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A culpa é mesmo do identitarismo?

Reprodução

Gabriel Santos

Gabriel Santos é nascido no nordeste brasileiro. Alagoano, mora em Porto Alegre. Militante do movimento negro e popular. Vascaíno e filho de Oxóssi

A culpa é minha, boto onde eu quiser
Homer Simpson

Finalizado o processo eleitoral, organizações políticas, a imprensa tradicional, partidos, intelectuais, todos começam a realizar as avaliações sobre o resultado e o desempenho. Fazem-se os famosos balanços.

Esse balanço eleitoral pode e deve ser feito em diversas e distintas esferas. Os balanços locais, avaliando os resultados a partir dos municípios. Os estaduais, vendo a luta política nos 26 estados da federação. E um balanço nacional, a partir da correlação de forças que se estabelece e buscando uma totalidade. Seria preciso também um balanço do campo político que sustenta o governo Lula, vendo como os partidos que compõem a frente ampla se saíram, levando em conta as contradições dentro desse campo, as disputas e conflitos no mesmo e possíveis rupturas. É necessário também um balanço da esquerda. Uma avaliação global de como o campo político que construímos se saiu na tarefa de acumulação de forças, disputa de hegemonia, e no confronto com nossos adversários nas urnas. E por fim, cada partido e organização deve realizar um balanço próprio sobre seu desempenho. 

No geral, os analistas de esquerda estão com duas posições. A primeira, minoritária, foca no crescimento eleitoral do PT e no número de prefeituras e vereadores que esse partido conquistou, em um processo de recuperação diante do avanço da extrema-direita. Valorizam também a vitória de prefeitos que são da base do governo Lula, e na derrota de candidatos ligados a Bolsonaro. A segunda posição na esquerda, que é maioria das análises, aponta a diminuição do espaço da esquerda na disputa eleitoral, crescimento numérico da extrema direita, surgimento de novos atores nesse campo e o crescimento de partidos do centrão, o que enfraquece as disputas estratégicas dentro do governo. 

Para os que afirmam a derrota eleitoral da esquerda, os motivos são diversos e as análises distintas. Existem os que buscam culpados nominalmente, em uma subjetivação extrema. Temos também os que afirmam que o problema foi a pouca radicalidade, sendo preciso ser mais e mais radical, ir mais e mais à esquerda (sabe-se lá até onde) e disputar um sentimento anti-sistema (seja lá o que isso quer dizer). O inverso também tem espaço. Alguns afirmam que era preciso ir mais ao centro. Dialogar mais com o momento de avanço da extrema direita, recuar algumas pautas e buscar acordos pragmáticos, cada vez mais e mais acordos. 

Dito isso, esse texto não busca fazer um balanço eleitoral. Mas sim fazer uma crítica a um argumento que se faz presente em qualquer uma das análises de três tipos descritos no parágrafo acima. Ou melhor, a crítica um fantasma que ronda o balanço eleitoral da esquerda, o fantasma do identitarismo.

Tem se tornado comum, quase que corriqueiro, textos e declarações que colocam o mal desempenho eleitoral da esquerda como culpa de um identitarismo. Quaquá, prefeito eleito de Maricá e vice-presidente nacional do PT, o professor best-seller Jessé Souza, Ricardo Capelli presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, entre outros, sujeitos totalmente diferentes, ergueram a voz para denunciar que a esquerda abandonou o discurso sobre classes sociais e trabalhadores, para falar para minorias, nichos, buscar uma classe média com pautas identitárias, que para estes críticos, nunca foram pautas da esquerda.

Afinal, o que seriam essas pautas identitárias? Aqui, podemos pressupor que seriam toda e qualquer reivindicação ligadas a luta por igualdade racial, ao feminismo e as LGBT´s. Como essas pautas atrapalham a esquerda? Como ajudam a extrema-direita? Por que o classismo foi supostamente abandonado? Os que acusam esse suposto identitarismo como pecado maior não costumam desenvolver respostas a essas perguntas.

Os erros táticos e estratégicos da esquerda brasileira, de partidos específicos, de campanhas, dão lugar a esse fantasma. Quem é o responsável pela pouca capacidade de intervenção e disputa política do governo Federal? Quem é o responsável pelo governo não consegue desenvolver um projeto econômico de desenvolvimento e crescimento estratégico do país? Quem impede que políticas públicas universais sejam implementadas e fortalecidas? Seria o identitarismo o responsável por esses problemas ou seriam a tática para a luta de classes que prioriza concessões ao capital, somado a dificuldade da conjuntura para a superação de privatizações e a escolha política de se ter um déficit zero ao invés de combater o tripé neoliberal?

O identitarismo se tornou um bode expiatório de uma parte da esquerda brasileira, que sem resposta para os dilemas da realidade, ou num autoengano para encobrir seus erros, prefere acusar a luta dos movimentos negros, de mulheres e lgbt´s, de responsáveis por derrotas.

O que é identidade?

A identidade é algo objetivo, vinculado a presença dos sujeitos no mundo, a materialidade concreta do ser social, e como esse ser se relaciona com o que está a sua volta, com a carga histórica desenvolvida antes de sua chegada e que ele absorve, e com sua relação consigo mesmo a partir de sua experiência.

Pessoas não-brancas são pensadas a partir de sua identidade. No momento, que eu, autor desse texto, um homem negro, cheguei ao mundo, já era lido e pensado enquanto uma criança negra, mas que fosse um recém nascido. Na escola, os estereótipos, as imagens de controle, que moldam a visão sobre um jovem negro me atingiam, independente deu ter noção ou não do que seria ser um sujeito negro. Portanto, a identidade se fez presente em minha vida, assim como na de outros negros, mesmo que eu não pensasse ou me visse a partir dela.

A identidade é um marcador social, um fato, mas também é uma ideologia, e como ideologia não pode ser entendida nem explicada por si mesma. As identidades são frutos das relações históricas e só podem ser entendidas, e portanto, pensadas, se olharmos através das relações sociais que as ergueram. No mundo do capital, essas relações sociais têm haver com as instituições, posições econômicas, movimentos estruturais que servem para alimentar e dar vida ao próprio capital. 

Uma identidade é formada a partir da necessidade de um grupo social se afirmar diante de outro. Essa afirmação parte da compreensão da existência de um eu e de um outro. Esses dois polos são construídos com objeção e adversidade entre si. A identidade do eu é construída a partir da negação da identidade do outro. O eu é aquilo que o outro não é. São construções e identidades complementares na medida que são opostos, e se opõem na medida que se complementam. Essa criação é portanto constante, visto que esses polos passam a ser opostos mas estão sempre em diálogo, troca e movimentação.

Na sociedade moderna, um mundo colonial estruturado pelo modo de produção capitalista, as identidades além de sofrerem essa lógica binária de oposição, também são hierarquizadas. Logo, as identidades são sistemas de Poder. Poder, entendido como capacidade de um grupo social impor por meio da força ou ideologia, seu domínio sobre outro. Assim, as identidades surgem para hierarquizar e estruturar um sistema de controle social, onde determinados grupos têm poder político e econômico sobre outros. 

Se cria na sociedade colonial um sujeito universal, e sujeitos que passam a serem vistos como “outros”. O universal sendo o homem branco, e esse “outro” sendo os sujeitos racializados, ou mulheres e lgbts. É memorável a elaboração de Frantz Fanon: o homem negro antes de ser um homem ele é um negro. 

Diante dessa marcação como “outro”, grupos de identidades oprimidas, passaram a reivindicar sua identidade histórica como membro desses grupos para buscar políticas para superar sua condição de subalterno. De tal forma, que a afirmação da identidade passa a ser uma movimentação tática positiva. Exemplos históricos não faltam, vamos a dois: nas colonias, a afirmação de uma identidade nacional para formar sentimento de luta e combate aos colonizadores e ao imperialismo; no movimento negro com a afirmação da negritude como processo de luta contra a desigualdade racial. 

A afirmação da identidade pode sim ser positiva. Eu sei quem sou, logo existo, logo posso lutar. Utilizando esse pensamento para a questão racial, podemos dizer que o negro quando assume sua identidade enquanto sujeito, o faz na movimento de deixar de ser negro em si (determinado por outros), para se tornar negro para si (um posição política consciente). 

Por uma crítica a armadilha da identidade: o que é o identitarismo

Primeiro dissemos que o identitarismo muito pouco ou nada tem relação com o resultado eleitoral da esquerda nestas eleições. Segundo, afirmamos que as identidades são fruto de um processo histórico. Aqui, queremos apontar outra ideia, de que uma crítica ao identitarismo é necessária. Sendo necessário separar identidade de identitarismo. Podemos afirmar que o identitarismo é uma ideologia que deve sim ser combatida, apesar da esquerda não saber fazer isso, já que não sabe identificá-lo.

O perigo do identitarismo se dá quando a identidade se converte em armadilha, ou seja, quando ficamos presos a ela, a vemos de forma estática, e ela acaba por se transformar em uma política que alimenta a si mesmo. Isso seria uma política de identidade ou identitarismo. 

O identitarismo não é levar em conta as identidades ao se elaborar políticas públicas, ou táticas eleitorais. Como acusam e confundem, propositalmente ou não, alguns dirigentes e intelectuais. 

O identitarismo seria enxergar a própria identidade como um fator externo às relações sociais. Desse modo, tanto a crítica de Quaquá e de Jessé sobre o identitarismo, são nulas, porque elas não enxergam a identidade como um marcador social presente nos sujeitos que alegam como centrais da política: trabalhadores. Como se a classe trabalhadora não tivesse gênero e raça. Estes críticos, assim como tantos outros, também não conseguem enxergar que eles mesmos carregam uma identidade própria, e ela está presente na origem de suas críticas.

Voltando… se afastada das relações sócio-históricas que a erguem a identidade passa a ser origem e fim de si própria, ao mesmo tempo. Impedindo de se chegar ao confronto com aquilo que as criam e colocam identidades subalternas em um sistema hierárquico. Se torna, portanto, através do método identitário impossível chegar a uma totalidade das relações sociais, e a uma aproximação da verdade histórica.

A identidade serve como um apelo concreto. Uma aproximação ao mundo real para melhor enxergá-lo e superar uma certa abstração em demasiada abstrata. Se Marx está certo e é preciso irmos do abstrato em direção ao concreto, a identidade auxilia nessa movimentação, e também serve como potencial crítica ao próprio identitarismo 

O identitarismo acaba por reforçar as marcas da colonialidade e não atuar por uma mudança estrutural efetiva. Vale sempre destacar que no mundo moderno, um negro só se torna um negro por conta da hierarquia de raças, ou seja, por conta do racismo, não por conta de sua ancestralidade ou tom de pele. Um branco só se torna um branco, por conta do mesmo racismo. E não existe racismo sem a criação de estruturas sociais que deem vida a esse contínuo processo de transformar seres humanos em seres racializados para hierarquiza-los. 

A afirmação da identidade do oprimido tem capacidade para confrontar o imperativo colonial, e afirmar a origem das próprias identidades, invertendo o mesmo, e afirmando o ser negro, ou seja, a negritude do sujeito racializado, como algo positivo. O identitarismo acaba por transformar essa afirmação positiva em uma prisão, uma prisão ahistórica, fora do tempo e das relações sociais. 

Transformar a ideia de sujeitos racializados como sendo em essencialmente negros, ou seja, sempre foram assim: negros! E sujeitos brancos em essencialmente brancos, criando assim conceitos a margem das relações sócio-históricas que explicam o desenvolvimento da ideia de raça e de racismo, reduzindo a uma essência comportamental de uma suposta branquitude (novamente em essência), é algo que aprisiona as possibilidades de transformação política e mostra as confusões e limites desse identitarismo.

O identitarismo, essa prisão ideológica, mental e também política, impede que se consiga criar uma crítica ferrenha, e portanto uma ação consequente, buscando a transformação e superação do sistema que cria as próprias identidades para hierarquizá-las. Termina assim fazendo com que o sujeito negro, ou a mulher, ou a lgbt, seja sempre preso a estes corpos e identidades, convivendo com a marca colonial, e se torne no máximo um sujeito negro individualmente mais bem sucedido diante da desgraça que o mundo oferta aos seus iguais.

Mas se tudo tem uma origem social e histórica, o advento do identitarismo também o tem. Podemos identificar que as mudanças geradas via reestruturação produtiva, crise do modelo fordista, advento do neoliberalismo e da dita globalização, fez com que a sociabilidade ligado ao Estado de Bem Estar social nos países de capitalismo central entrasse em colapso. Se esse Estado de Direito falhou em levar direito e democracia para a identidades excluídas do que seria o padrão, vide negros e minorias étnicas nesses países mas principalmente a relação desse Estado de Bem Estar com as colônias e seu papel imperialista, com seu fim, entra em crise também o suposto homem universal, acontece uma explosão de identidades. Essas identidades, que foram recusadas pelo Estado de Bem Estar em nome de um universalismo, agora são incapazes de serem absorvidas pelo Estado neoliberal, gera um movimento constante de crise, onde elas passam a se fechar em si mesmas, buscando uma melhor localização dentro da lógica predatória do capitalismo atual.

Aqueles que criticam o identitarismo, muitas vezes criticam a própria afirmação da identidade, aqui vista como algo positivo. Eles não conseguem separar identidade e identitarismo e buscam algo que é impossível: restabelecer a universalidade burguesa presente nos anos do Estado de Bem Estar social, além de trabalhar com sujeitos abstratos, numa inversão da lógica marxista.

Por fim, para alguns dirigentes de esquerda e intelectuais, é mais fácil acusar tudo de identitarismo, pós-moderno e vindo da classe média, ao invés de buscar uma formulação política capaz de responder às demandas de nosso tempo histórico. 

A esquerda não pode cair em dois erros semelhantes. O primeiro, de somente falar de identidade, buscando apenas mais direitos e acessos dentro de um sistema desigual. O segundo seu oposto, o de se recusar a falar sobre identidades, pelo motivo qual seja. Uma classe trabalhadora coesa e universal, só existe na mais profunda abstração. Dialogar com a classe trabalhadora e buscar entender seus problemas, é buscar entender como ela se reproduz, onde ela se reproduz e como é que essa classe de cor, gênero e identidade vive em seu cotidiano.

A transformação política deve encarar as identidades como parte das relações sociais que moldam a formação econômica social brasileira. Elas são um elemento concreto da materialidade, e devem servir para a organização estratégica de nosso povo, e aplicação da tática política no dia a dia, nas lutas eleitorais e na luta cotidiana de busca por hegemonia.