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As eleições de 2024 e os desafios da esquerda socialista

Por Marcelo Badaró Mattos, de Niterói (RJ)
Rovena Rosa/Agência Brasil

Nem bem as urnas se fecharam, começaram a circular os mais diversos balanços das eleições municipais de 2024, elaborados por militantes e organizações de esquerda, corretamente preocupadas com os sinais visivelmente negativos que o pleito revelou para as forças engajadas na transformação social, confirmando o signo reacionário dos tempos em que vivemos. Neste texto, não me preocupo em resgatar dados e informações que já circularam amplamente, mas apenas em debater aspectos que me parecem centrais das relações que podemos estabelecer entre essas eleições e a luta mais ampla – estratégica – da esquerda socialista por inverter a correlação de forças políticas e sociais desfavorável.

Hoje e amanhã

Nossas análises sobre a eleição municipal deste ano não podem deixar de levar em conta suas possíveis repercussões sobre as eleições de 2026. Nesse sentido, o crescimento da extrema-direita, expresso principalmente na votação do PL, é um sinal bastante negativo para o próximo período. Em 2020, o bolsonarismo se dividiu em diferentes legendas, face ao fracasso da criação do “Aliança para o Brasil” e, embora os representantes da extrema-direita não estejam hoje apenas no PL, este é o partido que concentra a maior parte de seus quadros.

Ainda assim, as eleições municipais nunca espelham diretamente o voto das eleições gerais e presidenciais. Nesta, particularmente, a taxa de reeleição de prefeitos que disputavam um segundo mandato foi de 82%, a maior da história (antes, girava na casa dos 60%), o que se acentua, nos municípios que mais receberam verbas de emendas parlamentares (98% de taxa de reeleição no primeiro turno). Registrado o crescimento relativo expressivo do PL e o ganho de musculatura do PSD, o quadro geral de domínio da direita política sobre os governos municipais foi reforçado, mas não é, pois, uma novidade.

É diante desse cenário que podemos entender melhor a incidência que a “polarização” nacional, expressa pelas referências em Lula x Bolsonaro, pode ter tido nessas eleições. Numa primeira impressão, a “taxa de sucesso” de Bolsonaro em campanha foi maior que a de Lula, mesmo que seja difícil dizer que o ex-presidente foi “o” fator decisivo para eleição de prefeitos, pois menos de 1/3 daqueles para quem Bolsonaro fez campanha presencialmente se elegeram em primeiro turno e não foram muitos mais os que triunfaram no segundo turno. Ainda assim, sua vitória é desigual, pois teve mais sucesso nas cidades que visitou no Sul do país, mas perdeu ainda no primeiro turno em sua base original, a capital do Rio de Janeiro, e em várias cidades a base bolsonarista se dividiu em diferentes candidaturas no primeiro turno (e em algumas no segundo), sendo São Paulo, capital, o caso mais emblemático. Para explicar essa divisão é preciso destacar que com a inelegibilidade de Bolsonaro para 2026 – sem qualquer sinal de reversão até aqui – os dirigentes do campo bolsonarista e mesmo alguns “aventureiros”, como Marçal, testam e disputam possíveis novos protagonismos para representar a extrema-direita no pleito de daqui a dois anos. Tarcísio de Freitas, é claro, ganhou força, com a vitória de Nunes, mas ainda é um nome sem dimensão nacional e a disputa interna ao campo continua aberta. Quero chamar a atenção para um segundo elemento dessas divisões internas ao bolsonarismo/extrema-direita, que é seu componente ideológico. Na próxima seção voltarei a essa questão, mas antes cabe tratar de Lula e sua atuação.

O PT cresceu um pouco em número de prefeituras conquistadas em primeiro turno, mas todas em cidades de até 200 mil habitantes. Foi ao segundo turno em poucas capitais, e nelas elegeu apenas o prefeito de Fortaleza. Elegeu aliados do governo federal, mas de partidos de direita. Num balanço geral, o PT ainda ocupa muito menos postos municipais que em 2012, última eleição antes da virada reacionária iniciada em 2016. Assim, o desempenho econômico relativamente positivo do governo Lula teve pouco impacto na vida da maioria trabalhadora e não se percebeu uma transferência direta de votos dos eleitores de Lula para os candidatos petistas.

Ainda assim, cabe destacar que do ponto de vista da estratégia eleitoral de Lula para 2026, ele atuou de forma coerente. Lula não teve como objetivo principal nesta eleição fortalecer o PT, ou a esquerda. É bastante disseminada entre nós a avaliação de que “o governo Lula não faz disputa ideológica”, mas melhor seria dizer que não a faz pela esquerda. A estratégia de Lula é traçada para que em 2026 possa vencer novamente as eleições presidenciais e para isso a ideologia de Lula continua sendo (como já é há muito tempo) a da conciliação de classes, refletida na coligação político-eleitoral com partidos e políticos de direita – representações da classe dominante. Assim, eleger Eduardo Paes no primeiro turno na cidade do Rio de Janeiro, foi uma vitória de Lula (ao menos do seu ponto de vista), pois terá um aliado importante (talvez candidato a governador) no berço de Bolsonaro, além de dividir o PSD de Kassab, que hoje é secretário de Tarcísio no governo de SP. Da mesma forma, embora o PT compusesse a chapa de Edmilson em Belém, para Lula foi uma vitória eleger Normando do MDB de Barbalho, um aliado na legenda que divide com o PSD a liderança em número de prefeitos eleitos. Mesmo o apoio a Boulos em São Paulo responde a essa lógica, “não-ideológica”. Apesar de derrotado no segundo turno, o candidato do PSOL, que hoje tem maioria interna no partido e se comporta como apoiador entusiasmado do governo, está comprometido a retribuir o apoio e garantir que a costura eleitoral de 2026 estenda-se à esquerda do PT.

Seria uma ilusão esperar que Lula mudasse o suficiente para fazer disputa ideológica pela esquerda com o bolsonarismo. Essa até pode acontecer conjunturalmente, mas estará sempre submetida ao cálculo eleitoral pessoal de momento do presidente. Uma consequência dessa estratégia pode ser a reeleição de Lula em 2026. Destaque para o condicional, porque mesmo que Lula chegue lá candidato, sua lógica prevaleça e os hoje aliados de direita de fato o apoiem em 2026, o que não está dado, a disputa será muito difícil, ainda que facilitada se Bolsonaro continuar inelegível. Afinal, o pêndulo da política brasileira como um todo, em 2026, estará muito mais girado à direita do que em 2006, quando se reelegeu pela primeira vez. Uma outra consequência, porém, é mais sinistra: ainda que se reeleja em 2026, Lula não terá preparado nenhuma alternativa consistente de enfrentamento ao avanço da extrema-direita, nem no plano do debate ideológico, nem em termos de nomes à esquerda. Além disso, muita coisa mudou no Brasil desde seu segundo mandato (2007-2010), quando emplacou uma burocrata sem nenhuma experiência eleitoral prévia como sucessora. Ou seja, a forma como Lula prepara sua reeleição em 2026 tem peso determinante – até aqui negativo – na capacidade que a esquerda possa ter de conter eleitoralmente o avanço do neofascismo no futuro. E se Lula – que ainda é o único nome com peso suficiente para barrar eleitoralmente o neofascismo – não plantará as sementes da inversão da correlação de forças social e política, a quem caberá esse desafio senão às forças efetivamente comprometidas com uma estratégia socialista?

Sobre a tal disputa ideológica…

Nosso partido, o PSOL, não conquistou prefeituras no primeiro turno e elegeu cerca de 10 vereadores a menos que em 2020. Uma vitória em São Paulo no segundo turno, certamente alteraria qualitativamente o balanço do partido, mas Boulos não conseguiu avançar em relação a sua votação de 2020 e repetiu o segundo lugar. Porém, a questão mais importante do debate sobre o balanço do papel da esquerda hoje, não é o resultado da eleição em si, ou o que ela poderia ter feito para ter outro resultado, mas o que esse processo expressou – e o que poderia ter expressado – em termos da disputa pela consciência de parcelas significativas da classe trabalhadora que hoje votam na extrema-direita por adesão ideológica.

O avanço da extrema-direita no Brasil, nos últimos dez anos, deveu-se, entre outros fatores, ao seu sucesso em disputar não só os votos, mas também as consciências. Embora sua coluna vertebral esteja no suporte da pequena burguesia e assalariados médios, o apoio ao bolsonarismo está espalhado por toda a sociedade e possui forte incidência em parcelas expressivas da classe trabalhadora.

O avanço da extrema-direita no Brasil, nos últimos dez anos, deveu-se, entre outros fatores, ao seu sucesso em disputar não só os votos, mas também as consciências. Embora sua coluna vertebral esteja no suporte da pequena burguesia e assalariados médios, o apoio ao bolsonarismo está espalhado por toda a sociedade e possui forte incidência em parcelas expressivas da classe trabalhadora.

Apesar de Bolsonaro não ter conseguido construir um partido próprio, recorrendo a diferentes “legendas de aluguel” do Centrão, o bolsonarismo se estruturou através de diversos “partidos”, como a malha de comunicação montada através das redes sociais, as muitas Igrejas Evangélicas que o apoiam e os “braços armados” do Estado (Forças Armadas e polícias).

Essa malha de organizações agrupa apoios e difunde um discurso ideológico que contém um “programa” para propaganda e um programa de fato. O programa de fato está implícito para seus dirigentes – governar para o grande capital, seja através de um governo que corrói por dentro as parcas garantias democráticas restantes do regime formalmente democrático-representativo implantado em 1988, ou mesmo através do fechamento desse regime, como o processo que levou ao 8 de janeiro de 2023 ilustrou. Já o “programa” da propaganda, que podemos entender como a ideologia da extrema-direita brasileira, possui vários pilares, entre os quais o forte componente “conservador”, reativo aos avanços do feminismo, do movimento negro, do movimento LGBTQIA+, com as palavras de ordem de combate à “ideologia de gênero” e as agitações eleitorais repetidas e bem-sucedidas da ameaça do “kit gay”, do “banheiro unissex” e da campanha “escola sem partido”. Tudo isso sendo associado a um suposto “comunismo” da esquerda. Nesse nível do discurso ideológico de guerra cultural, o papel do fundamentalismo religioso é decisivo. Há também uma outra parte dessa retórica, que é a do uso da violência como única arma eficiente contra o medo da violência. “Bandido bom é bandido morto”, mais polícia, mais prisão, armar o “cidadão de bem” e etc. são elementos desse plano discursivo, que encontram sua base estruturante no papel do “braço armado” do Estado.

Um terceiro elemento do arsenal ideológico neofascista no Brasil é o que tem gerado mais debate. Trata-se do alegado caráter antissistêmico, valorizado na retórica da extrema-direita. Ainda que saibamos que esse caráter antissistêmico é só retórica, isso não muda o fato de que ideologias movem multidões e encontram algum momento de verdade. Neste caso, o momento de verdade é desgaste de regimes formalmente democráticos que, em tempos de capitalismo neoliberal, possuem mesmo pouca capacidade de gerar conquistas de direitos, mesmo as mais parciais, para as maiorias exploradas e oprimidas. Quando Bolsonaro, que sempre foi parte do sistema, no sentido que atribuímos para a palavra, se apresentou como outsider, ele deu o mote do que seria “antissistema” para eles: “contra tudo isso que tá aí”, “a mamata vai acabar”… São ideias vagas, mas que aderem ao senso comum das massas. “O sistema”, na chave da extrema-direita é a “grande corrupção”, expresso na ideia de que “vocês estão na pobreza, ou ameaçados de chegar lá, porque eles roubam o que deveria ser seu”. “Eles”, são os políticos, mas sobretudo o Estado, corrupto. Por isso podem se apresentar como antissistema e ao mesmo tempo cultuar o neoliberalismo e o individualismo competitivo mais escrachado (o sistema econômico capitalista), pois do Estado só se pode esperar corrupção e, para sobreviver, a regra é cada um por si. Claro, sendo a retórica antissistema uma parte da ideologia da extrema-direita, ela é mais cativante para apenas uma parte do seu eleitorado, mas é decisiva para o setor mais mobilizado do bolsonarismo.

No seu conjunto, a ideologia da extrema-direita é bem-sucedida porque combina esses ingredientes na dose certa para cada público e tem os meios para difundir de forma segmentada essa retórica – internet, púlpitos, parcelas da mídia empresarial. Em parte, as tensões internas ao bolsonarismo nestas eleições podem ser explicadas a partir dessa dinâmica de recurso a diferentes discursos ideológicos, ecoando a partir de diferentes setores organizados e influenciando distintas frações da base mais ativa do bolsonarismo e de seu eleitorado.

Como responder a esse “sucesso” eleitoral e ideológico da extrema-direita pela esquerda? O debate pós-eleitoral entre intelectuais e militantes de esquerda parece preso a algumas armadilhas. Limito-me aqui a tratar daquelas postas no campo da esquerda socialista, pois as propostas de que as alianças/campanhas eleitorais (e o governo Lula) deveriam ir ainda mais “ao centro” (leia-se, abraçar abertamente o conservadorismo de direita) partem de setores que só os mais incautos repetidores do jargão do jornalismo empresarial poderiam chamar de “esquerda”.

A principal dessas armadilhas é a de limitar o debate sobre a disputa ideológica ao nível dos discursos eleitorais. Assim, para alguns, o erro da esquerda foi ter discursos de campanha muito moderados, abrindo o flanco para que a extrema-direita ocupasse o espaço discursivo antissistêmico. Polemistas, respondem que na atual correlação de forças desfavorável, o discurso mais “radical” afastaria ainda mais a base eleitoral almejada da esquerda. Nesses termos, a polêmica é superficial. A disputa de consciências que pode gerar resultados eleitorais distintos, mas, principalmente, que pode se utilizar dos momentos eleitorais para buscar alterar a correlação de forças sociais desfavorável, não se dá fundamentalmente em torno da maior ou menos radicalidade dos discursos de campanha.

No difícil período aberto pelo golpe de 2016, o PSOL cresceu em votações proporcionais e conquistas de mandatos, por ocupar uma posição de crítica e resistência mais contundente ao neofascismo, assim como por apresentar candidaturas que expressavam os legítimos anseios por representatividade das parcelas oprimidas da população, ocupando um espaço crescente junto aos movimentos de onde surgiram essas candidaturas.

No quadro da correlação de forças política marcada pela constante ameaça neofascista, fomos levados, corretamente, a táticas eleitorais de frente, na maior parte do país lideradas ou compostas pelo PT, maior partido de base social na classe trabalhadora e partido de Lula, único político que se mostrou capaz de derrotar Bolsonaro nas eleições, ainda que por pequena margem. Acontece que o PT, ocupando o governo federal, mesmo com o resultado relativamente fraco que obteve agora, voltou paulatinamente a crescer nas eleições proporcionais desde a vitória de Lula em 2022 e está retomando protagonismo em alguns movimentos em que o PSOL havia avançado no período anterior, possuindo instrumentos (ministérios, políticas públicas, etc.) para consolidar e avançar nessa retomada. Além disso, a questão da representatividade foi percebida não apenas pelo PT, mas pela generalidade dos partidos que compõem o campo governista, sendo difícil justificar apenas por esse argumento porque votar numa candidatura do PSOL e não do PT, ou do PSB, ou do PDT. Mesmo a direita está, a seu modo, respondendo à questão.

Caberá ao PSOL debater, no próximo período, como será possível, mesmo aplicando táticas de frente para barrar o fascismo, diferenciar-se o suficiente para não ser confundido com os demais partidos dessas alianças, especialmente com o PT. Para isso, a questão central não é fazer um discurso eleitoral mais ou menos radical, nem se postar sistematicamente como oposição ao governo Lula, mas sim, apresentar-se com autonomia e ser capaz de demarcar uma diferenciação programática em relação à lógica da conciliação de classes, ao mesmo tempo que disputamos a consciência da classe trabalhadora também contra a ideologia da extrema-direita. O que exige de nossas organizações discutir um Programa – não apenas eleitoral – que nos permita buscar um maior o enraizamento orgânico nas lutas e movimentos da classe trabalhadora, assim como aqueles contra as opressões.

A autonomia e diferenciação, em relação ao governo Lula, devem ser pautadas, sempre que necessário, por críticas e denúncias em relação às suas políticas concretas que contrariam um programa efetivamente de esquerda, ou seja, que contrariam os interesses concretos da classe trabalhadora, evitando, nesse campo, qualquer concessão às ilusões das ideologias reacionárias

Do que estamos falando? A autonomia e diferenciação, em relação ao governo Lula, devem ser pautadas, sempre que necessário, por críticas e denúncias em relação às suas políticas concretas que contrariam um programa efetivamente de esquerda, ou seja, que contrariam os interesses concretos da classe trabalhadora, evitando, nesse campo, qualquer concessão às ilusões das ideologias reacionárias. Um exemplo concreto, que gerou debates diante de políticas propostas pelo governo federal e reapareceu com força nas eleições, pode nos ajudar a colocar o problema.

As transformações em curso no mundo do trabalho combinam maior informatização no controle sobre a exploração de trabalhadores e trabalhadoras, com maior informalidade e precariedade das relações de trabalho (que os debates tentam captar com termos como uberização, capitalismo de plataformas, empreendedorismo digital, etc.). A resposta a esses processos por parte da direita e da extrema-direita reforça a ideologia do capital, de que essas novas formas de precarização estariam garantindo maior liberdade para quem trabalha, ou melhor, para quem empreende e seriam saídas superiores aos “empregos CLT”. Essa resposta dialoga com um sentimento real de descontentamento face a um mercado de trabalho em que os empregos regulares, mesmo os formais, em sua imensa maioria são sub-remunerados, na faixa de 1 a 2 salários mínimos, com todo o peso de chefias autocráticas, jornadas inflexíveis, horas-extraordinárias não-remuneradas e direitos cada vez mais reduzidos. A resposta do governo Lula para essa situação foi esboçada no malfadado PL da regulamentação do trabalho de motoristas de aplicativos, que criava uma nova categoria de relações de trabalho – “trabalhador autônomo por plataforma”, com a legalização da inconstitucional jornada de 12h de trabalho e o estabelecimento de um piso remuneratório baixíssimo. Programaticamente, o simples fato de que o PL propõe legalizar a jornada de 12h, quando nossa bandeira histórica é redução da jornada (sem redução do salário) já seria o suficiente para a rejeição e denúncia dessa proposta. Ainda assim, houve na esquerda socialista quem defendesse (total ou parcialmente) a proposta, e quem ficasse em dúvida, por temer criticar o governo e não saber como diferenciar-se ao mesmo tempo da extrema-direita nas suas críticas. Da mesma forma, durante a campanha eleitoral, diante do conhecido apelo do bolsonarismo entre parcelas de trabalhadores “por aplicativos” e outros grupos precarizados, houve candidaturas da esquerda encampando o programa neoliberal do “apoio ao empreendedorismo popular/periférico”, via financeirização e endividamento (empréstimos para empreender). Falta-nos o acúmulo programático necessário para estabelecer o diálogo com a consciência concreta desses setores da classe trabalhadora através da apresentação de propostas que garantam direitos e apontem para a superação precariedade que hoje é estruturante do mercado de trabalho capitalista. A audiência (inclusive eleitoral) da campanha contra a semana 6×1 ilustra o potencial desse debate. É esse tipo de proposta, mais que discussões em torno de radicalismos abstratos, que temos que fazer, de forma a fomentar e sustentar iniciativas de organização e mobilização nos setores da classe submetidos a novas (e velhas) formas de exploração.

Considerações semelhantes poderiam ser tecidas sobre a necessidade de apresentar propostas programáticas socialistas para o combate às opressões que se diferenciem do “neoliberalismo progressista” e suas armadilhas, oferecendo saídas globais que tornem a representatividade algo capaz de produzir mudanças efetivas, assim como se contraponham ao reforço do racismo, sexismo e heteronormatividade feito pelo conservadorismo neofascista. Diante do medo da violência, entranhada no cotidiano das parcelas precarizadas e racializadas da classe, precisamos ir além das tímidas propostas de “mais inteligência” no policiamento e temos que evitar cair nas armadilhas da demagogia fácil do aumento dos efetivos policiais, apontando as raízes sociais do problema e apresentando propostas antiproibicionistas e abolicionistas compreensíveis. Ou, para o tema, cada vez mais central e decisivo, do programa para o financiamento dos serviços públicos que garantam direitos fundamentais – saúde, educação, seguridade social – necessitamos com urgência delimitarmo-nos claramente dos ajustes fiscais ditados pela lógica da austeridade neoliberal, sejam eles verbalizados por Guedes ou por Haddad (mas sempre ditados pelos interesses do grande capital).

Para esses e tantos outros pontos do debate programático, possuímos certamente acúmulos históricos e devemos saber ouvir os movimentos que enfrentam e propõe soluções no dia-a-dia para esses dilemas contemporâneos, atuando em cada um e trabalhando por sua unidade. Ainda assim, é preciso reconhecer o déficit de sínteses e atualizações programáticas na esquerda socialista, para avançar em formulações capazes de esclarecer as raízes dos problemas, unificar e mobilizar forças sociais em torno de propostas que façam avançar um programa de transformações (essas sim) radicais, como elemento decisivo, ainda que não exclusivo, da alteração na correlação de forças.