outros dois principais aliados do regime, o Hezbollah libanês e o Irã, foram dramaticamente enfraquecidos por Israel desde 7 de outubro de 2023. Tel Aviv realizou assassinatos da liderança do Hezbollah, incluindo Hassan Nasrallah, dizimou seu quadro com os ataques aéreos, e bombardeou suas forças no Líbano. O Hezbollah está definitivamente enfrentando seu maior desafio desde sua fundação. Israel também lançou ondas de ataques contra o Irã, expondo suas vulnerabilidades. Nos últimos meses, aumentou os bombardeios de posições iranianas e do Hezbollah na Síria.

Com seus principais aliados ocupados e enfraquecidos, a ditadura de Assad estava em uma posição vulnerável. Devido a todas as suas fraquezas estruturais, à falta de apoio da população que governa, à falta de confiabilidade de suas próprias tropas, e sem apoio internacional e regional, provou-se incapaz de resistir ao avanço das forças rebeldes e, cidade após cidade, seu domínio sobre elas desmoronou como um castelo de cartas.

Tempest: Como os aliados do regime responderam inicialmente? Quais são os seus interesses na Síria?

JD: Inicialmente, tanto a Rússia quanto o Irã prometeram apoiar o regime e pressionaram para que ele lutasse contra o HTS e o SNA. Nos primeiros dias da ofensiva, a Rússia pediu ao regime sírio para “se recompor” e “colocar ordem em Aleppo”, o que parece indicar que Moscou esperava que Damasco contra-atacasse. O Irã, por sua vez, pediu “coordenação” com Moscou diante dessa ofensiva.

Alegaram que os EUA e Israel estavam por trás do ataque rebelde, tentando desestabilizar o regime sírio e desviar a atenção da guerra de Israel na Palestina e no Líbano. Oficiais iranianos declararam apoio total ao regime sírio e confirmaram sua intenção de manter, e até aumentar, a presença de seus “conselheiros militares” na Síria para apoiar o exército de Assad. Teerã também prometeu fornecer mísseis e drones ao regime sírio e até enviar suas próprias tropas.

Mas isso claramente não funcionou. Apesar dos bombardeios russos em áreas fora do controle do regime, o avanço rebelde não foi interrompido.

Ambos os poderes, Rússia e Irã, têm muito a perder na Síria. Para o Irã, a Síria é crucial para a transferência de armas e a coordenação logística com o Hezbollah. Antes da queda do regime, houve rumores de que o Hezbollah libanês havia enviado um pequeno número de “forças de supervisão” para Homs, a fim de ajudar as forças militares do regime, além de 2.000 soldados para a cidade de Qusayr, um de seus redutos na Síria, perto da fronteira com o Líbano, para defendê-la em caso de ataque dos rebeldes.

Mas, conforme o regime foi caindo, o Irã retirou suas forças.

Por outro lado, a base aérea de Hmeimim, na província síria de Latakia, e a instalação naval de Tartous, na costa, têm sido locais importantes para a Rússia afirmar sua influência geopolítica no Oriente Médio, no Mediterrâneo e na África. A perda dessas bases enfraqueceria a posição da Rússia, pois sua intervenção na Síria tem sido usada como exemplo de como ela pode usar a força militar para moldar eventos fora de suas fronteiras e competir com os Estados Ocidentais.

Portanto, tanto o Irã quanto a Rússia têm interesses estratégicos significativos na Síria, mas as circunstâncias regionais e os desafios militares enfrentados por seus aliados sírios tornaram a situação insustentável para o regime de Assad. As fraquezas internas e externas se combinaram, e a incapacidade de resistir aos avanços rebeldes resultou no colapso progressivo do regime.

Tempest: Qual o papel de outras potências regionais e imperiais, particularmente Turquia, Israel e os EUA, neste cenário? Quais são suas ambições na situação?

com a queda do regime, a influência da Turquia na Síria se torna ainda mais importante, e provavelmente a coloca como o ator regional chave no país

JD: Apesar da normalização das relações da Turquia com a Síria, Ancara se viu frustrada com Damasco. Assim, incentivou, ou ao menos deu luz verde, para a ofensiva militar rebelde e a apoiou de alguma maneira. O objetivo inicial de Ancara era melhorar sua posição nas futuras negociações com o regime sírio, mas também com o Irã e a Rússia.

Agora, com a queda do regime, a influência da Turquia na Síria se torna ainda mais importante, e provavelmente a coloca como o ator regional chave no país. Ancara também está tentando usar o SNA para enfraquecer as Forças Democráticas Sírias (SDF), que são dominadas pelo braço armado do partido curdo PYD, uma organização irmã do PKK turco, que é designado como terrorista por Ancara, pelos EUA e pela União Europeia.

A Turquia tem outros dois objetivos principais. Primeiro, ela busca realizar o retorno forçado dos refugiados sírios que estão em território turco de volta à Síria. Segundo, deseja negar as aspirações curdas por autonomia e, mais especificamente, minar a administração curda no nordeste da Síria, a Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria (AANES, também conhecida como Rojava), o que estabeleceria um precedente para a autodeterminação curda na Turquia, uma ameaça direta ao regime de Ancara como ele é atualmente constituído.

Quanto a Israel, sua estratégia na Síria sempre foi minimizar a presença iraniana e do Hezbollah no país. Israel tem sido muito ativo em atacar posições iranianas e do Hezbollah em território sírio, realizando bombardeios em instalações militares e outros alvos estratégicos, a fim de impedir que o Irã estabeleça uma linha de abastecimento e influência direta sobre a região, especialmente no que se refere à sua aproximação com o Hezbollah no Líbano. Com a guerra contra o Hamas em Gaza e os crescentes desafios internos, Israel tem uma preocupação crescente com o impacto das dinâmicas sírias em sua própria segurança. A desestabilização de Assad e a redução da presença do Irã podem ser vistas como um objetivo estratégico para Israel, já que isso enfraquece a “frente do eixo da resistência” que se estende do Líbano até o Iraque e a Síria.

Já os Estados Unidos, com seu papel multifacetado na região, inicialmente se opuseram ao regime de Assad, mas ao longo dos anos mantiveram uma posição ambígua, especialmente após a ascensão do ISIS. O apoio dos EUA às SDF, compostas majoritariamente por curdos, foi fundamental para derrotar o Estado Islâmico, mas também gerou um grande atrito com a Turquia, que vê os curdos sírios como uma extensão do PKK. Na atual situação, os EUA continuam a ser um ator chave em relação à presença militar no norte da Síria, apoiando principalmente as forças curdas na luta contra o ISIS, mas também enfrentando a pressão turca e tentando equilibrar suas próprias prioridades de segurança regional. A vitória rebelde e a queda do regime sírio, que se alinha mais com os interesses turcos, pode acabar influenciando as escolhas geopolíticas dos EUA no futuro da Síria, especialmente em relação à forma como irão lidar com a influência iraniana na região.

Portanto, todos esses atores têm interesses e ambições distintas, mas com algumas áreas de sobreposição. A Turquia, mais focada em minar a autonomia curda e garantir uma zona de influência em sua fronteira sul, parece ser o principal beneficiário dessa situação de instabilidade. Já Israel e os EUA tentam, cada um a sua maneira, enfraquecer a presença do Irã e de seus aliados regionais, mantendo um equilíbrio de poder favorável a seus próprios interesses estratégicos.

Tempest: Muitos campistas voltaram a se colocar em defesa de Assad, argumentando que uma derrota para ele seria um retrocesso para a luta pela libertação da Palestina. O que você pensa sobre esse argumento? O que isso significaria para a Palestina?

JD: Sim, os campistas afirmam que essa ofensiva militar é liderada por “Al-Qaeda e outros terroristas” e que é uma conspiração imperialista ocidental contra o regime sírio, destinada a enfraquecer o chamado “Eixo de Resistência”, liderado pelo Irã e Hezbollah. Como esse Eixo afirma apoiar os palestinos, os campistas argumentam que a queda de Assad enfraqueceria esse eixo e, portanto, prejudicaria a luta pela libertação da Palestina.

O principal problema com esse argumento, defendido pelos apoiadores do chamado “Eixo de Resistência”, é que ele parte de uma suposição equivocada de que a libertação da Palestina virá de cima, por meio desses estados ou outras forças, independentemente de sua natureza reacionária e autoritária e de suas políticas econômicas neoliberais. Essa estratégia falhou no passado e falhará novamente hoje. Na verdade, em vez de avançar na luta pela libertação da Palestina, os estados autoritários e despóticos do Oriente Médio, sejam alinhados ao Ocidente ou opostos a ele, repetidamente traíram os palestinos e até os reprimiram.

os campistas ignoram o fato de que os principais objetivos do Irã e da Síria não são a libertação da Palestina, mas a preservação de seus próprios estados e interesses econômicos e geopolíticos. Eles sempre colocarão esses interesses em primeiro lugar, acima de Palestina. A Síria, em particular, como Netanyahu deixou muito claro na citação que mencionei antes, não levantou um dedo contra Israel há décadas.

Além disso, os campistas ignoram o fato de que os principais objetivos do Irã e da Síria não são a libertação da Palestina, mas a preservação de seus próprios estados e interesses econômicos e geopolíticos. Eles sempre colocarão esses interesses em primeiro lugar, acima de Palestina. A Síria, em particular, como Netanyahu deixou muito claro na citação que mencionei antes, não levantou um dedo contra Israel há décadas.

De fato, é uma ilusão acreditar que os regimes autoritários, como o de Assad ou o do Irã, estão profundamente comprometidos com a causa palestina de uma forma que vá além de suas próprias agendas políticas. Mesmo quando houve declarações de apoio, esses regimes nunca moveram recursos substanciais ou forças militares de maneira consistente para realmente ameaçar Israel ou ajudar os palestinos de forma eficaz. No caso específico da Síria, Assad tem uma longa história de buscar estabilidade interna e segurança para seu regime, muitas vezes à custa da causa palestina. Assad, na verdade, tem uma relação pragmática com Israel, como visto no fato de que, durante décadas, não houve confrontos na Linha de Frente dos Golãs.

Portanto, qualquer ideia de que a queda de Assad, ou o enfraquecimento do regime sírio, prejudicaria diretamente a luta pela Palestina, ignora completamente a dinâmica política regional e internacional real. A verdadeira luta pela libertação da Palestina sempre foi (e continuará sendo) uma questão do povo palestino e dos movimentos populares, não de regimes autoritários e opressores que se aproveitam da causa palestina para seus próprios interesses estratégicos.

A luta pela liberdade e pelos direitos dos palestinos não deve ser confundida com o apoio a regimes que utilizam a causa palestina como um instrumento de sua própria sobrevivência e interesses. O futuro da Palestina depende, fundamentalmente, da mobilização popular e da solidariedade internacional contra a opressão, não da manutenção de governos autoritários que não têm interesse genuíno em libertar os palestinos, mas apenas em preservar seus próprios poderes.

Por sua parte, o Irã tem apoiado retoricamente a causa palestina e financiado o Hamas. No entanto, desde 7 de outubro de 2023, seu principal objetivo tem sido melhorar sua posição na região para estar na melhor situação possível para negociações políticas e econômicas futuras com os EUA. O Irã deseja garantir seus interesses políticos e de segurança e, portanto, tem se esforçado para evitar qualquer guerra direta com Israel.

Seu principal objetivo geopolítico em relação aos palestinos não é libertá-los, mas usá-los como alavanca, particularmente em suas relações com os Estados Unidos. Da mesma forma, a resposta passiva do Irã ao assassinato de Nasrallah por Israel, à dizimação dos quadros do Hezbollah e à sua brutal guerra contra o Líbano demonstram que sua prioridade principal é proteger a si mesmo e seus interesses. O Irã não estava disposto a sacrificar esses interesses para vir em defesa de seu principal aliado não-estatal.

Da mesma forma, o Irã se provou, no melhor dos casos, um aliado volúvel do Hamas. Reduziu seu financiamento ao Hamas quando seus interesses não coincidiam. Cortou sua assistência financeira ao Hamas após a Revolução Síria de 2011, quando o movimento palestino se recusou a apoiar a repressão sanguinária do regime sírio aos protestos sírios.

No caso do regime sírio, o argumento contra seu suposto apoio à Palestina é irrefutável. Ele não veio em defesa da Palestina durante o último ano da guerra genocida de Israel. Apesar dos bombardeios de Israel à Síria, antes e depois de 7 de outubro, o regime não respondeu. Isso está de acordo com a política do regime desde 1974 de tentar evitar qualquer confronto significativo e direto com Israel.

No caso do regime sírio, o argumento contra seu suposto apoio à Palestina é irrefutável. Ele não veio em defesa da Palestina durante o último ano da guerra genocida de Israel. Apesar dos bombardeios de Israel à Síria, antes e depois de 7 de outubro, o regime não respondeu. Isso está de acordo com a política do regime desde 1974 de tentar evitar qualquer confronto significativo e direto com Israel.

Além disso, o regime repetidamente reprimiu palestinos na Síria, incluindo o assassinato de vários milhares deles desde 2011, destruindo o campo de refugiados de Yarmouk em Damasco. Eles também atacaram o próprio movimento nacional palestino. Por exemplo, em 1976, Hafez al-Assad, pai de seu sucessor e recém-deposto ditador Bashar al-Assad, interveio no Líbano e apoiou partidos libaneses de extrema-direita contra organizações palestinas e libanesas de esquerda.

Também realizou operações militares contra campos palestinos em Beirute em 1985 e 1986. Em 1990, aproximadamente 2.500 prisioneiros políticos palestinos foram detidos nas prisões sírias.

Dado esse histórico, é um erro para o movimento de solidariedade com a Palestina defender e alinhar-se com estados imperialistas ou sub-imperialistas que colocam seus interesses acima da solidariedade com a Palestina, competem por ganhos geopolíticos e exploram os trabalhadores e os recursos de seus países. Claro, o imperialismo dos EUA continua sendo o principal inimigo da região, com sua história excepcional de guerra, pilhagem e dominação política.

Mas não faz sentido ver potências regionais reacionárias e outros estados imperialistas, como a Rússia ou a China, como aliados da Palestina ou do movimento de solidariedade com a Palestina. Simplesmente não há evidências para sustentar essa posição. Escolher um imperialismo em detrimento de outro é garantir a estabilidade do sistema capitalista e a exploração das classes populares. Da mesma forma, apoiar regimes autoritários e despóticos com o objetivo de libertar a Palestina não é apenas moralmente errado, mas também provou ser uma estratégia falida.

Em vez disso, o movimento de solidariedade com a Palestina deve ver a libertação da Palestina não vinculada aos estados da região, mas sim à libertação das suas classes populares. Estas se identificam com a Palestina e veem suas próprias lutas por democracia e igualdade como intimamente ligadas à luta dos palestinos por sua libertação. Quando os palestinos lutam, isso tende a acionar o movimento regional de libertação, e o movimento regional retroalimenta o movimento na Palestina ocupada.

o movimento de solidariedade com a Palestina deve ver a libertação da Palestina não vinculada aos estados da região, mas sim à libertação das suas classes populares.

Essas lutas estão dialeticamente conectadas; são lutas mútuas pela libertação coletiva. O ministro de extrema-direita israelense Avigdor Lieberman reconheceu o perigo que os levantes populares regionais representavam para Israel em 2011, quando disse que a revolução egípcia que derrubou Hosni Mubarak e abriu a porta para um período de abertura democrática no país era uma ameaça maior para Israel do que o Irã.

Isso não é negar o direito de resistência dos palestinos e libaneses contra as brutais guerras de Israel, mas entender que apenas a revolta unificada das classes populares palestinas e regionais tem o poder de transformar todo o Oriente Médio e o Norte da África, derrubando regimes autoritários, expulsando os EUA e outras potências imperialistas. A solidariedade antiimperialista internacional com a Palestina e as classes populares da região é essencial, porque elas enfrentam não apenas Israel e os regimes reacionários do MENA, mas também seus apoiadores imperialistas.

A principal tarefa do movimento de solidariedade com a Palestina, particularmente no Ocidente, é denunciar o papel cúmplice das nossas classes dominantes no apoio não apenas ao estado colonialista e racista de apartheid de Israel e à sua guerra genocida contra os palestinos, mas também aos ataques de Israel contra outros países da região, como o Líbano. O movimento deve pressionar essas classes dominantes para romper qualquer relação política, econômica e militar com Tel Aviv.

Dessa forma, o movimento de solidariedade pode desafiar e enfraquecer o apoio internacional e regional a Israel, abrindo espaço para que os palestinos se libertem junto com as classes populares da região.

Tempest: A ofensiva dos rebeldes na Síria abrirá espaço para que as forças progressistas renovem a luta revolucionária e ofereçam uma alternativa tanto ao regime quanto ao fundamentalismo islâmico?

JD: Não há respostas óbvias, apenas mais perguntas. Será que a luta de baixo para cima e a auto-organização serão possíveis nas áreas de onde o regime foi expulso? As organizações da sociedade civil (não definidas de forma estreita como ONGs, mas no sentido gramsciano de formações populares e de massas fora do Estado) e estruturas políticas alternativas com políticas democráticas e progressistas conseguirão se estabelecer, organizar e constituir uma alternativa política e social ao HTS e ao SNA? A extensão das forças do HTS e do SNA permitirá espaço para organização local?

Olhando para as políticas passadas do HTS e do SNA, eles não incentivaram o desenvolvimento de um espaço democrático, mas sim o oposto. Eles foram autoritários. Não se deve confiar em tais forças. Apenas a auto-organização das classes populares lutando por demandas democráticas e progressistas criará esse espaço e abrirá um caminho para a verdadeira libertação.

Essas são as questões-chave, na minha opinião, sem respostas claras. Olhando para as políticas passadas do HTS e do SNA, eles não incentivaram o desenvolvimento de um espaço democrático, mas sim o oposto. Eles foram autoritários. Não se deve confiar em tais forças. Apenas a auto-organização das classes populares lutando por demandas democráticas e progressistas criará esse espaço e abrirá um caminho para a verdadeira libertação. Isso dependerá de superar muitos obstáculos, desde o cansaço da guerra até a repressão, a pobreza e a deslocalização social.

O principal obstáculo tem sido, é, e continuará sendo os atores autoritários, antes o regime, mas agora muitas das forças da oposição, especialmente o HTS e o SNA; o seu domínio e os confrontos militares entre eles sufocaram o espaço para que as forças democráticas e progressistas possam determinar democraticamente seu futuro. Mesmo nos espaços libertados do controle do regime, ainda não vimos campanhas populares de resistência democrática e progressista. E, onde o SNA conquistou áreas curdas, violou os direitos dos curdos, reprimiu-os com violência e deslocou à força grandes números deles.

Temos que enfrentar o fato difícil de que há uma ausência flagrante de um bloco democrático e progressista independente capaz de se organizar e se opor claramente ao regime sírio e às forças fundamentalistas islâmicas. Construir esse bloco levará tempo. Ele terá que combinar lutas contra a autocracia, a exploração e todas as formas de opressão. Será necessário levantar demandas por democracia, igualdade, autodeterminação curda e libertação das mulheres para construir solidariedade entre as classes exploradas e oprimidas do país.

Para avançar tais demandas, esse bloco progressista terá que construir e reconstruir organizações populares, desde sindicatos a organizações feministas, organizações comunitárias e estruturas nacionais para reuni-las. Isso exigirá colaboração entre atores democráticos e progressistas em toda a sociedade.

Dito isso, há esperança. Embora a dinâmica chave tenha sido inicialmente militar e liderada pelo HTS e pelo SNA, nos últimos dias vimos crescentes manifestações populares e pessoas saindo às ruas por todo o país. Elas não estão seguindo as ordens do HTS, do SNA ou de qualquer outro grupo armado de oposição. Há agora um espaço, com suas contradições e desafios como mencionado acima, para os sírios tentarem reconstruir uma resistência popular civil de baixo para cima e estruturas alternativas de poder.

Além disso, uma das tarefas principais será lidar com a principal divisão étnica do país, a que existe entre árabes e curdos. As forças progressistas devem travar uma luta clara contra o chauvinismo árabe para superar essa divisão e forjar solidariedade entre essas populações. Isso tem sido um desafio desde o início da Revolução Síria em 2011 e terá que ser confrontado e resolvido de forma progressista para que o povo do país seja verdadeiramente libertado.

Há uma necessidade desesperada de retornar às aspirações originais da Revolução Síria por democracia, justiça social e igualdade — e de uma forma que defenda a autodeterminação curda. Embora o PYD curdo possa ser criticado por seus erros e forma de governo, não é o principal obstáculo para essa solidariedade entre curdos e árabes. Esse obstáculo tem sido as posições e políticas beligerantes e chauvinistas das forças de oposição árabes na Síria — começando pela Coalizão Nacional Síria, dominada por árabes, seguida pela Coalizão Nacional das Forças Revolucionárias e de Oposição Sírias, os principais corpos de oposição no exílio, apoiados pelo Ocidente e por países regionais, que tentaram liderar a Revolução Síria nos primeiros anos — e hoje, as de duas forças militares chave: o HTS e o SNA.

Nesse contexto, as forças progressistas devem buscar a colaboração entre árabes sírios e curdos, incluindo a AANES. O projeto da AANES e suas instituições políticas representam grandes setores da população curda e a protegeram contra várias ameaças locais e externas.

Dito isso, a AANES também tem falhas e não deve ser apoiada de forma acrítica. O PYD e a AANES usaram força e repressão contra ativistas e grupos políticos que desafiaram seu poder. E também violaram os direitos humanos dos civis. No entanto, a AANES alcançou algumas conquistas importantes, em particular o aumento da participação das mulheres em todos os níveis da sociedade, bem como a codificação de leis seculares e uma maior inclusão de minorias religiosas e étnicas. Contudo, em questões socioeconômicas, não rompeu com o capitalismo e não abordou adequadamente as queixas das classes populares.

Quaisquer críticas que os progressistas possam ter ao PYD e à AANES, devemos rejeitar e nos opor às descrições chauvinistas árabes de que se trata “do diabo” e um projeto “separatista” etno-nacionalista. Porém, ao rejeitar tal preconceito, não devemos romantizar acrítica e irrealisticamente a AANES, como alguns anarquistas e esquerdistas ocidentais fizeram, deturpando-a como uma nova forma de poder democrático de baixo para cima.

Já houve alguma colaboração entre democratas e progressistas árabes sírios e a AANES e instituições a ela ligadas, e isso deve ser construído e expandido. Mas, como em qualquer tipo de colaboração, isso não deve ser feito de forma acrítica.

Embora seja importante lembrar a todos que o regime de Bashar al-Assad e seus aliados são os primeiros responsáveis pelo assassinato em massa de centenas de milhares de civis, pela destruição em massa, pelo empobrecimento crescente e pela situação atual na Síria, o objetivo da Revolução Síria vai além do que o líder do HTS, al-Jolani, disse em sua entrevista à CNN. Não se trata apenas de derrubar esse regime, mas de construir uma sociedade caracterizada por democracia, igualdade e plenos direitos para os grupos oprimidos. Caso contrário, estaremos apenas substituindo um mal por outro.

Tempest: Qual será o impacto da queda do regime na região e nas potências imperialistas? Qual posição a esquerda internacional deve tomar nessa situação?

JD: Após a queda do regime, o líder do HTS, al-Jolani, afirmou que as instituições do Estado sírio serão supervisionadas pelo ex-primeiro-ministro do regime, Mohammed Jalali, até que sejam entregues a um novo governo com plenos poderes executivos, após eleições, sinalizando esforços para garantir uma transição ordenada. O ministro sírio de telecomunicações, Eyad al-Khatib, concordou em colaborar com os representantes do HTS para garantir que as telecomunicações e a internet continuassem funcionando.

Esses são indícios claros de que o HTS deseja realizar uma transição controlada do poder, a fim de acalmar os temores estrangeiros, estabelecer contatos com potências regionais e internacionais e obter reconhecimento como uma força legítima com a qual se pode negociar. Um obstáculo para essa normalização é o fato de o HTS ainda ser considerado uma organização terrorista, enquanto a Síria está sob sanções.

No entanto, é esperado um período de instabilidade no país. Em Damasco, no dia seguinte à queda do regime, pôde-se ver algum caos nas ruas, o banco central, por exemplo, foi saqueado.

Ainda é difícil prever qual será o impacto da queda do regime nas potências regionais e imperialistas. Para os EUA e os estados ocidentais, o objetivo principal agora é controlar os danos e evitar que o caos se estenda pela região. Os estados regionais estão claramente insatisfeitos com a situação atual, pois haviam iniciado um processo de normalização com o regime nos últimos anos.

Quanto à Turquia, seu principal objetivo será consolidar seu poder e influência na Síria e se livrar da AANES liderada pelos curdos no nordeste. O principal diplomata turco, na verdade, disse no domingo que o Estado turco estava em contato com os rebeldes na Síria para garantir que o Estado Islâmico e, especificamente, o “PKK” não aproveitassem a queda do regime de Damasco para estender sua influência. E um impacto adicional a ser considerado é o enfraquecimento da influência regional do Irã e, portanto, da do Hezbollah no Líbano.

No entanto, as diferentes potências têm um objetivo comum: impor uma forma de estabilidade autoritária na Síria e na região. Isso, claro, não significa unidade entre as potências regionais e imperiais. Cada uma tem seus próprios interesses, muitas vezes antagônicos, mas elas não querem a desestabilização do Oriente Médio e Norte da África, especialmente qualquer tipo de instabilidade que interrompa o fluxo de petróleo para o capitalismo global.

devemos evitar as armadilhas duplas da romantização e do derrotismo. Em vez disso, devemos buscar uma estratégia de solidariedade internacional crítica e progressista entre as forças populares da região e do mundo inteiro. Essa é a tarefa e a responsabilidade crucial da esquerda, especialmente nestes tempos muito complexos.

A esquerda internacional não deve se alinhar com os remanescentes do regime ou com as forças locais, regionais e internacionais da contra-revolução. Em vez disso, o eixo político dos revolucionários deve ser o princípio da solidariedade com as lutas populares e progressistas de baixo para cima. Isso significa apoiar grupos e indivíduos que estão organizando e lutando por uma Síria progressista e inclusiva, e construir solidariedade entre eles e as classes populares da região.

Em meio a um momento volátil na Síria, no Oriente Médio e no Norte da África, devemos evitar as armadilhas duplas da romantização e do derrotismo. Em vez disso, devemos buscar uma estratégia de solidariedade internacional crítica e progressista entre as forças populares da região e do mundo inteiro. Essa é a tarefa e a responsabilidade crucial da esquerda, especialmente nestes tempos muito complexos.

O artigo acima representa a opinião do autor e não necessariamente corresponde às opiniões do EOL. Somos um portal aberto às polêmicas e debates da esquerda socialista