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MOVIMENTO

Saúde mental e sobrecarga estudantil no contexto universitário: um panorama histórico e ontológico

Por Airely N. Pereira, do Afronte PA

Panorama histórico sobre saúde mental no contexto universitário brasileiro

Na década de 1950 já havia no Brasil uma preocupação com a saúde mental e bem-estar do estudante universitário. No entanto, os serviços dedicados a saúde desse público, naquela época, além de precários, eram centralizados na saúde física. Por meio de discussões a respeito de políticas de promoção e apoio aos estudantes, em 1987 foi criado o Fórum Nacional de Pró-reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis – o Fonaprace, mediante este instrumento, a partir de 1996, a psicoterapia passou a ocupar o rol de propostas voltadas para programas assistenciais em contextos universitários. Pesquisas realizadas por esta entidade revelaram que, em 2004, 36,9% dos estudantes brasileiros de nível superior apresentavam crise emocional ou uma significativa dificuldade nessa área durante os últimos 12 meses, a partir de então a psicoterapia foi estabelecida como um programa de assistência estudantil pelas instituições de ensino superior.

Em 2011 o estudo foi atualizado, verificando que 47,7% dos estudantes passaram por crise emocional no último ano, além disso, constataram que “dificuldades emocionais afetam o desempenho acadêmico” e que houve “uma elevação significativa nos percentuais tanto dos estudantes que viveram crise emocional quanto dos que procuraram tratamento psiquiátrico e psicológico”, em pesquisas seguintes, feitas em 2014 e 2018, observou-se a soma de novos dados investigados no âmbito da saúde mental, tais como ideação de morte e pensamento suicida, que afetaram, respectivamente, 6,1% e 4% dos estudantes, o relatório não pontuou as diferenças entre as duas condições, e levando em consideração que esta não é minha área de pesquisa, a fim de evitar passar uma informação equivocada, me limito a pontuar que juntas, estas condições acometeram um percentual de 9,1% dos universitários (Fonaprace, 2004; 2011; 2019).

Em meio a essa série de estudos, o governo federal implementou políticas e programas com foco na permanência estudantil, vitórias que são fruto das lutas do movimento estudantil em conjunto com o Fonaprace. Dentre as políticas e programas, destacam-se o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e o Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), ambos instituídos em 2007, visando ampliar o acesso e a permanência na educação superior mediante recursos exclusivos à assistência estudantil, possibilitando aos discentes condições de concluírem seu curso. 

Tais ações buscavam a igualdade entre os discentes no ensino superior, vale lembrar que em 2003 algumas Universidades, como a UERJ e a UnB, passaram a adotar o sistema de cotas, que se tornou lei nacional apenas em 2012, isso fez com que esse espaço, antes altamente elitizado, se tornasse mais plural ao receber camadas sociais historicamente marginalizadas, ou seja, que demandavam políticas de assistência estudantil para poderem permanecer na universidade. Pensar sobre a saúde mental dos estudantes exige um recorte que considere raça, gênero e orientação sexual, pois esse público, além da sobrecarga estudantil, é alvo de violências, muitas vezes sobrepostas, que atravessam suas identidades e corpos e consequentemente afetam sua saúde mental.

A pandemia provocada pela Covid-19 agravou os problemas referentes a saúde mental, a impossibilidade em manter os modos de vida habituais ocasionou um impacto negativo nos aspectos psicológicos dos estudantes. O distanciamento social, medida necessária para evitar a proliferação do vírus, acentuou o surgimento de sintomas como medo, solidão, desesperança, angústia, insônia e ideação suicida, potencializando quadros de estresse, ansiedade e depressão. Diante desse cenário, um problema que já era latente, tomou proporções pandêmicas, de acordo a Organização Mundial da Saúde (OMS), durante o segundo semestre de 2023, cerca de 35% dos universitários do planeta enfrentavam problemas de saúde mental, outro estudo, o Healthy Minds Network, que vem da iniciativa de acadêmicos dos EUA, apontou que entre 2022 e 2023, em um cenário com 76.406 estudantes universitários, 41% tinham sintomas de depressão, 36% apresentaram quadros de ansiedade e 14% pensaram em suicídio nos últimos 12 meses. Esses dados apontam que os problemas relacionados a saúde mental de estudantes universitários é global, além disso, há uma particularidade em comum entre eles: a sobrecarga estudantil.

Sociedade do cansaço: sintomas de um saber que é refém do capital

Considerando que a problemática relacionada a saúde mental dos estudantes universitários é global, podemos inferir que um dos mecanismos que impulsionam essa realidade também se configure ao nível global. Diante disso, o capitalismo, enquanto sistema mundial e hegemônico, que atravessa não só as esferas econômicas mas também culturais e epistemológicas, exerce, mediante o paradigma da sociedade de desempenho, forte influência na forma como se dá a produção dos saberes elaborados em instituições acadêmicas. As Universidades, apesar de suas peculiaridades em relação a outros territórios, continuam inseridas numa realidade forjada pelo capital industrial, elas produzem ciência, que por sua vez possibilita a fabricação de novas tecnologias, tecnologias estas, que quando reverberam interesses econômicos, tornam-se produtos comercializados por empresas globais que têm como principal objetivo aumentar sua margem de lucro e expandir o seu domínio, com isso, esse espaço muitas vezes se torna refém do modelo de produtividade imposto pelo capital. Mediante a indústria cultural – mecanismo que dita e normaliza a forma como devemos viver de modo que correspondamos às expectativas da indústria capitalista, nós, enquanto pessoas suscetíveis ao mundo, muitas vezes aderimos ao ideal posto pelo capitalismo, e passamos a reproduzir jargões e comportamentos que vão na contramão daquilo que poderia ser de fato os nossos interesses, com isso, sucumbimos a uma espécie de autoexploração.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2015) aponta que doenças neuronais como depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (Tdah), Síndrome de Burnout e outras determinam a paisagem patológica do começo do século XXI. Essa paisagem patológica surge do “exagero de positividade”, tal excesso seria nossa incapacidade de não-fazer, noções como máxima performasse, produtividade, perfeição e alto desempenho são a marca do que veio a ser a sociedade do cansaço, que se caracteriza como uma eterna sensação de não dar conta das tarefas. Para o filósofo, o individualismo, aliado a competitividade – insígnia da cultura capitalista, é o responsável por mediar as relações interpessoais nesse contexto, com isso as pessoas passam a valer o que elas produzem. Experiências como o vazio ou a falta não são toleradas nesse sistema, pois a otimização do tempo só é efetivada mediante a produção de algo.

Na sociedade de desempenho, os “empresários de si mesmo” – geralmente “autônomos” que trabalham mediados por plataformas como o ifood ou empreendedores que não possuem os meios de produção, configuram seu mindset (mentalidade) para repetir expressões como Yes, we can! (Sim, nós podemos!), atribuindo a si mesmos um poder praticamente ilimitado que é fonte de grande motivação. Para Byung-Chul Han “a positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. O sujeito de desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da obediência”. Ser um trabalhador com carteira assinada, nessa nova mentalidade, é algo que entra em descrédito, ser empregado se torna algo repugnante, tanto que esse conceito passa a entrar em desuso, as empresas agora estabelecem suas relações trabalhistas com os chamados “colaboradores”, essa mudança de mindset individualiza as pessoas com a promessa de sucesso, com a expectativa de que eles podem chegar “ao topo”, e que esses “colaboradores” estarão em pé de igualdade com os donos das empresas.

Contudo, a realidade não é uma promessa, o que ela apresenta são empreendedores sem renda (desempregados), ou empregados, porém sem os direitos trabalhistas. Aqueles que colaboram com a empresa, acreditando que podem angariar maiores lucros, geralmente só dispendem uma quantidade maior de energia e responsabilidade naquele negócio, sem por isso ser recompensado. Quando confrontado com essa realidade sem sucesso, o mindset que foi configurado para acreditar que possuía um poder praticamente ilimitado, é o mesmo que olha para si e atribui os mais perversos adjetivos: fracassado! Inútil! Perdedor!. Segundo Byung-Chul Han “O homem depressivo é aquele animal laborans que explora a si mesmo e, quiçá deliberadamente, sem qualquer coação estranha. É agressor e vítima ao mesmo tempo. A depressão irrompe no momento em que o sujeito de desempenho não pode mais poder”. Para o filósofo, também pertence à depressão a carência de vínculos, característica da sociedade individualista.

O sujeito de desempenho, com sua nova liberdade, é livre para se coagir a maximizar seu desempenho. A novidade dessa forma de exploração/autoexploração é justamente que ela anda de mãos dadas com o sentimento de liberdade,

Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal (Han, 2015).

A suposta “habilidade” em ser multitarefa, que geralmente é reconhecida como um ganho na sociedade de desempenho, na realidade, segundo Han, representa um retrocesso a um estado selvagem, onde os animais, para garantir sua sobrevivência, precisam ocupar vários sentidos simultaneamente para não serem presas fáceis, por isso, esses animais não são capazes de 

aprofundamento contemplativo – nem no comer, nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar, ao mesmo tempo, o que tem atrás de si. Essa atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. Formas ou estados de duração escapam à hiperatividade. No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas (Han, 2015). 

Esse “demorar-se” vai na contramão do que impõe a sociedade capitalista, que acelera o tempo cada vez mais, no intuito de vender algo “novo” a todo instante, a durabilidade não tem espaço dentro desse modo de produção e consumo. A hiperatividade faz com que percamos a capacidade de pensar sobre o que vale a pena fazer e o que não vale e isso tem como consequência uma hiperpassividade, que cede acriticamente, sem hesitar, a qualquer tipo de impulso ou estímulo, muitos deles insistentes e intrusivos, com base em uma economia da eficiência e da aceleração.

O Projeto de Lei 3.076 de 2020, o “future-se”, é uma tentativa de ampliar o poder do setor privado dentro das universidades públicas, tal projeto visa transformar o ensino superior em um local adaptado à lógica empreendedora – do empresário de si, tornado-o completamente refém dos interesses postos pelo capital e distanciando-o da perspectiva de um ensino crítico e socialmente referenciado. Tal medida encontrou forte resistência nos movimentos sociais, especialmente o estudantil, e isso gerou empecilhos para que ela fosse estabelecida como lei, contudo, o fantasma do “fature-se” voltou a tramitar na câmara dos deputados esse ano, exigindo de nós vigilância e luta em defesa da Universidade Pública.

 

Indicação bibliográfica

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.