Os acontecimentos na Síria se sucedem com grande rapidez. Os laços com o país são, para nós, quase inexistentes. As fontes disponíveis nos obrigam a uma grande dose de crítica e filtragem das informações. A natureza, quase sempre reacionária, das organizações protagonistas, aconselha cautela. Porém, uma esquerda internacionalista deve procurar pronunciar-se. Em primeiro lugar estamos ao lado do povo sírio quando comemora a queda da sanguinária ditadura de Assad. Em segundo lugar, a invasão e o bombardeamento levado a cabo por Israel, iniciado logo após a queda do ditador, obrigam a um repúdio inequívoco, assim como a qualquer tentativa de invasão ou divisão do Estado sírio por outros países. Denunciar a ofensiva israelita é, sem dúvida, a primeira tarefa da esquerda internacionalista. A partir daí, temos de aprofundar o debate. As notas que se seguem têm essa intenção.
A importância da Síria na geopolítica mundial e para o Oriente Médio
A República Árabe Síria tem grande importância na economia e na política do Oriente Médio. Um país de 23 milhões de habitantes, que faz fronteira com o Líbano, e o Mar Mediterrâneo a oeste; a Turquia ao norte; o Iraque a leste; a Jordânia ao sul e Israel a sudeste. Esta localização geográfica torna a Síria um palco de grande interesse na geopolítica regional. O país se tornou independente do domínio francês em 1945, e desde então teve uma situação política marcada por golpes e tentativas de golpe, até 1971, quando toma a família Assad toma o poder, instalando uma ditadura sanguinária que durou 53 anos, e que teve seu fim em dezembro deste ano.
A população síria é composta por vários grupos étnicos e religiosos, como árabes, gregos, armênios, curdos, turcos e outros. Os grupos religiosos incluem os sunitas, cristãos, alauitas, drusos, etc. Os árabes sunitas formam o maior grupo populacional do país.
A economia da Síria depende do setor petrolífero, que corresponde a 40% das receitas de exportação do país, e do setor agrícola, que representa 20% do PIB e 20% do mercado de trabalho. Com o início da guerra civil em 2011, a economia síria passou a depender das linhas de crédito do Irã, que investiu de 6 a 20 bilhões de dólares por ano no país, mas também dos investimentos da Rússia (principalmente com armamentos), e da China. A guerra na Ucrânia, e os enfrentamentos com Israel pelo Irã, acabaram enfraquecendo a ajuda vinda desses países, aumentando a crise econômica, em uma economia enfraquecida por sanções econômicas impostas pelos EUA e a União Europeia, e pelo longo período de guerra civil. Esse é um dos motivos que contribuiu para a queda de Assad.
A longa guerra civil que abre espaço para a queda da ditadura de Assad
Em 2011, em Daraa, no Sul da Síria, a repressão a jovens que teriam escrito “o povo quer a queda do regime”, iniciou a revolução síria: um gigantesco movimento de massas, heterogêneo e contraditório, que lançou milhares de pessoas às ruas em torno de reivindicações por democracia e justiça social – exigindo a queda de Bashar Al Assad, animados pelos levantes da Primavera Árabe.
Esse foi um genuíno movimento revolucionário que mereceu o apoio de todos os internacionalistas e anti-imperialistas consequentes. O seu esmagamento, cooptação e degeneração, pela ação combinada da repressão de Al Assad e da intervenção dos imperialismos ocidental e russo no país, da ingerência iraniana e da contrarrevolução liderada pelo Daesh (ISIS), não se confundem com a origem progressista do movimento. Mas, não acreditamos que a queda de Assad seja uma continuidade do movimento de massas iniciado em 2011 (e derrotado juntamente com os levantes da Primavera Árabe), e muito menos, neste momento, o início de uma nova revolução na Síria. É preciso acompanhar o desenvolvimento da situação, e principalmente observar o papel que o povo sírio vai desempenhar nesta nova realidade do país.
A longa guerra civil matou mais de 600 mil pessoas. Exilou cerca de 5 milhões de sírios e deslocou internamente 7 milhões. A infraestrutura do país foi praticamente destruída, e a Síria foi dividida em regiões controladas por diferentes grupos e milícias, com forte influência e apoio de potências estrangeiras.
A tortura, as perseguições, as prisões e os assassinatos por motivos políticos, as violações dos direitos humanos, os ataques aos direitos das mulheres, eram uma constante na dinastia dos Assad. A prisão de Sednaya, considerada um “matadouro humano”, foi o palco da morte de 13 mil prisioneiros entre 2011 e 2015. Hoje, se estima que mais de 30 mil pessoas tenham sido assassinadas nessa prisão. Com a queda de Assad uma multidão cercou Sednaya e libertou 3500 prisioneiros, dando fim a um dos símbolos da ditadura.
Precisamos comemorar com o povo sírio a queda de Assad
O regime de Bashar Al Assad era uma ditadura sanguinária que sobrevivia à custa do esmagamento do seu próprio povo, sustentado, em grande medida, em apoios externos. A sua queda é celebrada unanimemente pelo povo sírio, de todas as orientações políticas e origens étnico-religiosas. Independentemente da posição tida face aos grupos armados que derrubaram Assad, nos juntamos a estas celebrações: a possibilidade de regresso de milhões de refugiados, a recusa das tropas de Assad em defender o regime sanguinário e a libertação dos presos políticos são motivos de alegria para o povo sírio e para todos aqueles que estejam do seu lado.
Não sabemos se, nas brechas abertas pela queda de Assad, haverá a possibilidade de reanimar as legítimas lutas do povo, congeladas há mais de uma década. A alegria massiva do povo sírio, a forma como tomaram as ruas, como os seus soldados se recusaram a defender o regime, como libertaram os presos políticos, assinalam uma possibilidade de desfecho positivo. Por outro lado, a interferência externa dos imperialismos, o caráter autocrático e reacionário das várias milícias que derrubaram o governo, a fragilidade ou ausência de organizações democráticas, progressistas, de esquerda e dos trabalhadores, conspira contra a possibilidade de que o povo sírio tome o seu destino em suas mãos.
O futuro da Síria é incerto
O futuro do poder na Síria é incerto. Os principais protagonistas militares da queda do governo – o HTS, islamista e reacionário, que mantinha no passado ligações com a Al Qaeda e o ISIS, e o SNA (Exército Nacional Sírio), um agente da Turquia – não merecem qualquer confiança. Apesar de ser recebido com apreensão, senão com hostilidade, por todas as potências imperialistas – as ocidentais e a Rússia, ou potências regionais, como Israel – o HTS dá mostras de querer negociar uma transição “ordeira”, feita em acordo com as potências globais e regionais. Eles acabam de declarar que vão desarmar todos os grupos que participaram da guerra civil e da derrubada de Assad, integrando esses grupos as novas forças armadas sírias. Há uma clara tentativa das lideranças do HTS de mudar a imagem do grupo, pedindo ao ocidente que confie em sua transformação e os tirem da lista de “organizações terroristas”.
Os restos do regime de Assad, nomeadamente o seu ex-primeiro-ministro al Jalali, dão mostras de participar dessa negociação com o HTS. O que sobrou da força militar do regime centrou-se na defesa da base russa de Tartus, que as forças do HTS não quiseram hostilizar, ao mesmo tempo em que adaptam o seu discurso às expectativas do imperialismo ocidental. Isto permitiu a frota russa abandonar o país (temporariamente?) de forma pacífica e, aparentemente, negociada.
A experiência de controle regional que o HTS exerceu na região de Idlib, antes de avançar para Damasco é de um autoritarismo reacionário que só merece condenação. O HTS governa Idlib pelas leis da sharia, a lei islâmica, sem respeito aos direitos democráticos, e com enorme repressão as mulheres. Isso não impede nem as potências ocidentais nem a Rússia de negociar com esta força. Qualquer avanço positivo que a nova situação permita – como já foi o caso da libertação dos presos políticos – dar-se-á independentemente do, ou contra o HTS, e não graças a ele. Por hora, não esperamos da parte desta direção política qualquer iniciativa anti-imperialista, seja contra os interesses estadunidenses e sionistas, seja contra a ingerência russa ou iraniana.
Os interesses imperialistas na Síria
As várias potências imperialistas, globais ou regionais, foram apanhadas de surpresa pela ofensiva sobre Damasco, possibilitada pelas circunstâncias abertas pela debacle do exército de Assad (antes da queda do ditador, 40 mil soldados tinham abandonado as forças armadas sírias), e pela incapacidade do Hezbollah, centrado na guerra com Israel, de manter a proteção do regime. A exceção relativa parece ser a Turquia que, via o seu proxy SNA, procura aumentar as suas posições na região, para derrotar as forças curdas. Os EUA emitiram um alerta de que Erdogan prepara o exército turco para invadir a região norte, de maioria curda, que faz fronteira com a Turquia.
A brutal ofensiva de Israel sobre várias posições na Síria, desde a parte não ocupada dos Montes Golã, aos subúrbios de Damasco, ao porto de Latakia, demonstram que se quer aproveitar da oportunidade, para desmantelar a capacidade militar e infraestrutura do país e de um eventual governo nacional, que pode não lhe ser simpático (ou que pelo menos não controla). Israel quer impedir que o futuro da Síria passe pela reconstrução de um estado sírio forte e independente, dirigido pelos grupos armados que derrubaram Assad, que não são vistos como confiáveis. Simultaneamente, os EUA e os países da OTAN, não deixarão de tentar ganhar posições num país que, até a poucos dias, lhes escapava do controle. A Rússia, por sua vez, tudo fará para manter a sua base estratégica em Tartus, inclusive, segundo algumas notícias, já está negociando com os novos líderes rebeldes.
Ainda é cedo para saber se estes interesses contraditórios se encaminharão para um acordo entre potências que, por cima, dividam zonas de influência, promovendo e aprofundando a balcanização do país, iniciada com a guerra civil, ou se a situação vai evoluir para um confronto, direto ou indireto, entre os vários atores imperialistas em solo sírio. Nem uma partição nem um confronto com as potências imperialistas e seus aliados serve o povo sírio. Exigimos a todos, aos EUA, UE, Israel e Rússia, em primeiro lugar, mas também à Turquia e ao Irã: mãos fora da Síria! Como primeira tarefa, a esquerda internacionalista deve mobilizar-se pela retirada imediata de Israel e pelo fim dos bombardeios.
A luta do povo curdo e palestino na nova realidade da Síria
A luta do povo curdo tem sido o elemento progressista mais constante na Síria. Sua luta justa pela autodeterminação, a sua oposição ao regime facínora de Al Assad (ainda que tenha sido obrigado a contemporizar com ele e vice-versa) e a sua resistência contra o sub-imperialismo turco, contribuíram para a queda de Assad. Independentemente das contradições e limitações políticas dos seus dirigentes, que recebem apoio político e militar dos EUA (há 900 soldados americanos na região controlada pelos curdos, para defesa das reservas de petróleo e gás), nas áreas de administração curda, controladas pelo SDF (Forças Democráticas Curdas) e o YPG (Unidades de Proteção Popular) – as milícias curdas – há mais garantias democráticas, avanços nos direitos das mulheres, e igualdade de direitos entre as diversas etnias e credos. Uma posição de esquerda sobre a Síria apoia inequivocamente a luta do povo curdo e exige o fim dos ataques da Turquia e do SNA, por ela controlado, às regiões curdas.
Não é evidente como todos estes acontecimentos podem influir sobre a situação da Palestina. É certo que o regime de Bashar Al Assad não jogava qualquer papel no apoio à resistência palestina – “nunca tivemos nenhum problema com o regime de Assad”, resumiu Netanyahu. Por isso, aliás, foi fácil observar diversos ativistas palestinos comemorando a queda do ditador sírio. O Hamas, inclusive, congratulou o povo sírio pela queda de Assad.
Israel, como força a serviço do imperialismo americano e oportunista que é, tentará se beneficiar da situação criada e poderá ver como ameaça, o aumento do poder da Turquia na região. Não é certo como isso pode influir na situação do povo palestiniano e libanês. Mas, qualquer fortalecimento de Israel na região, como a ampliação da sua ocupação nas Colinas de Golã, vai enfraquecer a causa palestina. É provável que o Hezbollah, que ocupou posições na síria, saia ainda mais enfraquecido, mas também é certo que o papel desta força no apoio à resistência palestina tem sido muito parcial e antes de mais nada, defende as posições do Irã e apoiava a ditadura Assad.
O espaço aberto pela queda de Assad, e se as massas sírias conseguirem avançar de forma independente do HTS, na sua luta por liberdades democráticas e direitos sociais, pode beneficiar todos os povos da região. O cenário atual não torna essa possibilidade evidente, mas ela existe hoje, com mais força do que antes da queda do regime.
Tarefas imediatas para a reconstrução de uma Síria livre, unida, independente e pacífica no futuro
Para uma esquerda marxista, internacionalista e anti-imperialista, a luta histórica dos povos árabes e do Médio Oriente contra o imperialismo é da maior importância. Sobretudo, dentro dela, a luta do povo palestino. Aplicamos a esta luta, como a todas as outras, o adágio que diz que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos trabalhadores”. Ou seja, não temos qualquer esperança que nenhum governo burguês, islâmico ou nacionalista, nenhum bloco imperialista ou sub-imperialista possa cumprir esse papel. Não será o arranjo de forças entre o chamado “eixo da resistência”, um bloco subordinado ao sub-imperialismo iraniano, que cumprirá um papel libertador, muito menos o imperialismo estadunidense, europeu, russo ou chinês.
Devemos negar a subordinação da luta por liberdades democráticas e justifica social, que têm sido historicamente, o motor das lutas anti-imperialistas, aos interesses deste ou daquele governo burguês, de qualquer eixo ou potência. Novas primaveras dos povos serão a única forma de destruição do imperialismo, do estado sionista, da reação islâmica ou laica. Não é dado que isso esteja colocado na Síria hoje. A possibilidade de que a experiência da revolução de 2011 seja retomada é, ainda, muito incerta. Porém, o obstáculo imediato a essa possibilidade, o regime de Assad, caiu. Os perigos são imensos. O balanço só será feito no final. Contudo, só a ação e organização das massas sírias poderá desenvolver um movimento independente dos trabalhadores e do povo pobre pela sua emancipação.
Cabe terminar como começamos. A análise, como a história, não está terminada. Exige cautela e acompanhamento crítico. Há, porém, tarefas que ficam evidentes perante os acontecimentos recentes e que deverão ser consensuais entre a esquerda internacionalista. Resumem-se em palavras de ordem simples, que significam lutas titânicas:
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Mãos fora da Síria, contra a ingerência direta ou indireta de todas as potências globais e regionais!
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Fora Israel da Síria, fim dos bombardeios e da invasão sionista!
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Apoio à luta do povo curdo por sua autodeterminação, pelo fim da ofensiva turca!
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Em defesa dos refugiados sírios que desejem retornar ao país, e contra as deportações!
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Defesa da igualdade civil e social para as mulheres e demais setores oprimidos por diferenças étnicas e/ou religiosas!
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Defesa de um novo Estado laico, soberano, democrático e com justiça social para os povos da síria!
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Pelo direito do povo sírio de viver em paz e em convivência pacífica, independentemente da etnia e credo religioso!
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