“Quanto vale o sal de nossas lágrimas?”, indaga uma das frases escritas nos muros da região de Maceió (AL) que foi transformada em território fantasma por conta da exploração criminosa de sal-gema pela empresa Braskem. Em dezembro de 2023, houve o rompimento de uma das 35 minas de exploração operadas pela companhia petroquímica na capital de Alagoas. O desnivelamento do solo comprometeu 20% do território da cidade, acometendo cinco bairros (Pinheiro, Bom Parto, Mutange, Bebedouro e Farol). A mineração foi responsável pela criação de crateras subterrâneas, que abriram rachaduras em ruas, casas e prédios, atingindo 60 mil pessoas. O caso é caracterizado como o maior crime ambiental em solo urbano no Brasil.
As advertências em relação aos riscos de explorar sal-gema na região vinham desde as primeiras empreitadas na área, que remontam à época da ditadura. Na década de 1980, professores da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), ativistas e moradores da região já denunciavam os riscos ambientais de exploração do insumo em Maceió. Mais recentemente, em 2010, já estavam publicadas as primeiras pesquisas que comprovavam a possibilidade de ocorrência de uma catástrofe na cidade, estudos amplamente ignorados pelo grupo empresarial.
Enquanto as famílias obrigadas a sair de suas moradias choram e clamam por justiça, os negócios da Braskem “vão bem, obrigado”. O conglomerado fechou 2023 com um patrimônio líquido de R$ 3,2 bilhões, figurando como a 22ª maior empresa do Brasil e o maior grupo econômico petroquímico da América Latina. Além disso, o conglomerado possui subsidiárias nos Estados Unidos, Europa e outros países latino-americanos. Essa combinação entre crime, impunidade e rentabilidade só pode ocorrer com um acúmulo significativo de poder político e econômico.
Como foi possível tamanha concentração e centralização de capitais? Qual a natureza de tanto poder concentrado? Como a 6ª maior empresa petroquímica do mundo historicamente se constituiu a ponto de ser responsável por uma das maiores catástrofes ambientais do país e, no entanto, continuar operando sem grandes arranhões à sua reputação e tampouco à sua lucratividade?
Neste momento de “descomemoração” do 60º aniversário da última ditadura brasileira, cabe destacar alguns pontos importantes ocorridos ao longo do regime que nos ajudam a compreender um pouco mais da trajetória dessa empresa monumental e atroz.
A petroquímica entre a repressão e o planejamento econômico: um segmento produtivo consolidado ditatorialmente pela Petrobras
As políticas econômicas da ditadura foram decisivas para a consolidação do segmento petroquímico brasileiro. Para observar a importância deste setor produtivo para o regime basta observar, por exemplo, que as indústrias petroquímicas figuraram como um dos eixos prioritários do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) do governo de Ernesto Geisel (1974–1979).
Durante a ditadura, foram construídos os três principais polos petroquímicos do país, o de Capuava (SP), o de Camaçari (BA) e o de Triunfo (RS), inaugurados em 1972, 1978 e 1982, respectivamente. A implantação dos complexos produtivos teve os incentivos estatais como principal instrumento de financiamento, com aportes concedidos em âmbito federal e regional. Isenções fiscais, amortecimento de tributos, barreiras à importação de produtos do ramo e incentivos financeiros através dos bancos públicos — com destaque para o BNDES — constituíram as bases para a edificação daqueles empreendimentos.
A implantação e o funcionamento desses mega projetos da ditadura foram sedimentados em cima de perversidades típicas do período.
Conforme consta em dissertação de mestrado de Darliton Paranhos, o sistema repressivo da Petrobras e das demais empresas que constituíam o polo petroquímico baiano perseguia rotineiramente os operários, sobretudo aqueles com atuação política. As arbitrariedades abrangiam infiltração nos sindicatos da categoria, colaboração das empresas com as entidades policiais e inserção dos nomes de trabalhadores em listas sujas.
Além disso, conforme sugere o jornalista João Lara Mesquita, o polo petroquímico de Capuava (SP) parece também se constituir enquanto um “vale da morte”. A metáfora é geralmente utilizada para se referir à poluição das empresas químicas de Cubatão (SP) nos anos de 1980, que implicava casos sérios de saúde à população local, como anencefalia e malformação fetal.
A entidade mobilizada para capitanear a expansão do segmento petroquímico ao longo da ditadura foi a Petrobras. É evidente que há uma tendência natural de proximidade entre a estatal do petróleo e as indústrias petroquímicas, haja vista que este setor necessita de insumos básicos como a nafta e o gás natural, produtos gerados pelas refinarias petrolíferas que a Petrobras detinha o monopólio.
Entretanto, a Petrobras não atuou apenas como mera fornecedora de matérias-primas para as indústrias petroquímicas. Em 1967, a estatal criou a sua primeira subsidiária, a Petrobras Química S.A. (Petroquisa), que atuava, principalmente, através de associações de propriedades com empresas privadas em empreendimentos do ramo petroquímico.
Nos três polos petroquímicos a Petroquisa controlava a central de matérias-primas (primeira geração), sendo a principal fornecedora de insumos básicos (sobretudo nafta e gás natural) para as empresas atuantes na segunda e terceira gerações. Geralmente, grande parte das companhias atuantes nos polos reunia capitais estatais (através da Petroquisa), de empresas locais e de grupos privados estrangeiros.
Em suma, as políticas econômicas da ditadura, a Petrobras e suas subsidiárias foram as principais impulsionadoras da ampliação do segmento petroquímico no país. Nesse movimento, as fronteiras entre público e privado estiveram profundamente borradas.
As fronteiras borradas entre o “público” e o privado: a Odebrecht e as políticas petroquímicas da ditadura
Atualmente, a estrutura de propriedade da Braskem é dividida entre a Novonor (ex-Odebrecht) (50,1%) e a Petrobras (47%), sendo o restante das ações ordinárias pulverizado na Bolsa de Valores. Essa parceria vem de longa data. Os elos entre a estatal petrolífera e a gigante da construção pesada foram selados durante a ditadura inaugurada em 1964.
Ao contrário do que possa parecer, na ditadura, a estatal petrolífera e suas subsidiárias não foram geridas por “tecnocratas”, leia-se, agentes da burocracia estatal supostamente alheios aos interesses particulares de segmentos sociais específicos. A trajetória da maioria daqueles que ocuparam a presidência, a diretoria e o conselho da Petrobras(civis e militares) ao longo do regime denuncia suas estreitas relações com as empresas privadas. Tais agentes saíam de seus postos na petrolífera — estando munidos, portanto, de informações secretas e/ou privilegiadas — e iam, pouco tempo depois, para a cúpula administrativa de empresas privadas atuantes em ramos correlatos, sobretudo no segmento petroquímico. A passagem de agentes do alto escalão da estatal para companhias particulares, e vice-versa, como previsível, gerou significativos beneficiamentos econômicos às últimas.
A área em Maceió onde ocorreram as fissuras e instabilidades do solo em dezembro de 2023 foi originariamente explorada pela empresa Salgema Indústria S.A., criada em 1971. A companhia foi fundada sob propriedade do governo de Alagoas e, no decurso da ditadura, foi sendo parcialmente privatizada.
A Odebrecht, que tradicionalmente opera na área da construção pesada, ampliou as suas atividades para a petroquímica no final da década de 1970. O “privilégio” de atuar em área alheia àquela de origem só foi possível devido ao crescimento estratosférico da empresa ao longo do período ditatorial.
Como retratado no livro escrito pelo historiador Pedro Henrique P. Campos, “Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras na ditadura civil-militar (1964–1988)”, vencedor do prêmio Jabuti em economia em 2015, a empreiteira baiana, que já era gigante em 1964, catapultou ainda mais os seus negócios ao longo do regime. Isso se deu, principalmente, pelo fato de seus agentes e de suas agências de ação política estarem organicamente vinculados à construção das políticas da ocasião, conseguindo habilitar dispositivos estatais que estimulavam e protegiam os seus interesses. Ou seja, a Odebrecht e as demais grandes empreiteiras de obras públicas não apenas apoiaram a ditadura, mas foram peças-chave para a sua construção.
É indispensável destacar que a Odebrecht não foi a única grande empresa que se meteu em áreas alheias à sua “atividade-mãe”. Diversos grupos econômicos se inseriram no promissor ramo petroquímico, como, por exemplo, a Mitsubishi, originariamente do ramo de transportes e mineração, e a Suzano, da área de papel e celulose. Mas talvez as companhias que se inseriram na petroquímica e que tiveram os seus negócios mais bem-sucedidos tenham sido o Grupo Ultra — que tinha Hélio Beltrão, ex-ministro do Planejamento e signatário do AI-5, em seu alto escalão — e as empreiteiras de obras públicas, com destaque para a Odebrecht.
Em relação à expansão do segmento no Nordeste, em 1978 foi criada a Nordeste Química S.A. (Norquisa). A nova empresa foi fundada para comprar parte expressiva da propriedade da Companhia Petroquímica do Nordeste S.A. (Copene), uma empresa estatal. Já no final da década de 1970 a Norquisa passou a ser presidida pelo ditador Ernesto Geisel, que saiu da presidência do país imediatamente para o cargo de chefia no conglomerado petroquímico.
O conselho administrativo da Norquisa era composto pelos patriarcas familiares dos sete grupos privados proprietários, dentre eles, Norberto Odebrecht. Além do magnata da construção pesada, o conselho era composto por Ângelo Calmon de Sá (grupo Econômico), Carlos Mariani Bittencourt (grupo Mariani), José de Freitas Mascarenhas (grupo Rocha Miranda), Max Feffer (grupo Suzano-Feffer), Pery Igel (grupo Ultra-Igel) e Ralph Rosemberg (grupo Cevekol-Rosemberg). A empresa presidida pelo ex-ditador e/ou aquelas representadas em seu alto escalão se tornaram as principais proprietárias do segmento petroquímico na década de 1990.
No início da década de 1980, a Norquisa e a Copene participaram do processo de privatização da Salgema, que era a empresa central do polo cloroquímico de Alagoas, adquirindo participações minoritárias no empreendimento. Em todos esses grupos econômicos (Norquisa, Copene e Salgema) a Petroquisa também detinha parcela importante da propriedade.
Impulsionados pelos incentivos fiscais e creditícios, pela associação com a Petroquisa e pela intensa exploração e repressão aos trabalhadores, os grupos privados do ramo petroquímico tiveram a ditadura como aparato fundamental de seu crescimento. A partir do final da década de 1980, com a crise do regime, passou a não mais ser interessante às empresas privadas do ramo manter parcerias de propriedade em negócios capitaneados pela estatal do petróleo. De modo distinto, os empresários do segmento iniciaram um movimento em prol da privatização do setor.
Após ter conquistado importante “musculatura” com o regime, os grupos econômicos privados estavam aptos para “nadar de braçadas” com as privatizações do segmento, intensificadas na década de 1990. Neste período, a Petroquisa vendeu, total ou parcialmente, parte expressiva de suas ações ordinárias, transferindo para a iniciativa privada sua participação em 27 empresas petroquímicas. As reorganizações societárias implicaram a concentração do controle de propriedade nas mãos de corporações como a Odebrecht, Unipar, Grupo Ultra, Suzano, Norquisa e outras.
Entre as décadas de 1990 e 2000, o grupo Odebrecht passou a ser o maior proprietário da Copene e da Salgema e, em 2002, fundou a Braskem, com o grupo Mariani, companhia que passou a figurar como a maior empresa do setor no país. A Petrobras também participou da fundação do novo grupo econômico, concentrando parcela expressiva das ações, ainda que de forma minoritária.
Os duros fios que ligam o presente e o passado ditatorial
Diferentemente de outros países da região, como a Argentina, por exemplo, a transição da ditadura para a democracia no Brasil foi construída “pelo alto”. Ainda que as mobilizações urbanas e camponesas do final do período autoritário tenham cumprido importante papel no tensionamento do regime, a abertura para a democracia limitada foi construída, fundamentalmente, pelos militares e pelas classes dominantes que ocupavam o Estado naquele momento. A Lei da Anistia (lei nº 6.683/1979) é um exemplo paradigmático desse processo transitório efetuado pela conciliação, haja vista que estabeleceu o “perdão” tanto às vítimas e aos que lutaram contra a ditadura — que, em sua grande maioria, já haviam sido presos, torturados e/ou exilados — quanto aos empresários e militares que perpetraram o terrorismo de Estado e construíram as políticas do período.
Quando não se acerta as contas com a ditadura, as adversidades deste passado tendem a revitimizar as classes trabalhadoras em novas roupagens. Um dos aspectos desse processo pode ser percebido a partir do retorno de oficiais militares em posições estatais de poder.
A remilitarização do Estado brasileiro foi significativamente intensificada no governo de Jair Bolsonaro. O caso da Petrobras, segunda maior proprietária da Braskem, é sintomático nesse sentido, haja vista que as agências responsáveis pela questão petrolífera não saíram incólumes do processo de militarização.
Em janeiro de 2019, o almirante-de-esquadra Bento Costa Lima de Albuquerque Jr. foi escolhido por Jair Bolsonaro para assumir o Ministério das Minas e Energia — pasta que a Petrobras é subordinada. O posto não era ocupado por um militar desde a gestão de César Cals (1979–1985), durante a presidência do ditador João Figueiredo.
A Petrobras também foi submetida a um inédito processo de militarização desde a ditadura. Após sair do ministério da Defesa com o fim do governo Temer e presidir a Itaipu Binacional entre 2019 e 2021, o general da reserva Joaquim Silva e Luna foi inserido na presidência da estatal do petróleo, permanecendo no posto por um ano (abril de 2021 a abril de 2022).
Ainda sobre a Petrobras, Eduardo Bacellar Leal Ferreira, contra-almirante da reserva da Marinha, foi escolhido para presidir um dos cargos mais importantes da estatal no início de 2019, a presidência do conselho de administração. O militar permaneceu no posto até março de 2022, quando renunciou, alegando que precisava de “mais tempo com a família”. No entanto, no mesmo mês, Eduardo Bacellar foi indicado pela Petrobras para assumir a vice-presidência do conselho de administração da Braskem. No momento em que houve a catástrofe decorrente da exploração criminosa de sal-gema em Maceió, em dezembro de 2023, Eduardo Bacellar ainda ocupava o posto no alto escalão da empresa petroquímica, vindo a sair do mesmo no primeiro semestre de 2024.
As razões de se colocar militares sem competência na área e que nem mesmo possuem articulação política — como rotineiramente acontece, por exemplo, com ignorantes que assumem cargos ministeriais por fazerem parte de determinado segmento político-partidário — ainda estão por ser esclarecidas pelos donos do poder. A partir do que constam nos escritos daqueles que se dedicam à relação de membros das Forças Armadas com a política, é possível conjecturar que esse movimento se deu pela autoestima exacerbada dos militares de se perceberem como detentores da sapiência técnica e como os paladinos da anticorrupção, o exato oposto, supostamente, dos civis. Apenas para citar um exemplo, a desastrosa gestão da Saúde pelo general Eduardo Pazuello durante pandemia confere um xeque-mate a essa argumentação.
No documentário “Aqui fomos felizes”, dirigido por Marlom Meirelles, são expostos os tristes relatos de ex-moradores das regiões afetadas pela exploração da Braskem. Maria Rosângela, uma das entrevistadas, declarou que sua mãe, idosa, sucumbiu perante a depressão de não mais possuir um lar. Em outro relato, Sofia Melo realça o desgosto ocasionado pela total perda de identidade com o território; uma profunda consternação em viver.
Em uma das cláusulas compensatórias firmadas entre a Braskem e o município de Alagoas, está aquela que indica que, após a indenização, a empresa petroquímica passa a ser dona dos imóveis que 60 mil pessoas foram obrigadas a deixar para trás.
Além disso, há muitas queixas no que tange aos ressarcimentos, que são ínfimos. Em matéria do Brasil de Fato, há a informação de que a Braskem está concedendo apenas R$ 40 mil por família afetada.
Em alusão à indagação que abre este texto, cabe enfatizar: quanto vale a desestabilização dos modos de vida de 60 mil pessoas, afetadas por conta da avidez de uma empresa de seguir enchendo as burras de dinheiro de seus acionistas? Quanto vale as consequências materiais e subjetivas, como as de Maria Rosângela e Sofia Melo, acima retratadas; dissabores esses que estão longe de ser individuais? Quanto vale a completa condenação de 3% da área urbanizada de um município?
“Quanto vale o sal de nossas lágrimas?”
Para saber mais:
- Livro organizado pelos historiadores Pedro Campos, Rafael Brandão e Renato Lemos retrata diferentes aspectos sobre a estreita relação entre a ditadura e o empresariado brasileiro
- Livro co-organizado pelo autor deste artigo aborda a relação entre a Petrobras, a ditadura e a repressão aos trabalhadores da petrolíferas
Textos sobre as empresas petroquímicas durante a ditadura:
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