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Ainda estou aqui: um filme que nos mantém firmes e esperançosos

Aline Onawale

Carlos Zacarias

Carlos Zacarias é doutor em História e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde leciona desde 2010. Entre 1994 e 2010 foi professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde dirigiu a Associação Docente (ADUNEB) entre 2000 e 2002 e entre 2007 e 2009. Colunista do jornal A Tarde de Salvador, para o qual escreve artigos desde 2006, escreve às quintas-feiras, quinzenalmente, sobre temas de história e política para o Esquerda OnLine. É autor de Os impasses da estratégia: os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil (1936-1948) (São Paulo, Annablume, 2009) e no ano passado publicou De tédio não morreremos: escritos pela esquerda (Salvador, Quarteto, 2016) e ainda organizou Capítulos de história dos comunistas no Brasil (Salvador, Edufba, 2016). É membro da Secretaria de Redação da Revista Outubro e do Conselho Editorial das revistas Crítica Marxista, História & Luta de Classes, Germinal, entre outras.

Há quase 30 anos sem pisar o tapete vermelho do principal prêmio da indústria de cinema do mundo, o Brasil está prestes a emplacar um concorrente de peso. “Ainda estou aqui”, filme de Walter Salles, com Fernanda Torres e Selton Mello, baseado na obra de Marcelo Rubens Paiva, é candidatíssimo a uma vaga na disputa pelo Oscar de filme internacional (antiga categoria de filme estrangeiro) em 2025. No entanto, o feito mais extraordinário do filme de Walter Salles, cineasta que foi o último brasileiro a disputar a estatueta de melhor Filme Internacional na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, com o filme “Central do Brasil”, no longínquo ano de 1999, é justamente mostrar a história do Brasil aos brasileiros.

O Brasil é devedor de boas histórias sobre seu passado, muito especialmente sobre o passado recente, quando o país viveu sob uma brutal Ditadura comandada pelos militares. Nem mesmo lançamentos recentes que abordam o período, incluindo o ótimo “Marighella”, de Wagner Moura, fazem sombra ao que países latino-americanos têm produzido sobre suas ditaduras. A Argentina, por exemplo, que já ofereceu ao mundo “A história oficial”, vencedor do Oscar de filme estrangeiro em 1986, em 2023 concorreu ao prêmio de melhor filme internacional com “Argentina, 1985″. Neste quesito, o país vizinho, não apenas esfregou na nossa cara a indicação ao Oscar, como nos ofereceu uma lição sobre como tratar os criminosos da sua última Ditadura (1976-1983). A história contada na película de Santiago Mitre traz Ricardo Darín como o procurador Julio Strassera, e Peter Lanzani como o procurador adjunto Luis Moreno Ocampo, que levaram ao banco dos réus e condenaram os generais carniceiros de um regime que matou cerca de 30 mil opositores em apenas sete anos.

No Brasil de 2022, sob Bolsonaro e Augusto Aras, assistimos, com inveja, “Argentina, 1985”, depois de ouvir ministros do STF insistindo que devíamos deixar o passado para trás, embora com esperanças de um dia julgar os responsáveis pelos crimes da Ditadura Militar brasileira (1964-1985) e ainda os crimes da pandemia. Sem saber que o país seria vitimado por uma nova tentativa de golpe, ocorrida em 8 janeiro de 2023, felizmente mal-sucedida, mesmo com o retorno de Lula à presidência ainda esperamos por uma nova Comissão Nacional da Verdade (CNV), desejando que seja, também, encarregada de promover a justiça, algo que a CNV, que funcionou entre 2012 e 2014, não se incumbiu de fazer. Também esperamos por mais filmes e livros que encarem de frente o nosso passado recente, sendo capaz de passar a limpo um período tão duro de nossa história, algo que “Ainda estou aqui”, em sua até o momento curta trajetória nos cinemas, tem conseguido fazer.

Na penúltima vez que o Brasil concorreu a uma estatueta de filme estrangeiro (internacional), foi justamente com uma obra sobre os conturbados anos da Ditadura. “O que é isso, companheiro?”, de Bruno Barreto, chegou ao tapete vermelho em 1998, enquanto “Central do Brasil”, que conta a história de Dora (Fernanda Montenegro), uma escrevedora de cartas que ajuda uma criança, Josué (Vinícius Oliveira), a encontrar o seu pai no sertão do nordeste, do mesmo Walter Salles, disputou na mesma categoria em 1999, ocasião em que, por extraordinário feito, Fernanda Montenegro, que também está presente no novo filme de Walter Salles, foi indicada ao prêmio de melhor atriz.

As coincidências que envolvem Walter Salles, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres (que também atua em “O que é isso, companheiro?”), entretanto, param por aí. Em 1998 o filme de Bruno Barreto, baseado na obra homônima de Fernando Gabeira, apesar dos seus inúmeros méritos, foi alvo de críticas, principalmente pelo atentado à memória que promoveu. Na ocasião, ao levar às telas o episódio do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick (Alan Arkin) por um comando da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Bruno Barreto e Leopoldo Serran, roteiristas do filme, atribuíam complexidade à figura do torturador Henrique (Marco Ricca), enquanto retrataram os guerrilheiros como indivíduos rasos, simplórios e investidos de ódio extremo, com exceção de Paulo/Fernando Gabeira, personagem de Pedro Cardoso.

Com essa opção que contemporizava com a Ditadura e de certa forma absolvia a tortura, o personagem Jonas, na verdade Virgílio Gomes da Silva, interpretado por Matheus Nachtergaele, foi retratado como um monstro, motivando a revolta de pessoas que conviveram com o militante da ALN, que o descreveram como um ser humano afável, idealista, leal e abnegado militante da causa. Capturado logo depois do desfecho do sequestro de Elbrick, que culminou na libertação de 15 presos políticos, Jonas foi barbaramente torturado, vindo a morrer nas mãos dos agentes da Ditadura, que depois o enterraram como indigente no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo.

Frente a esse vilipêndio cometido contra a memória de uma vítima da Ditadura, “O que é isso, companheiro?”, o filme, deu ensejo a organização do livro “Versões e ficções: o sequestro da história”, obra coletiva que assumiu o objetivo de salvaguardar a memória de Jonas, oferecendo uma versão dos acontecimentos “que não seja somente aquela produzida pelos caçadores” e “certamente muito além daquela que se pretende ‘isenta’ e ‘desideologizada’” (1997, p. 10).

Se “O que é isso, companheiro?” foi motivo de polêmica, em que pese sua qualidade estética que o levou ao Oscar, “Ainda estou aqui” tem provocado júbilo de plateias pelo Brasil, além de celebração da parte de estudiosos da Ditadura e de personalidades que viveram naqueles anos e reconhecem a honestidade e a sensibilidade com que a história de Rubens Paiva e sua família foi representada.

“Ainda estou aqui” conta a história da família do deputado Rubens Paiva (Selton Mello), que após ter sido levado por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) em 20 de janeiro de 1971, foi dado como “desaparecido” pelo regime. Deputado eleito pelo PTB paulista em 1962, Rubens Paiva foi cassado pelo Golpe de 1964, sendo obrigado a deixar o país em função da repressão instaurada. Após retornar ao Brasil em 1965, Rubens Paiva foi viver no Rio de Janeiro com sua mulher Eunice (Fernanda Torres) e seus cinco filhos, entre eles Marcelo Rubens Paiva (Guilherme Silveira), autor do livro que inspira o filme de Walter Salles.

Na obra de Walter Salles, a casa da família Paiva é um local alegre, ensolarado, sempre de portas e janelas abertas e frequentado por amigos que entram e saem da bela edificação em frente ao mar do Leblon. Na primeira parte do filme o espectador é levado a compartilhar da intimidade dessa família que vive uma vida aparentemente feliz e comum. Todavia, algo de estranho recorta a paisagem. Helicópteros sobrevoam o litoral, tropas atravessam a avenida em caminhões cheios de soldados, barreiras do exército agem com violência contra jovens brancos de classe média e notícias políticas sobre sequestros de diplomatas estrangeiros passam na TV. Tais eventos despertam o interesse dos Paiva, muito especialmente de Eunice, que parece enxergar mais longe do que o resto da família.

A vida dos Paiva transcorre dentro da normalidade e da amorosidade que uma família culta, politizada, de classe média alta e muitos filhos, pode conter, até que um acontecimento inesperado muda tudo. Com a chegada dos agentes do CISA, que levam Rubens para um “interrogatório de rotina”, algo que acontece também com Eunice e com Eliana, filha do casal, então com 15 anos de idade, a vida torna-se um pesadelo.

Levadas ao quartel da 3ª Zona Aérea no dia 21 de janeiro, mesmo local a que Rubens fora levado na véspera, dia do feriado de São Sebastião na capital fluminense, Eliana e Eunice, são liberadas dias depois (Eliana no dia 23, Eunice no dia 2 de fevereiro). Rubens, no entanto, nunca mais volta para casa. Entre as diversas versões da Ditadura plantadas na imprensa, que durante muito tempo ajudou no trabalho sujo de espalhar mentiras, a notícia de que Rubens Paiva havia fugido, de que havia sido tomado por terroristas que pretendiam libertá-lo, de que havia sido morto na tentativa de fuga, todas depois negadas pelo trabalho de apuração de historiadores, demais estudiosos e membros da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que apurou os crimes da Ditadura entre os anos de 2012 e 2014.

Pelo relatório da CNV, publicado em 2014, Rubens Paiva foi inicialmente levado para o quartel da 3ª Zona Aérea, então comandada pelo tenente-brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, onde se iniciaram as torturas, e depois transferido para a sede do DOI-CODI na rua Barão de Mesquita, na Tijuca, um conhecido centro de tortura da cidade. 

Na denúncia oferecida pela família de Rubens Paiva ao Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) em 2014, trazida no livro de Marcelo Rubens Paiva, consta o seguinte:

Sequestrado no DOI, sob responsabilidade do CIE [Centro de Informações do Exército] e do próprio DOI, Rubens Paiva foi então vítima de violenta tortura cometida pelo integrante da equipe de interrogatórios da Seção de Informações do DOIO, Antonio Fernando Hughes de Carvalho (falecido no ano de 2005), dentre outros agentes ainda não totalmente identificados. (…) A violência então empregada contra a vítima, com intenção de provocar sua morte, foi assim a causa das lesões internas que ocasionaram o óbito, motivo pelo qual está a conduta subsumida no art. 121, § 2º, do Código Penal. O crime foi cometido por motivo torpe, consiste na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver. (2015, p. 270-271)

A tragédia que se abateu sobre a família de Rubens, é o ponto de virada da história, vindo a revelar uma outra face de Eunice Paiva. A dona de casa prendada, a dedicada esposa e mãe amorosa, especialista em um suflê celebrado por todos, terminou por se revelar uma mulher forte, detentora de inúmeros recursos emocionais e rara inteligência que foi usada para proteger os filhos e lidar com o infortúnio que lhe fora infringido pela Ditadura Militar.

Primeiro na capacidade de resistir à tortura psicológica a que fora submetida nos 11 dias em que esteve presa, depois na busca por informações sobre o marido e na proteção de sua família, por último, e não menos importante, por dar um outro rumo à sua vida, Eunice Paiva revela-se como verdadeira protagonista da história contada por Marcelo Rubens Paiva e por Walter Salles. Formada em Letras, mas dedicada aos cuidados com a casa e a família, Eunice resolve fazer Direito depois de mudar com os filhos para São Paulo. Diplomada bacharel em Direito aos 48 anos de idade, Eunice Paiva passa a advogar pela causa dos povos indígenas, colaborando com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e tornando-se uma das maiores especialistas brasileiras na defesa dos direitos humanos e dos direitos dos povos originários, temas que são trazidos ao filme e que ficam melhor entendidos quando se lê o livro que o inspira.

“Ainda estou aqui” pode não entrar na lista final para o Oscar, Fernanda Torres, talvez a melhor atriz brasileira de sua geração, pode não ser indicada ao prêmio maior do cinema mundial como se cogita. Entretanto, se não ganhar mais nada além dos efusivos aplausos que recebeu em setembro, no Festival de Veneza (Fernanda Torres e “Ainda estou aqui” foram aplaudidos por dez longos minutos e Murilo Hauser e Heitor Lorega ainda foram agraciados com o prêmio de melhor roteiro), “Ainda estou aqui” já terá feito história. Como Fernanda Torres tem dito em diversas entrevistas, o Oscar não pode ser entendido como o motivo principal da existência do filme. Considerando que a premiação obedece a critérios diversos, algo que não assegura que o melhor de cada categoria venha a ser premiado, a expectativa que os apreciadores do cinema cultivam, não pode definir o que significa “Ainda estou aqui” nesse contexto difícil atravessado pelo país.

Filmado em 35 mm, o filme de Walter Salles tem também inúmeros outros méritos, como uma fotografia belíssima, um figurino de encher os olhos e canções que são a cara de cada década em que se passa o filme, muito especialmente os anos 1970. O elenco do filme, merece uma menção honrosa, pois além das intepretações absolutamente dignas e convincentes dos jovens atores que fazem os papéis dos filhos de Eunice e Rubens na primeira parte da película, “Ainda estou aqui” também traz atores e atrizes premiados(as), que atuam como coadjuvantes, e sustentam a história para além do núcleo de protagonistas, com destaque para Fernanda Montenegro, que interpreta Eunice Paiva idosa, na última sequência do filme, que se passa em 2014.

 “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, é filme feito por brasileiros, para brasileiros, uma comovente homenagem à família Paiva, que perdeu sua matriarca em 13 de dezembro de 2018, aos 86 anos, na data exata em que o Ato Institucional nº 5 completou 50 anos. É também um forte símbolo da luta de um país que precisa se reencontrar com sua memória.

Eunice Paiva, por uma dessas ironias da história, passou os últimos 14 anos de sua vida acometida pelo Alzheimer. Por tudo que representou para o país, algo que “Ainda estou aqui”, o filme e o livro, nos ensinam, é possível dizer que seu legado impulsiona o Brasil a ter esperança e a retomar da luta por memória, verdade e justiça.