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A esquerda precisa dizer seu nome, mas não pode ficar falando sozinha

Por Glória Trogo e Henrique Canary

O demônio sentado, 1890. Mikhail Vrubel

Eu sofro: disso alguém deve ser culpado.
Friedrich Nietzsche

Derrotas têm efeitos contraditórios. Uma vez assimiladas, podem servir como um importante aprendizado e promover o avanço do movimento. Mas essa assimilação nunca é automática. Por isso, o resultado imediato das derrotas é a desorganização do pensamento, a confusão, a desmoralização e, em casos extremos, a paralisia. Diante das derrotas, surgem as explicações rápidas e fáceis, elaboradas de antemão. Surgem os engenheiros de obras prontas, os profetas do passado. E começa a busca pelos culpados.

Em nossa opinião, tratou-se de uma vitória da extrema-direita. A imprensa corporativa faz de tudo para apresentar o ocorrido como um triunfo do centrão, mas essa é uma análise instrumental. Seu objetivo é mascarar as relações do centrão com a extrema-direita, abrindo assim mais espaço para a formação da grande frente antiesquerda de 2026.

A profunda subjetivização da política, resultado da derrota histórica que foi o colapso da União Soviética, acrescenta ainda mais força a esse mecanismo. Tenta-se explicar as derrotas não mais pelo jogo de forças entre as classes e partidos, mas unicamente pela subjetividade. O voluntarismo é uma marca do nosso tempo. Posso tudo. E se não posso, é preciso encontrar os responsáveis.

A evidente derrota sofrida pela esquerda nessas eleições levantou todo tipo de avaliação. Em nossa opinião, tratou-se de uma vitória da extrema-direita. A imprensa corporativa faz de tudo para apresentar o ocorrido como um triunfo do centrão, mas essa é uma análise instrumental. Seu objetivo é mascarar as relações do centrão com a extrema-direita, abrindo assim mais espaço para a formação da grande frente antiesquerda de 2026. O exemplo mais categórico dessa empreitada é o esforço (que tem grande chance de sucesso) da mídia por apresentar uma figura tosca como Tarcísio de Freitas como um moderado e até democrata, e não como o que ele verdadeiramente é: um produto genuíno do bolsonarismo mais torpe (vide sua “revelação” sobre o “Salve” do PCC no dia da eleição).

Para começar, analisemos as condições em que ocorreram essas eleições. Alguns tópicos podem ser rapidamente levantados: a) Controle por parte do Congresso sobre a distribuição do orçamento em um sistema (na prática) semiparlamentarista, o que levou ao alto índice de reeleição dos prefeitos que receberam emendas ao mesmo tempo em que o Governo Federal segue amarrado pelo Arcabouço Fiscal que ele mesmo criou; b) Avanço e consolidação da precarização do trabalho, com uma massa gigantesca da população jogada na selva da sobrevivência individual e do “empreendedorismo”, o que levou à ampla disseminação da ideologia da prosperidade e à ideia de que direitos sociais são nocivos, pois “não ensinam a pescar”; c) Sucateamento e desmoralização dos serviços públicos de saúde, educação, transporte, saneamento, previdência e outros, o que gera na população uma sensação de que esses serviços já estão perdidos para sempre e que é inútil esperar ou lutar pelo seu restabelecimento; d) O alto índice de engajamento, mobilização e motivação da extrema-direita, que, mesmo na oposição (ou talvez exatamente por isso), segue altamente coesa nas questões programáticas centrais, ainda que exista um questionamento da figura pessoal de Bolsonaro; e) Ausência de mudança real na vida das pessoas desde a eleição de Lula, com concessões permanentes ao centrão, profunda timidez nas medidas sociais e inexistência de qualquer combate ideológico contra a extrema-direita; f) O grau de fusão entre política e religião, com a disseminação (imparável até agora) dos cultos neopentecostais fundamentalistas que arregimentam politicamente seus fiéis; g) A agitação da imprensa corporativa e da direita em torno da segurança e da corrupção como sendo os principais temas do país, sempre associando ambos à esquerda (“quer o poder para roubar” e “defende bandido”); h) A disseminação do pânico moral em torno das questões reprodutivas, de identidade de gênero e da guerra às drogas; i) A satanização dos movimentos sociais aos quais a esquerda é tradicionalmente associada, como o MST, o MTST, os sindicatos, o movimento feminista, negro, estudantil e mais recentemente o indígena e o ambientalista; j) A grande frente única antiesquerda, que foi desde a extrema-direita até a imprensa corporativa e que promoveu ataques ensandecidos contra as candidaturas do campo progressista, por mais moderadas que fossem.

Muitos outros elementos poderiam ser elencados, mas nos parece que esses são os essenciais e os mais específicos desse pleito.

Diante desse cenário, é legítimo perguntar: Cometemos erros? As coisas poderiam ter sido diferentes? Não estamos entre aqueles que desprezam a importância da inteligência em política. Ao contrário, nos vários artigos publicados neste portal, temos insistido que, exatamente pelas duras condições em que nos encontramos, é mais necessário do que nunca a flexibilidade tática, as manobras, os recuos temporários, os desvios de rota, a captação do exato sentimento e disposição de luta da classe para a formulação da linha correta, ao mesmo tempo em que mantemos intactos os princípios e seguimos a luta de longo prazo pela superação radical desta sociedade e seu sistema. Também é necessária a ousadia inteligente, o aproveitamento das posições conquistadas para o ataque aos flancos mais frágeis do inimigo com vistas a fazê-lo recuar. A cessão infinita de território (tanto quanto a ofensiva permanente) nunca foi uma boa política. 

Ora, a história conhece inúmeros exemplos em que a inteligência política mudou os rumos dos acontecimentos. Aliás, isso acontece todo o tempo. Mudar os rumos dos acontecimentos é exatamente a essência da atividade política, sobretudo da política comunista.

Mas não é verdade que isso é sempre e em qualquer escala possível. Depende das condições concretas. Em nossa opinião, a razão da derrota da esquerda nessas eleições reside muito mais nos fatores objetivos da correlação de forças do que nos erros subjetivos da tática política.

São Paulo: Boulos foi muito radical?

A recente entrevista de Jilmar Tatto não deixa dúvidas da estratégia que orienta a visão de uma ala do PT: é preciso ser parte da prefeitura a qualquer custo. Ao fazer o balanço da eleição, Tatto se lamenta pelo fato de que Nunes rejeitou uma aproximação com o PT e o governo em uma aliança de centro. É a política da rendição.

Diante da derrota da aliança liderada pelo PSOL em São Paulo, alguns setores do petismo levantaram a hipótese de que, em geral, toda a armação política e os acordos interpartidários costurados no período pré-eleitoral estariam errados: Boulos teria um perfil demasiado radical; o PSOL teria muito pouca implantação social; o grande peso dado às questões de raça e gênero impediria o diálogo com a massa da população, tensionada pelas “questões concretas”. Assim, a solução estaria em um recuo ainda maior no programa, na busca de alianças que dissolvessem o caráter de esquerda da frente e a aproximassem de um aglomerado amorfo de centro.

Esse tipo de avaliação ignora o fato de que, em 2020, Boulos chegou ao 2º turno das eleições com um perfil ainda mais radical e uma aliança ainda mais claramente de esquerda e mesmo assim foi perfeitamente capaz de dialogar com a população, que sequer o conhecia tão bem quanto o conhece hoje. Ao mesmo tempo, o candidato do PT, Jilmar Tatto, que materializava exatamente a ideia de uma candidatura mais moderada e ao centro, acabou obtendo apenas 8,65% dos votos, enquanto Boulos chegou a 20,24%, passando assim ao 2º turno. 

Ou seja, não há uma regra que diga que, necessariamente, uma candidatura mais moderada e mais ao centro é sempre melhor do que uma candidatura com um perfil de esquerda mais definido. Por isso, a comparação com 2020 e a conclusão de que a candidatura de Boulos foi demasiado radical em 2024 é incorreta, pois ignora o fator principal: a deterioração da situação política.

Além do mais, é preciso ser concreto. Boulos fez uma campanha que falou de moradia, transporte, educação e infiltração do crime organizado na prefeitura. Deveria ter aberto mão desses pontos fundamentais? Ao mesmo tempo, soube dialogar com um público que não é eleitor tradicional da esquerda: falou com os motoristas de aplicativos, entregadores, pequenos empresários, comerciantes, pastores evangélicos. A campanha cobriu um amplo espectro político e social e, sob hipótese alguma, pode ser acusada de sectária ou autocentrada. A recente entrevista de Jilmar Tatto não deixa dúvidas da estratégia que orienta a visão de uma ala do PT: é preciso ser parte da prefeitura a qualquer custo. Ao fazer o balanço da eleição, Tatto se lamenta pelo fato de que Nunes rejeitou uma aproximação com o PT e o governo em uma aliança de centro. É a política da rendição.

Boulos foi muito moderado?

Tanto a avaliação de que Boulos foi muito radical, quanto a de que ele foi muito moderado incorrem no mesmo erro metodológico: ignoram a realidade objetiva.

Boulos não foi derrotado em São Paulo por conta de um suposto “recuo programático”, mas porque, frente à direitização do processo (Nunes e Marçal juntos obtiveram 2/3 dos votos), o ex-líder do MTST apareceu como radical demais

Boulos não foi derrotado em São Paulo por conta de um suposto “recuo programático”, mas porque, frente à direitização do processo (Nunes e Marçal juntos obtiveram 2/3 dos votos), o ex-líder do MTST apareceu como radical demais, de esquerda demais, socialista demais para uma burguesia que abraçou o bolsonarismo, naturalizou Marçal e se juntou a Tarcísio numa frente sem princípios para evitar a vitória do PSOL. Fomos derrotados pelo que temos de melhor: a relação com os movimentos sociais, a combatividade nas lutas em defesa dos direitos, por sermos contra as privatizações, contra o encarceramento em massa da juventude negra e por outros “pecados originais” de esquerda.

Outras avaliações afirmam que o “recuo programático” de Boulos desanimou a militância orgânica e que isso teria fragilizado a campanha e contribuído com a derrota. É fato que uma campanha voltada para atenuar a rejeição e dialogar com um setor que não é de esquerda pode não mobilizar totalmente a vanguarda mais ideológica. Em muitos momentos faltou um maior equilíbrio entre o diálogo de massa e a mobilização da vanguarda. Atos como o do início da campanha na Praça Roosevelt contra o bolsonarismo ou as táticas da última semana poderiam ter sido mais presentes, mas isso não teria invertido o resultado, que não teve uma diferença estreita. Além disso, não podemos ignorar o enorme esforço feito pela militância nessas eleições: o engajamento, as passeatas, os “adesivaços”, os “vôos noturnos”, as panfletagens, os encontros com as comunidades etc. etc. etc. É verdade que houve um momento de desânimo na militância, mas não foi por causa de Boulos. Foi por conta do resultado do 1º turno, que abalou a todos. O que a campanha de Boulos fez (especialmente no momento mais difícil) foi exatamente o contrário: não baixou a cabeça, chamou a responsabilidade para si, reanimou os desalentados e conduziu uma campanha militante, em polarização permanente com a direita, contra toda a máquina estadual e municipal e a imprensa corporativa. 

Mesmo do ponto de vista do programa, embora se possa apontar erros, é preciso admitir que foi feita uma luta ideológica duríssima. Alguns exemplos deixam esse fato evidente: o questionamento da privatização da Eletropaulo (atual Enel) e da SABESP; a aula sobre os movimentos sociais e a luta por moradia, repetida em todas as entrevistas quando o candidato era questionado sobre sua relação com as ocupações; a moralização do professor como profissional e como ser humano; a defesa do funcionalismo; o compromisso de cancelar o confisco dos 14%; a defesa de uma GCM que trate do trabalhador de Heliópolis como trata o doutor dos Jardins. A própria “Carta ao Povo de São Paulo” não teve nada a ver com a “Carta ao Povo Brasileiro” de 2002. Foi uma tentativa de diálogo não com os empresários, o mercado financeiro e a classe média amedrontada, mas com a os trabalhadores precários que não se veem como classe trabalhadora e nem se sentem incluídos na defesa dos direitos em geral, tanto porque já não têm nada, quanto porque estão sob influência da subjetividade ultra neoliberal que favorece a extrema direita.

A campanha em São Paulo buscou dialogar com uma consciência que se encontrava mais à direita do que em 2020. Nesse sentido, a adaptação do discurso não representou nenhuma traição de classe porque as questões concretas que mais importam continuaram na pauta do dia. Não vamos esquecer que passamos ao 2º turno por uma pequena diferença de votos e ainda contando com um erro do inimigo no dia do pleito. Nem sempre a campanha foi bem sucedida, claro. Não há campanha sem erros. Mas a correção desses erros, que precisam ser discutidos abertamente, não implicaria em uma diferença qualitativa para melhor.

Também é errada a avaliação de que perdemos porque não temos trabalho na periferia. Não dá pra dizer que Boulos e o MTST não estão na periferia ou que debater pautas concretas é rebaixar o programa. Boulos buscou dialogar com a periferia, na qual ele é uma das únicas forças políticas da esquerda radical com implantação, e isso não se faz declamando nossas ideias sem diálogo com a consciência das pessoas. Milhões de trabalhadores desistiram de ser CLT e foram vender alguma coisa nas ruas ou na internet. O que dizemos a eles? Que imediatamente todo o seu antigo modo de vida será restabelecido? Esse é o nosso programa histórico, mas nesta situação específica não seria verdade. É preciso algum grau de mediação e Boulos buscou isso.

A questão fundamental não foi a tática, o discurso ou a figura de Boulos, mas o fato de que a classe trabalhadora está realmente sendo ganha para ideias alheias aos seus interesses. Nessas condições, Boulos é o melhor aliado possível para a tarefa de disputar ideologicamente nas periferias. Boulos é uma alternativa à renúncia ao trabalho com os movimentos sociais promovida pela direita do PT. E isso é uma ótima notícia! Jogar a campanha no mesmo saco de erros da direção petista é lutar contra os fatos.

Algumas lições de 2024 e o papel do PSOL

O resultado das eleições mostra que houve uma inflexão negativa na relação de forças desde 2022. A diversidade de candidaturas de extrema-direita nas eleições não reflete sua fraqueza e “divisão” no sentido negativo do termo, mas uma reorganização colossal e uma luta pela liderança em um movimento que tem dinâmica ascendente. Houve um espaço enorme para eles, mesmo divididos, e um espaço minoritário para nós, mesmo unificados, como é o caso de São Paulo.

o lulismo é a única força política e social capaz de disputar o poder com a extrema-direita. No entanto, precisamos falar as coisas abertamente. Para evitarmos uma catástrofe em 2026, o PT e o governo precisam mudar de postura

Se revelou também que o lulismo é a única força política e social capaz de disputar o poder com a extrema-direita. No entanto, precisamos falar as coisas abertamente. Para evitarmos uma catástrofe em 2026, o PT e o governo precisam mudar de postura: a esta altura do campeonato, passados quase dois anos de governo, não basta sequer promover melhorias econômicas e sociais (ainda que elas sejam centrais). É preciso politizar o espaço eleitoral do lulismo, transformar em força político-ideológica aquilo que hoje é uma base meramente eleitoral e profundamente dependente da personalidade de Lula. As pessoas votam em Lula, mas não defendem ideias de esquerda. Também por isso temos perdido espaço.

A conclusão de que o caminho passa por mais e mais concessões à direita, à Faria Lima e ao centrão seria desastrosa para 2026. Precisamos de políticas sociais e econômicas ousadas, preservar e ampliar direitos, recolocar o debate sobre as privatizações na mesa, sobre a autonomia do Banco Central, sobre a crise climática, a transição energética e a soberania nacional. Acender alguma chama de esperança no coração das pessoas. O governo precisa estar à frente desse processo.

Nesse sentido, a tarefa de defesa do governo frente à ofensiva de extrema-direita segue na ordem do dia, já que Lula é o principal instrumento para vencer eleitoralmente o bolsonarismo em 2026. Mas também precisamos disputar os rumos da esquerda no sentido da declaração de Boulos: de lutar pelas nossas ideias na consciência do povo, e não recuar ainda mais.

Por isso tudo, o PSOL é fundamental como um partido ideológico, que empunha um programa categórico contra a desigualdade social. Apoiando-se na autoridade política conquistada por Boulos (mas também por outras figuras do partido, nossos parlamentares e ativistas), podemos cumprir um papel muito importante na disputa ideológica contra a extrema-direita. Isso não exclui manter a luta pela frente única da esquerda, que se torna ainda mais necessária. Sem isso, qualquer luta ideológica, por mais bem intencionada e aguerrida que seja, vai esbarrar na brutal correlação de forças contra nós.

O resultado é triste porque revela que, apesar de toda a luta, perdemos posições. Isso frustra, cansa e desanima. Mas somos o tipo de gente que ergue a cabeça, cerra os dentes, e segue em frente. Não começamos nessa eleição e vamos seguir, mais conscientes, mais fortes, corrigindo rotas. O bonito da política é que, apesar dos limites das nossas forças, a gente pode intervir na realidade.