o começo deste século eu estava inscrito em um importante congresso internacional na minha área de pesquisa em física. Essa condição me habilitava a ser parecerista para avaliar trabalhos submetidos a apresentação no evento. Coube-me avaliar um trabalho enviado por um pequeno grupo de coautores de uma universidade da Faixa de Gaza. Não lembro agora qual, muito menos recordo os nomes dos que assinavam o manuscrito. O meu parecer foi bastante desfavorável e o trabalho acho que foi recusado. Era, pelo que me lembro, um mero exercício, ainda que sofisticado, de, essencialmente, reprodução de resultados já conhecidos.
O escopo desses congressos era o de compartilhar entre a comunidade científica especializada os resultados de pesquisa na assim chamada “fronteira do conhecimento”. Diga-se de passagem que a maioria das contribuições apresentadas nesses congressos encaixavam-se em uma faixa muito ampla, vaga e benevolente dessa tal fronteira; mas julguei que a contribuição dos colegas da Faixa de Gaza estava, mesmo assim, aquém dessa fronteira. Orgulhoso por eu ter um trabalho aceito para apresentação e ainda mais alçado ao status de parecerista e guardião da qualidade do evento, acreditei ter prestado um bom serviço. Essa crença desvaneceu-se após poucas cervejas, ainda nos intervalos entre as sessões de palestras.
Primeiro lembrei: onde, afinal, este brasileiro que vos escreve estava na fila do pão? Depois eu pensei que poderia ser um pouco mais subversivo: elogiar o trabalho (afinal parecia correto) e com isso tentar que pelo menos um dos autores conseguisse financiamento para ir ao congresso e, quem sabe, nos encontraríamos e, no meio de uma conversa, poderíamos discutir possibilidades de aproximação à tal fronteira com as ferramentas que haviam desenvolvido ali, naquela difícil faixa à beira do Mediterrâneo. Quem sabe até tentar uma colaboração conjunta. Hoje penso assim, mas na época, com meu pãozinho embaixo do braço, sentia-me orgulhoso de ter acesso à padaria de uma certa elite acadêmica. No entanto, congressos deveriam, além de sua excelência, cuidar da inclusão.
Anos depois li um relato sobre um estudante palestino que foi buscar o doutorado em uma Universidade do Cairo, pois não havia doutorado em física em Gaza – apenas a Universidade Islâmica de Gaza [fotos acima] oferecia um mestrado na área. Imagino então que os que eu barrei naquele congresso fossem dessa universidade. E o arrependimento da minha decisão aumentou, decisão tomada na total ignorância das condições locais e da disposição de luta desses palestinos de tentar romper um círculo vicioso de isolamento para o qual, infelizmente, acabei contribuindo.
Essa história pessoal agora faz parte do meu cotidiano de reminiscências com o massacre que se perpetra naquela faixa às margens do Mediterrâneo e é preciso provocar agora um exercício, não de física, mas de empatia, alteridade e solidariedade. Em tema que imagino ser caro aos leitores e leitoras que, de uma forma ou de outra, transitam ou transitaram pelas universidades. Com todos os problemas políticos e financeiros que nossas instituições enfrentam ou enfrentaram recentemente, com o muito barulho por nada pela queda no número de artigos publicados nos últimos dois anos, junto com a diminuição do número de pós-graduandos, é preciso lembrar: as doze universidades da Faixa de Gaza, se não foram totalmente destruídas, estão seriamente danificadas. Por bombardeios. As justificativas das Forças de Defesa de Israel é que estariam fabricando armas para o Hamas ou abrigando membros dessa organização. Para mim, trata-se de um clichê fácil e surrado de tanto que já foi utilizado ao longo da história. As universidades abrigavam partes da população, refugiadas devido a destruição de seus lares. Destrói-se o que dá abrigo aos que sobrevivem às destruições de seus lares.
Não faltam fontes para verificar a tragédia, facilmente obtidas em buscas pelo Google. Uma das listas dos danos em cada universidade é de maio de 2024, com uma atualização parcial em setembro. Voltando ao mês de maio deste ano, foi criado o Comitê de Emergência das Universidades de Gaza pelas três maiores universidades públicas do país: Universidade Al Aqsa, Universidade Al Azhar e a Universidade Islâmica de Gaza, que é a mais antiga, criada em 1978. Vale reproduzir as aspas que abrem a declaração de criação do comitê: “Nós construímos essas universidades em barracas com a ajuda de nossos amigos e vamos reconstruí-las novamente”. Com aulas (parece que ainda não) em barracas, já que os prédios estão destruídos. Se a Universidade Islâmica é a mais antiga, a mais recente, fundada em 2014, é a Al Israa, ocupada pelas forças israelenses por mais de dois meses e depois com vários de seus prédios postos abaixo por explosivos. Incluindo o Museu Nacional, com inauguração prevista para 2024, marcando a efeméride dos dez anos da instituição de ensino superior. O museu incluía 3 mil artefatos raros, cobrindo os períodos islâmico, romano e palestino. Posso emendar aqui no meio do texto que o que está sendo feito é a destruição do passado, presente e futuro de Gaza.
O futuro refere-se ao êxodo, quando possível, de acadêmicos, afinal em abril deste ano contabilizava-se a morte de 5.479 estudantes, 95 docentes universitários e 261 professores de ensino médio e fundamental, além de 7.819 estudantes e 756 professores feridos. A fonte citada chama isso de academicídio. No ensino pré-universitário o cenário é pior: ao menos 84% das escolas necessitarão de “reconstrução total ou extensas reformas”, antes das aulas poderem ser retomadas. A fonte de informação é do mês de setembro de 2024[v]. Em resumo, até agora um ano inteiro sem aulas. Para os cursos universitários, sem aulas presenciais também, um paliativo é oferecido pelas universidades da Cisjordânia: pelo menos algumas aulas remotas chegam aos estudantes de Gaza, quando a internet funciona (fonte acima). Os relatos da tragédia aparecem em outras inúmeras fontes, ligadas a associações profissionais ou na grande imprensa internacional (“uma guerra contra a educação”)[vii] [viii], para mencionar apenas algumas, além das citadas acima. Convido o leitor e a leitora a vasculhá-las e imaginar o que fariam se sobrevivessem a essa situação.
Os danos na educação levarão anos, senão décadas, para serem sanados. Em relação ao presente temos a destruição de todas as infraestruturas junto com os mais de 40 mil mortos até agora. Lembrando do museu destruído, mencionado acima, a guerra é também contra o passado. Destroçou o futuro, arrasando a educação. Uma educação a ser reconstruída ao abrigo de barracas. Quando a guerra terminar.
Comentários