Como aborda Franz Fanon, em “Pele Negra, Máscaras Brancas”, o racismo não é uma característica do comportamento humano. É, antes de tudo, uma estrutura social.
É comum que, em novembro, especialmente no dia 20, Dia da Consciência Negra, organizações e instituições diversas preencham suas redes sociais com homenagens à beleza negra, à memória histórica e às suas contribuições, exaltando figuras como Zumbi dos Palmares. É significativo que, pela primeira vez, este dia seja celebrado como feriado nacional, um marco na luta pela visibilidade e reconhecimento. No entanto, embora essas ações tenham um valor simbólico, elas permanecem insuficientes. São gestos que, por si sós, pouco alteram a estrutura do cotidiano e o curso das injustiças históricas, pois ainda carecem de uma praxis verdadeiramente transformadora. Essa celebração episódica, que emerge uma vez ao ano, falha em desafiar a realidade diária de exploração e de exclusão que marca a vida da população negra brasileira.
O debate sobre a condição de vida e trabalho da população negra está enraizado nas contradições de uma sociedade que, ao celebrar Zumbi, ainda perpetua as cadeias invisíveis da desigualdade. Nos últimos anos, vivemos uma intensificação da exploração do trabalho, onde as relações de trabalho foram “modernizadas” para beneficiar o capital, enquanto a classe trabalhadora assiste à deterioração de seus direitos. Práticas como a “uberização” e a terceirização da mão de obra, vendidas sob o pretexto da flexibilização, têm transformado os trabalhadores em prestadores de serviços autônomos, desprovidos de direitos e do amparo social. Esta mesma precarização atinge também os(as) servidores(as) públicos(as), ameaçados(as) pelo avanço do projeto privatista, que visa substituí-los(as) por trabalhadores(as) terceirizados(as) e adequar o serviço público ao mercado privado.
E onde está a população negra neste contexto? Historicamente relegada aos postos mais subalternos, hoje enfrenta o desmonte das condições mínimas de trabalho e a precarização contínua. Esse processo, que parece falar apenas de questões trabalhistas, tem uma conexão intrínseca com o racismo estrutural que atravessa nossa sociedade. Desde o pós-abolição, o projeto de uma sociedade desigual foi forjado na exclusão sistemática da população negra, que, como apontou Lélia Gonzalez, sequer teve acesso pleno ao mercado formal, enfrentando um ciclo contínuo de exclusão e subordinação. A luta por condições de trabalho dignas e emancipação humana é, inevitavelmente, uma luta racial, pois a exploração capitalista sempre encontrou no racismo um de seus alicerces.
Apesar desse cenário de intensificação da exploração, algumas lutas emergem, revelando o fôlego da classe trabalhadora. Um exemplo emblemático é a mobilização em torno do fim da jornada extenuante 6×1, que nasceu pelas mãos de Rick Azevedo, homem negro, gay, e vereador do PSOL no Rio de Janeiro. Criador do movimento Vida Além do Trabalho (VAT), Rick trouxe visibilidade para essa pauta ao denunciar, em um vídeo viral, as condições desumanas impostas aos trabalhadores. A bandeira foi abraçada pela deputada federal Érika Hilton, que apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) visando a redução da jornada de trabalho. Este movimento é uma resposta concreta à intensificação da exploração e uma afirmação de que as lutas por direitos trabalhistas e sociais são, acima de tudo, lutas contra as opressões estruturais.
Seria esta a tão criticada “pauta identitária” que muitos desdenham? O questionamento irônico evidencia a tentativa falaciosa de deslegitimar pautas que emergem das demandas de grupos historicamente subjugados. O termo “identitarismo” é, aqui, um disfarce para manter o status quo, para não reconhecer que as pautas relacionadas ao combate às opressões são uma questão de justiça social, e não, de divisão ou fragmentação.
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Nos últimos tempos, testemunhamos o recrudescimento do fascismo global, como se observa nas recentes eleições nos Estados Unidos, onde o avanço de forças reacionárias atribuiu à “pauta identitária” a derrota de Kamala Harris e do Partido Democrata. De forma similar, no Brasil, setores da esquerda desconsideraram o contexto de retrocessos políticos e o crescimento global da extrema-direita ao atribuir a derrota de Guilherme Boulos em São Paulo ao “identitarismo”. Numa análise reducionista e enviesada, ignoraram a complexidade das dinâmicas sociais e as pressões conservadoras, optando por responsabilizar grupos historicamente excluídos pela derrota de candidaturas progressistas. Esta leitura, relapsa e superficial, minimiza o impacto do racismo estrutural e da desigualdade social, transformando lutas legítimas em alvos de desprezo e de desconfiança.
Neste contexto, os sindicatos, como representações da classe trabalhadora, não estão isentos de contradições. Refletindo as estruturas da sociedade, também eles reproduzem, muitas vezes, machismo, racismo e LGBTfobia. O Sinasefe, que representa profissionais da educação federal, deve reconhecer que celebrar a Consciência Negra no dia 20 de novembro não é suficiente se o debate racial não estiver integrado em suas ações diárias. É fundamental que as entidades de representação de classe se comprometam com um projeto inclusivo e antirracista que ultrapasse o campo do simbólico, incorporando a luta racial e de gênero em sua estrutura e ação política de forma sistemática.
No campo educacional, o cumprimento da Lei nº 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, e a aplicação da Lei de Cotas permanecem como desafios latentes. Mais de 20 anos após a promulgação da Lei 10.639, o debate ainda se concentra no “como implementar”, evidenciando uma lacuna na operacionalização dessas políticas. O Sinasefe, enquanto sindicato da educação, tem um papel fundamental nesse processo. Contudo, antes de exigir a aplicação dessas leis nas instituições de ensino, o sindicato deve realizar uma autocrítica e assumir sua tarefa interna: incorporar práticas verdadeiramente antirracistas de forma estrutural, e não apenas no discurso.
O Coletivo Pão e Rosas reconhece a necessidade de racializar todos os espaços de debate e as arenas políticas, incluindo o próprio SINASEFE, para construir uma prática sindical genuinamente antirracista e inclusiva. Esta é uma tarefa que exige um enfrentamento interno constante, uma autocrítica profunda e uma prática ativa para que a luta antirracista no sindicato não aconteça apenas no campo do discurso. Ao contrário, que faça daquele um verdadeiro agente de transformação, capaz de refletir e construir a sociedade emancipada que almejamos. É uma luta cotidiana, que exige de nós, enquanto classe e enquanto movimento, o compromisso com a emancipação plena de todos(as) os(as) trabalhadores(as).
Rafaella Florêncio é professora do IFCE do campus Canindé e do Pão & Rosas Coletivo Sindical no Sinasefe
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