Na última semana, o tema da violência policial esteve entre os principais assuntos noticiados na imprensa e veiculados nas redes sociais. Foram inúmeros casos no estado de São Paulo: homem jogado de uma ponte, execução com tiros pelas costas, assassinato de jovem na frente da mãe, idosa agredida, homem pisoteado na cabeça durante abordagem, entre tantos outros.
Como não poderia ser diferente, os casos foram facilmente compreendidos pela população como parte do contexto de recrudescimento da violência policial desde que Guilherme Derrite foi nomeado pelo governador Tarcísio de Freitas para a pasta da Secretaria de Segurança Pública. Dados atualizados do Ministério Público demonstram que houve um aumento de 98% no número de mortes cometidas por policiais militares nos dois primeiros anos do governo Tarcísio — o que, lamentavelmente, fica bem ilustrado com as desastrosas e truculentas operações Verão e Escudo, a morte do menino Ryan de 4 anos na Baixada Santista e os incontáveis outros registros de agressões, abordagens truculentas e assassinatos que se tornaram públicos nessa última semana. Com a notória repercussão negativa dos casos, tanto Tarcísio de Freitas quanto Guilherme Derrite foram a público repudiar a ação dos policiais militares. Recuando de parte fundamental da sua política de extrema direita para segurança pública, o governador já declarou que estava errado sobre o uso das câmeras em fardamentos policiais e que deve retomar e ampliar a política a partir do próximo ano. Mas, mesmo com uma forte pressão sobre a conduta do Secretário diante desta crise, que dá contornos de descontrole das forças militares, Tarcísio até esse momento parece manter-se fiel à linha truculenta de Derrite.
Por isso, neste artigo, queremos refletir sobre quem é o atual Secretário de Segurança Pública, como tem se dado a sua atuação à frente da pasta e por que a principal reivindicação do movimento negro e de familiares de vítimas do Estado, assim como de diversos deputados de oposição na Assembleia Legislativa, tem sido o pedido de destituição de Derrite do cargo.
Quem é o atual Secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite?
Também conhecido como “Capitão Derrite”, o atual Secretário é um ex-policial militar das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a ROTA — uma unidade de elite da corporação conhecida por sua atuação ostensiva e frequentemente associada a abordagens truculentas, denúncias de violência policial e execuções extrajudiciais.
Uma das polêmicas que marcaram a época de Derrite na ROTA foi justamente o debate sobre o uso excessivo da força pela unidade. Quando ainda era tenente, em áudio vazado em 2015, ele disse que “um policial que trabalha 5 anos na rua e não tem 3 ocorrências de morte é algo vergonhoso”. De acordo com reportagens publicadas pela Folha de S. Paulo e pela Revista Piauí no último ano, o “excesso de mortes em serviço” teria sido justamente o motivo que levou Derrite a ser afastado de suas atividades na corporação.
Ao conceder uma entrevista para um canal do YouTube em 2021, o próprio Derrite confirma esta versão ao ser questionado sobre o seu afastamento: “Porque eu matei muito ladrão. A real é essa, simples. Pa! Tive muita ocorrência de troca de tiro, eu ia para cima, entendeu? Quem vai para cima, está sujeito. Troquei tiro várias vezes, e uma atrás da outra. Acabou incomodando não sei quem, mas veio a ordem de cima para baixo, questão política: ‘Tira o Derrite da Rota’. E fui convidado a me retirar.” — disse ele.
Na carreira política, o primeiro posto de destaque veio com a conquista de um mandato de deputado federal em 2018 pelo PP e com a reeleição em 2022 pelo PL — este último, partido que abrigou Jair Bolsonaro como presidenciável, além de outros nomes relevantes da extrema direita. Resumidamente, nos dois pleitos em que concorreu, o programa eleitoral de Derrite apoiava-se em sua experiência com a Polícia Militar e com a ROTA enfatizando pautas como a defesa de maior autonomia para a polícia, endurecimento do código penal e oposição a críticas à atuação policial.
Ao longo do exercício do cargo legislativo, como não poderia deixar de ser, seguiu à risca a cartilha bolsonarista e dedicou-se à defesa de projetos de lei conservadores e populistas em relação à segurança pública. Uma das suas maiores propagandas como deputado, embora sequer seja de sua própria autoria, foi a forte campanha pela aprovação do excludente de ilicitude: um projeto de lei de ampliação das situações em que agentes de segurança pública podem agir sem serem responsabilizados criminalmente. Outros dois projetos de sua própria autoria foram no sentido da revogação de direitos básicos às pessoas encarceradas, atacando medidas que visam a reintegração destas à sociedade: o PL 4086/2019, apelidado de “fim das saidinhas”, que revoga a possibilidade de custodiados em regime semiaberto deixarem a prisão por sete dias após o cumprimento de 1/6 da pena em regime fechado e o PL 88/2020, que pretende o fim de visitas íntimas.
Ciente deste currículo, a nomeação de um bolsonarista “raiz” como Guilherme Derrite ao cargo de Secretário de Segurança Pública por Tarcísio de Freitas e as 34 trocas de uma só vez no comando da PM — que atingiram postos estratégicos como o subcomando, o Centro de Inteligência e o Comando do CPChoque, unidade a que a ROTA está subordinada —, não parece ocasional. Mas sim um aceno ao projeto inicial de extinção da pasta, que daria ao chefe da Polícia Civil e ao comandante da Polícia Militar um status equivalente ao de secretário em um modelo semelhante ao que foi aplicado no Rio de Janeiro em 2019 por Wilson Witzel, o governador conhecido pela declaração bárbara “A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo” e pelos recordes nos índices de letalidade policial.
Qual tem sido a política de Derrite à frente da Secretaria de Segurança Pública?
A gestão de Guilherme Derrite na Secretaria de Segurança Pública reflete uma política de endurecimento racista, com uso de força letal voltada sobretudo à população negra e periférica. O boletim Pele Alvo: Mortes que Revelam um Padrão, que já está em sua quinta edição, mostra que em São Paulo, assim como em outros oito estados, a letalidade policial atinge desproporcionalmente a população negra: 66,3% das vítimas eram pretas ou pardas no último ano.
De acordo com uma reportagem do Portal G1 publicada em fevereiro deste ano, militares consideravam que o secretário se “intromete constantemente” em decisões da PM que tendem a evitar confrontos e ações letais, o que teria levado a um desgaste na relação de Derrite com o ex-comando da PM. Desta forma, não é exagero concluir que com as mudanças no comando, Derrite localizou em postos estratégicos os líderes alinhados ao seu modelo repressivo, que têm como uma das principais propagandas a Operação Verão: a maior chacina policial desde o Carandiru, com pelo menos 56 mortos.
Outra marca de sua atuação na SSP foi o enfraquecimento de iniciativas de controle como a política de câmeras corporais, reconhecida por reduzir a letalidade policial e as denúncias de abuso de autoridade. No mesmo sentido, através da resolução publicada no último mês, foi operado um esvaziamento da Ouvidoria da Polícia Militar com a criação de uma “ouvidoria paralela” subordinada à própria Secretaria — o que na prática deslegitima os mecanismos independentes de fiscalização que operam atualmente.
A falta de compromisso com a transparência e o desprezo por dados críticos de violência mostram um desmonte de avanços democráticos no controle policial, resultando em um cenário alarmante de retrocesso. Por isso, é fundamental a denúncia feita pela OAB-SP em relação à “ouvidoria paralela”. Ao mesmo tempo, é uma vitória da pressão popular diante dos casos de violência a recente decisão do Ministro do STF Luís Roberto Barroso que obriga o uso de câmeras corporais, a recomposição do patamar mínimo de 10.125 equipamentos em operação e o uso do modelo de gravações ininterruptas.
Além disso, os incontáveis novos episódios de violência explícita por parte de agentes da PM que vem sendo veiculados na imprensa e nas redes sociais, tragicamente, são representações dos mais recentes dados do Ministério Público: nos últimos dois anos o número de mortes cometidas por policiais militares quase dobrou, passando de 355 para 702. Considerando apenas os casos de agentes em serviço o aumento foi ainda mais alarmante, houve um crescimento de 157%.
Outros casos, como a execução do empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach no Aeroporto Internacional de Guarulhos (após assinatura de um acordo de delação premiada para contribuir com investigações envolvendo o Primeiro Comando da Capital e corrupção na polícia de SP), e a prisão do ex-chefe de segurança de Tarcísio (por envolvimento com o crime organizado) causam grandes preocupações. Diante das investigações sobre elos entre agentes do Estado e crime organizado qual será a política do Secretário? Qual a sua capacidade de evitar uma espécie de “milicianização” da polícia paulista em um contexto em que o abuso do uso das forças parece encontrar respaldo institucional?
“Fora Derrite!”: a principal reivindicação de familiares de vítimas do Estado e do movimento negro
Na última semana, liderado pelo deputado estadual Guilherme Cortez (PSOL), um pedido de impeachment contra Guilherme Derrite foi protocolado na Assembleia Legislativa de São Paulo. O pedido foi subscrito por 25 parlamentares de oposição e reuniu as bancadas do PSOL, PT, PCdoB e PSB. Além disso, uma manifestação convocada por Uneafro Brasil, MNU (Movimento Negro Unificado) e Frente Povo Sem Medo, denunciou a violência policial ao lado de familiares de vítimas da violência policial. A principal reivindicação entoada nas escadarias do Theatro Municipal: “Fora Derrite!”.
Cabe lembrar que a luta pela destituição de um Secretário de Segurança Pública não é novidade na história de São Paulo. Em 2012, em um contexto semelhante ao que vivemos hoje, após diversas denúncias articuladas por organizações de defesa dos direitos humanos e do movimento negro, o então secretário Antonio Ferreira Pinto deixou o cargo após 300 mortes.
Hoje, diante da crescente cobrança pública, a postura de Derrite parece incompatível com a de um dirigente de um órgão tão central. Reiteradamente trata das violações cometidas por agentes como “casos isolados”, quando os dados dizem justamente o contrário, e mascara a realidade com um discurso que culpabiliza vítimas e minimiza abusos, rotulando-os como “vitimismo barato”, como fez ao ser questionado sobre a morte do menino Ryan, de 4 anos, pela deputada estadual Paula Nunes da Bancada Feminista (PSOL).
São Paulo não pode normalizar esse cenário de barbárie em que agentes da segurança pública têm “carta branca” para agir com tamanha truculência, desrespeitar direitos humanos, cometer crimes e aterrorizar a população. Tarcísio, que até aqui mantém tom elogioso em relação ao trabalho de Derrite, precisa ser também cobrado e responder ao que vem acontecendo no estado: ao manter este Secretário deve despedir-se da fantasia de moderação que vem tentando emplacar, pois escolhe usar seu capital político para legitimar a operação de um verdadeiro genocídio.
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