Por Laura Fusaro Camey
O Arcabouço Fiscal traz uma série de propostas que variam entre boas e absolutamente perversas. Não irei me delongar sobre todo o pacote de maldades neoliberal, focarei aqui no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na sua interlocução com a saúde mental.
O BPC é acessado, majoritariamente, por pessoas com diagnóstico do espectro autista, pessoas com transtornos mentais graves, pessoas com deficiência e pessoas idosas pobres. Ele se constitui como uma fonte de sobrevivência e tem o valor de um salário-mínimo.
Dentre de uma série de mudanças perversas, a nova regra do BPC apresenta sua pior e mais cruel face em sua nova definição de deficiência, como sendo aquela pessoa “incapaz de vida independente e de trabalhar”. Ora, eu apelo ao bom senso dos leitores: existe um abismo entre “incapaz de vida independente” e ser “incapaz de trabalhar”. Sendo pobre e incapaz de trabalhar, não há possibilidade de sobrevivência sem intervenção do estado, independentemente de ser “capaz de vida independente”. Isso em si já mostra a imoralidade de agrupar, em num mesmo saco, pontos tão distantes dentro de uma escala de funcionalidade.
Ao nos debruçarmos ainda mais sobre as alterações que o pacote fiscal quer fazer no BPC, encontramos outras facetas de uma trama de maldades. Nós, pessoas usuárias da saúde mental, até os anos 2000 éramos entendidas nas legislações como “loucos de todos os tipos”, desprovidos de direitos civis, políticos e de cidadania. Dentro dessa perspectiva, todos nós éramos “incapazes de vida independente”, pois não havia no horizonte institucional a possibilidade de o louco” não estar sobre a tutela de alguém, seja no manicômio, seja na família.
Acontece que o processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira criou uma série de possibilidades de existir no tecido social. O que era impossível se faz real, mesmo havendo ainda várias barreiras. Hoje temos mães, pais, trabalhadoras/es, pessoas morando sozinhas, mesmo tendo transtornos mentais graves e persistentes. São sustentações e construções de autonomia que as vezes demoram décadas para se concretizar.
A capacidade de vida independente é uma conquista histórica das pessoas com sofrimento mental e da Redes de Atenção Psicossocial. E o BPC é um dos pilares dessa conquista, pois possibilita o mínimo para que se sustente essa capacidade. Uma pessoa com sofrimento mental sem BPC e incapaz de ingressar no mercado de trabalho não é, automaticamente, capaz de vida independente. Tirar o BPC é tirar condição mínima para que haja qualquer Projeto Terapêutico no sentido da inclusão e reabilitação psicossocial para os pobres. Em verdade, penaliza qualquer esforço de tratamento, pois só poderá receber dinheiro para sobreviver quem se mantiver muito mal.
Isso ainda excluí as pessoas que são forçadas à “vida independente”. Quantas pessoas com sofrimento mental grave não são obrigadas a morarem sozinhas? O abandono familiar é uma condição real e prevalente dentro do campo da saúde mental e a violência doméstica é recorrente contra pessoas em sofrimento psíquico. Ela é perniciosa e absolutamente negligenciada pela sociedade. Já tive o desprazer de acompanhar um caso de uma pessoa que perdeu o olho de tanto apanhar do irmão e o serviço de saúde mental se negar a preencher o Boletim de Ocorrência ou tomar qualquer providência no sentido de proteção da pessoa em sofrimento mental.
De humilhações, ameaças e punições ao estupro, cárcere privado e espancamento, quem frequenta os Centros de Atenção Psicossocial se depara constantemente com o pior que a humanidade tem a ofertar. A condição social das pessoas em sofrimento mental é, muitas das vezes, mais grave que sua condição psíquica propriamente dita. A “vida independente”, mesmo que atravessada de conflitos, desamparo e solidão se coloca como única opção de sobrevivência. Quantas pessoas que moram sós não se dirigem aos CAPS para se alimentar e tomar banho? Para ter alguém com quem conversar? A possibilidade de morar e comer que o BPC traz é a única coisa que separa esses sujeitos da morte ou do encarceramento em instituições asilares. Sustentar a “vida independente” por si só já é um desafio imposto pela necessidade, garantido na marra pelo SUS e SUAS. É a única forma de garantir o mínimo da dignidade a essas pessoas.
A lógica de que “se a pessoa come, respira, se veste sozinha, é capaz de fazer seu sustento” é uma falácia e revitimiza sujeitos que já se encontram em privação de direitos.
Sobre a “incapacidade de trabalhar”, também nos deparamos com mais um desentendimento intencional sobre a realidade das pessoas com deficiência. De novo, existe uma diferença entre possuir alguma capacidade laboral e ser capaz ingressar no mercado de trabalho. Diria que muitas pessoas em sofrimento mental que recebem BPC são capazes de vender bala no sinal, pedir dinheiro na rua, se prostituir ou vender pequenas quantidades de droga. Na verdade, a capacidade laboral dos ditos “loucos” foi secularmente explorada nos Hospitais Colônias e, hoje em dia, nas comunidades terapêuticas através do trabalho análogo ao escravo.
Retirar o BPC é submeter as pessoas pobres com sofrimento mental aos trabalhos informais, perigosos, insalubres, ilícitos e análogos ao escravo. São pessoas que, devido às centenas de exclusões que sofrem na vida, não têm instrumentos pelos quais se proteger desse tipo de trabalho. Em verdade, cabe também denunciar que, no mercado de trabalho formal, as pessoas adoecem devido às jornadas de trabalho incompatíveis com suas necessidades de saúde, com remunerações mensais abaixo do salário-mínimo e discriminação, quando não, vítimas de crimes trabalhistas, como não ser remunerado por horas extras, entre outros.
Mais que pessoas “incapazes de trabalhar”, temos pessoas cujo trabalho não possui valor social ou não apresentam resultados competitivos e não dão lucro dentro das condições formais do mercado. Estamos falando de um público cujo papel econômico no capitalismo é, até hoje, a remuneração de grandes empresários pelo encarceramento em instituições asilares e fornecimento de mão-de-obra escrava.
O BPC é a única fonte de renda capaz de resguardar essas pessoas de destinos indignos
O BPC também tem uma função de ponte e resgate entre uma situação de extremo risco social e futuros mais autônomos. O BPC é o dinheiro que dá tempo dessas pessoas ingressarem no EJA, estabilizarem suas crises para ingressar no mercado de trabalho em condições justas, saírem de situações de violência, darem conta de manter suas famílias. O BPC, hoje, é um instrumento de ressocialização exatamente para conseguirmos diminuir o número de pessoas “incapacitadas para a vida independente e para o trabalho”. Sem discriminar as pessoas que necessitarão de cuidados diários e intensos por toda a vida, no horizonte da Reforma Psiquiátrica, nosso desejo é exatamente produzir autonomia e ampliar capacidades. A perspectiva ideal é que todos conseguíssemos escolher com quem morar, tivéssemos autonomia para o exercício de nossa vida cotidiana, tivéssemos emprego justo e contribuíssemos com o INSS como um cidadão comum. Daí a crueldade sem fim de negligenciar todo o espectro da diversidade de sujeitos que compõe o campo das deficiências e cuspir na história. Nós não queremos o BPC, precisamos do BPC. Precisamos do BPC por circunstâncias histórico-sociais que precedem nossa própria existência. Precisamos do BPC por já estarmos em situação de subcidadania e exclusão.
Dizer não ao BPC que estão querendo nos impor com este ajuste fiscal é entender toda essa malha de miséria e sofrimento que atravessa os sujeitos beneficiários. Não podemos compactuar por aumentar o número de miseráveis. Mas mais importante: não podemos compactuar com políticas públicas que se recusam a investir na dignidade humana, mas não se incomodam de investir no encarceramento em massa das pessoas. Gerar milhares de desamparados, miseráveis, idosos e deficientes é assumir os prejuízos sociais, morais, civilizatórios e econômicos que advém desse abandono. Como exemplo, podemos citar que uma vaga em asilo é, em média, 5 vezes mais cara que o BPC.
Ao Ministério da Economia fica o questionamento: de onde sairá o dinheiro para internar todas as milhares de pessoas que ficarão largadas nas ruas, ou se a nova política do governo já tem no seu planejamento o orçamento para dispor dos restos mortais dos famintos? Talvez, numa triste repetição da história, já tenham algum convênio para venda de cadáveres às faculdades de medicina.
Comentários