Por Lígia Maria
No momento em que a PEC 164/2012, que propõe a alteração da Constituição Federal para previsão da inviolabilidade da vida desde a concepção, dá seus primeiros passos na Câmara Federal, em uma contraofensiva da extrema direita ao campo democrático e aos direitos das meninas, mulheres e pessoas que gestam, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprova, em primeiro turno, o Projeto de Lei nº 869, de autoria do deputado distrital João Cardoso (AVANTE), em parceria com Thiago Manzoni (PL).
Com uma defesa que abordou a proposta da Campanha de Conscientização contra o Aborto para as Mulheres do Distrito Federal de maneira como se estivesse em pauta, na casa distrital, uma proposta de alteração da legislação vigente sobre o abortamento no País, os proponentes e a base do governo variaram desde a defesa da interrupção gestacional enquanto “homicídio triplamente qualificado”, passando pela falsa ideia de que a interrupção gestacional é promotora de culpa e sofrimento, até comparações esdrúxulas entre “arrancar o próprio dedo” e decidir sobre a saúde reprodutiva, ironizando a expressão “meu corpo, minhas regras”.
Em que pese a duplicidade de iniciativa em relação a já vigente Marcha Distrital da Cidadania em Defesa da Vida contra o Aborto, promovida em junho com dinheiro público e demarcação no calendário oficial, não ter sido citada, o PL 869/2024 aprovado na CLDF propõe campanha de conscientização sobre os riscos provocados pelo abortamento, os direitos do nascituro, os indicadores de aborto clandestino e prevê, ainda, convênios entre o poder público e a iniciativa privada para a promoção de ações.
Apesar destes direcionamentos para a tal Campanha, as argumentações a favor do projeto não mencionaram que, quando realizado em ambiente seguro e por pessoal capacitado, o abortamento é menos arriscado do que procedimentos como uma extração dentária e até o próprio parto, com estimativa de risco de morte que varia entre 0% para idades gestacionais precoces e o máximo de 8,9%, mesmo em idades gestacionais avançadas. Embora cite os “indicadores sobre aborto clandestino”, não houve menção ao principal deles: o abortamento inseguro é a quarta causa de mortalidade materna no País, sendo causa evitável sensível à Atenção Primária à Saúde e, portanto, resultado da omissão e da negligência do poder público na promoção de políticas públicas efetivas.
Embora as argumentações da oposição tenham sido assertivas em citar os permissivos legais com maior ênfase na gestação decorrente de violência sexual e seu impacto sobretudo na vida de meninas vítimas de estupro de vulnerável, ainda se nota a insegurança na abordagem, que leva à menção enfática de que o aborto é promotor de dor e trauma – contrariando as evidências que afirmam que o principal sentimento expressado por uma pessoa pós abortamento voluntário é o alívio. Não houve, por parte da oposição, um desenho argumentativo que toque a raiz do problema para disputa da narrativa pública: iniciativas como o PL 869/2024 são parte de um projeto político longitudinal, que constrói no âmbito popular a afinidade massiva aos ataques contra os direitos reprodutivos, servindo à normatividade patriarcal e misógina que sustenta o capitalismo, sob a perspectiva da reprodução social da vida e do trabalho.
Nem mesmo os dados de saúde pública foram tão contundentemente mencionados quanto a falsa notícia de que o aborto é um evento traumático. De maneira muito incipiente, a deputada distrital e enfermeira Dayse Amarilio (PSB) tocou em sua prática profissional pregressa ao mandato, mencionando atendimentos às mulheres em situação de abortamento inseguro, mas com um posicionamento evidentemente titubeante quando reforça uma perspectiva subjetiva da pauta e ratifica o jargão utilizado pela extrema direita: “em defesa da vida”, sem tratar dos impactos do aborto inseguro e da violência sexual no sistema de saúde. Por fim, a deputada ainda declarou possibilidade de voto a favor do projeto reacionário de ataque às meninas, mulheres e pessoas que gestam mediante a supressão de trecho que obrigava profissionais de saúde a submeterem gestantes à tortura de ouvir os batimentos cardíacos fetais antes da interrupção gestacional.
Com essa postura, surge o questionamento do que tem diferenciado os projetos políticos dos ditos representantes da saúde na CLDF, já que Jorge Vianna (PODEMOS), autoproclamado como tal em meio a inúmeros posicionamentos favoráveis aos ataques à saúde pública, parabenizou o autor do projeto, afirmou não ver problema na iniciativa e considerá-la coerente, já que existem tantas outras campanhas educativas no âmbito da saúde.
O que intriga é que, enquanto Jorge Vianna é um velho conhecido de propostas contrárias aos direitos reprodutivos, tendo apresentado projeto de lei de enfraquecimento do serviço de interrupção gestacional prevista em lei do DF em 2019, quando de seu primeiro mandato, Dayse Amarilio não apenas se afirma ativista pelas mulheres, mas ocupa, atualmente, a cadeira de Procuradora Especial da Mulher na casa.
Nenhum dos dois “representantes da saúde” tocou ao menos na disposição do projeto acerca das parcerias público privadas, em um cenário distrital de progressão da privatização e terceirização da saúde, sob o sucateamento sistemático da rede de atenção e a precarização do trabalho de profissionais de saúde – majoritariamente da enfermagem e do gênero feminino.
A aproximação entre os posicionamentos do deputado declaradamente misógino e da Procuradora Especial da Mulher da CLDF, afeita às causas das mulheres, preocupa quanto ao que diferencia seus projetos políticos no que diz respeito aos direitos reprodutivos e à saúde das mulheres. Não haver diferenciação argumentativa, com qualidade de informações sobre dados epidemiológicos, estrutura da rede de atenção à saúde, impactos de morbimortalidade, papel das equipes de saúde e, centralmente, usufruto do direito à autonomia e ao acesso à saúde, preocupa diante da possibilidade de ambos estarem lado a lado no objetivo central de preservarem suas cadeiras em uma possível reeleição, com base na cautela quanto à repercussão de pautas ditas morais, independente do que custe à vida das mulheres do DF e à equipe de saúde atuante no Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES DF).
Destacar-se no cenário da CLDF, com um corpo parlamentar majoritariamente masculino, reacionário, da base do governo Ibaneis Rocha – alinhado ao bolsonarismo e com um projeto político absolutamente anti-povo e anti-mulheres – é, sem dúvidas, desafiador. Contudo, trata-se de uma exigência que não admite equívocos e hesitações mediante o compromisso público de defesa da saúde, da Enfermagem e das mulheres do Distrito Federal.
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