“Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial…”
Caetano Veloso
Existe um polo de articulação geopolítico e econômico se organizando, se desenvolvendo e se ampliando entre nações do mundo. E podemos dizer sem exageros, que está dando um salto de qualidade e impactando a hegemonia política dos EUA e da Europa. A realização da 16º cúpula dos BRICS em Kazan na Rússia nos dias 22 e 24 de outubro desse ano, mostrou um organismo pulsante, repleto de iniciativas em relação aos mais variados temas e que está atraindo várias nações para a sua orbita de influencia.
A independência frente ao Dólar esteve no centro das discussões
A 16ª cúpula dos BRICS que ocorreu essa semana na Rússia sob o tema: “Fortalecendo o multilateralismo para o desenvolvimento e a segurança globais justos”, reuniu não só representações dos países fundadores ( Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul) mas também os novos membros que foram aceitos na cúpula anterior ( Egito, Emirados Árabes, Arabia Saudita, Etiópia e Irã), além de representações de dezenas de outros países que estão pleiteando o dialogo e a participação oficial. O que já demonstra ao mundo que os BRICS expandido já é uma realidade e se consolidou como um polo econômico e geopolítico que está gerando interesses concretos de várias nações que não estão totalmente satisfeitas com a ordem hegemônica liderada pelos EUA.
Isso significa que mesmo que as lideranças de países como China e Rússia terem o cuidado de dar declarações que os Brics não tem o objetivo de ser uma articulação antiocidental, mas só de existir e ter iniciativas que fogem ao controle imediato norte americano e europeu, já é encarado pelas lideranças das potencias do “otanistão” como uma ameaça. O que inevitavelmente já aumenta a tensão geopolítica mundial pela disputa de hegemonia, configurando uma concreta mudança para uma nova ordem mundial. Segundo as contas do FMI, os Brics vão chegar ao final de 2024 com uma fatia de 36,4% do PIB mundial, enquanto o G7, vão baixar para 36,3%. Essa nova correlação de forças geoeconômica é medida em paridade de poder de compra, e confirma a força dessa articulação entre os países do sul global.
Em Kazan, entre os temas que mais chamaram a atenção e que preocupa lideranças imperialistas do ocidente é a iniciativa dos Brics de construir um novo sistema financeiro internacional de pagamentos que possa substituir o Swift e que não seja dependente do dólar. Dilma Roussef, atual presidente do NBD ( Banco dos Brics), em seu discurso na cupula de Kazan disse: “Assim a complexa situação geopolítica é acrescida as demais, pelo uso do dólar como uma arma de alteração de vida das populações e que afeta também a base do sistema financeiro internacional que é a confiança e a integridade”. Donald Trump em discurso de campanha nesse ano se contrapõe nitidamente a essa perspectiva dos Brics: “ Eu odeio que os países abandonam o dólar, não permitirei que os países abandonem o dólar, pois quando perdemos esse padrão, é como perder uma guerra, será um golpe para o nosso país e não podemos deixar que isso aconteça”.
Além dessa declaração, Trump também tem dito que vai taxar os produtos de países que abandonarem o dólar em 100%. Parte da propaganda eleitoral de Trump contra Kamala, inclui a afirmação de que a sua gestão a frente da Casa Branca será mais eficiente para enfrentar o Brics e suas iniciativas em construir mecanismos que enfraqueça as transações com dólar.
Os Brics não definiram nessa cúpula, como será tal mecanismo que pode abandonar o dólar no comercio internacional, mas encaminharam por consenso entre todos os membros a continuidade dos estudos e iniciativas para que a próxima presidência do Brics possa colocar em prática uma nova relação financeira que estimule a agenda da desdolarização em transações comerciais a disposição de vários mercados nas mais variadas regiões do planeta. Lembrando que o Brasil vai assumir a próxima presidência dos Brics em 2025 e essa tarefa provavelmente será motivo de grandes polêmicas na relação do Brasil com as potencias ocidentais.
Mas vários outros temas estiveram em discussão através de grupos de trabalho que vem se desenvolvendo no interior dos Brics e que envolve assuntos como mudanças climáticas, segurança digital, transição energética justa, reforma de instituições internacionais ligadas a ONU, combate ao trafico internacional de drogas, terrorismo, promoção de infraestrutura e desenvolvimento patrocinado pelo Banco dos Brics, zonas econômicas especiais dos Brics, centro de vacinas P&D dos Brics e o sistema integrado de alerta precoce para prevenir o risco de doenças infeccionas em massa, medicina nuclear, rede de institutos de saúde publica dos Brics, fórum de turismo dos Brics, cooperação no campo do direito e da política de concorrência entre os países do Brics, cooperação estatística incluindo o lançamento anual da publicação estatística conjunta, banco de dados cienciométrico dos Brics, rede de universidades dos Brics, nova plataforma tecnológica e o prêmio Brics solutions, festival de cultura dos Brics, jogos esportivos dos Brics, cúpula da juventude dos Brics, fórum de urbanização dos Brics, conselho empresarial dos Brics, reunião de ministras da mulher, fórum das mulheres e do empreendedorismo feminino dos Brics, lançamento das rede de Think Tank dos Brics para finanças, entre vários outros temas que estão de discussão permanente entre os países membros e parceiros. Trata-se de significativo avanço na articulação, cooperação, trocas de experiencias e relações econômicas que geram grande interessante e possibilidades vantajosas, tanto para os países membros, como para aqueles que estão se relacionando hoje com os Brics, e é exatamente por essas iniciativas em curso que tem chamado tanto a atenção.
Rússia passa a presidência do BRICS para o Brasil
A cúpula dos Brics desafia o mundo das potencias ocidentais não só pela sua capacidade de reunir e articular economicamente nações importantes do sul global. Mas chama muita atenção, o fato dessa reunião acontecer na Rússia, um país que está em guerra contra a Ucrânia, ou em outras palavras, está bem posicionado numa guerra indireta ( cada vez mais direta) contra a OTAN. Independente das caracterizações e julgamentos que podemos fazer sobre a Rússia e seus motivos para ter invadido a Ucrânia, o que queremos registrar é que a estrategia norte americana em isolar e derrotar os russos através do apoio militar a Ucrânia e de pesadas sanções, está cada vez mais desmoralizada. Tanto é assim, que a Turquia é hoje o primeiro país da Otan a pedir oficialmente entrada nos BRICS, estando a sua relação com Israel totalmente abalada.
Isso significa que o balanço da Rússia na presidência dos Brics, diante da situação complexa e difícil imposta, é bastante positivo. Agora, o bastão está sendo passado para o Brasil, que já tem a presidência do NBD( Banco dos Brics), que tem como presidenta Dilma Roussef, diga-se de passagem, foi publicamente elogiada por Putin durante a cúpula em Kazan, que defendeu que Dilma continuasse na presidência do banco por mais 5 anos de mandato. Em setembro desse ano, Dilma Roussef, recebeu a medalha da Amizade da China das mãos do presidente Xi Jinping, maior honraria concedida pelo governo chines a um estrangeiro, por contribuições à modernização do país asiático. O Banco dos Brics tem atualmente cerca de 100 projetos financiados que somam aproximadamente US$ 33 bilhões em investimentos nos países do bloco e do sul global.
Em janeiro de 2025, o Brasil vai assumir a presidência dos Brics e terá como principal tarefa dar continuidade a projetos que desafiam frontalmente os interesses da hegemonia norte americana e europeia. Motivo suficiente para que o “deep estate” norte americano olhe com mais desconfiança para o governo Lula, que por sua vez terá a difícil missão de atender as expectativas do bloco, ao mesmo tempo se equilibrar na corda bamba, para não sofrer as consequências das furiosas retaliações que explicitamente ou discretamente o governo norte americano pode aplicar contra os países dos Brics. O governo Lula estará a frente dos Brics num cenário onde os países latino americanos estão num momento de difícil articulação e integração regional, mesmo entre governos considerados de esquerda. A representação do governo brasileiro insiste em vetar a entrada da Venezuela nos Brics, o que gerou duras declarações do governo Maduro contra o governo brasileiro, que se soma a outras hostilidades que vem se acumulando desde o processo eleitoral conturbado que aconteceu recentemente na Venezuela. O quadro se agrava com a tentativa de golpe contra o governo colombiano, a divisão interna na coalização que governa a Bolívia, a posição do governo chileno em não reconhecer o resultado da eleição na venezuela e as absurdas posições do governo argentino que se recusou a participar dos Brics.
A declaração final da cúpula de Kazan
A declaração final da 16º Cúpula dos Brics é um documento com mais de 130 pontos, mas há três elementos centrais nesse documento que nos chama muita atenção, principalmente pelo fato de ser um texto elaborado por consenso entre os membros oficiais do bloco. O primeiro elemento que destacamos é a denuncia categórica das atividades de Israel em Gaza, no sul do Líbano, na Síria e no Irã. Deixando implícito que Israel praticou terrorismo de estado, em especial nas ações que envolveram o uso de explosivos que foram acionados via tecnologia da informação em dispositivos de comunicação na cidade de Beirute que deixou mortos e feridos. Veja um trecho da declaração que condena a invasão de Israel na Faixa de Gaza:
“Reiteramos nossa grave preocupação com a deterioração da situação e com a crise humanitária no Território Palestino Ocupado, e em especial com a escalada sem precedentes da violência na Faixa de Gaza e na Cisjordânia em decorrência da ofensiva militar israelense, que resultou em assassinatos e ferimentos em massa de civis, deslocamento forçado e destruição generalizada da infraestrutura civil. Enfatizamos a necessidade urgente de um cessar-fogo imediato, abrangente e permanente na Faixa de Gaza, a libertação imediata e incondicional de todos os reféns e detidos de ambos os lados que estão sendo mantidos ilegalmente em cativeiro e o fornecimento desimpedido, sustentável e suficiente de ajuda humanitária para a Faixa de Gaza, além da cessação de todas as ações agressivas. Denunciamos os ataques israelenses contra operações humanitárias, instalações, pessoal e pontos de distribuição. Para esse fim, pedimos a implementação integral das resoluções 2712 (2023), 2720 (2023), 2728 (2024) e 2735 (2024) do Conselho de Segurança das Nações Unidas e, nesse sentido, saudamos os esforços contínuos da República Árabe do Egito, do Estado do Catar, bem como de esforços regionais e internacionais para alcançar um cessar-fogo imediato, acelerar a entrega de ajuda humanitária e a retirada de Israel da Faixa de Gaza. Pugnamos pela adesão ao direito internacional. Também estamos alarmados com o fato de que o agravamento do conflito na Faixa de Gaza alimenta a tensão, o extremismo e graves consequências negativas em nível regional e global. Apelamos a todas as partes relevantes que ajam com a máxima moderação e evitem ações de escalada e declarações provocativas. Reconhecemos as medidas provisórias da Corte Internacional de Justiça nos procedimentos legais instituídos pela África do Sul contra Israel. Reafirmamos nosso apoio à adesão plena do Estado da Palestina às Nações Unidas no contexto do compromisso inabalável com a visão da solução de dois Estados, com base no direito internacional, incluindo as resoluções relevantes do Conselho de Segurança da ONU e da AGNU e a Iniciativa de Paz Árabe, que inclui o estabelecimento de um Estado da Palestina soberano, independente e viável, de acordo com as fronteiras internacionalmente reconhecidas de junho de 1967, com Jerusalém Oriental como sua capital, vivendo lado a lado em paz e segurança com Israel.”
O segundo elemento mais importante que o texto anuncia, é o pedido de eliminação de sanções econômicas unilaterais, em tom critico e defendendo uma reforma na Organização Mundial do Comércio – OMC. Esse recado atinge diretamente a política de sanções e bloqueios econômicos praticada especialmente pelos EUA contra vários países membros ou parceiros dos Brics, como Rússia, China Irã, Cuba, Venezuela e outros. A política de sufocamento econômico é uma das armas mais eficientes que as potencias ocidentais tem exercido para garantir sua hegemonia e punir nações que não estão alinhadas com os interesses do império. Na pratica gera o empobrecimento de países e a exacerbação de conflitos internos, o que tem gerado uma desconfiança mundial com o que os EUA e União Europeia podem fazer, ao controlar totalmente as estruturas e mecanismos que sustentam as transações comerciais internacionais.
O terceiro elemento que está registrado nessa declaração, na nossa opinião o mais importante, são os esforços em construir um sistema financeiro de transações comerciais que seja cada vez mais independente do dólar. Trata-se de um fato histórico que está em desenvolvimento acelerado nas negociações e elaborações dos Brics, e que será muito difícil de chegar num formato final, tanto pelos interesses intrincados entre os membros do bloco, como também pelas possíveis sansões e dificuldades que as potencias do ocidente já estão anunciando que irão fazer caso esse projeto seguir em frente.
O futuro do BRICS e do mundo
Podemos perceber que quanto mais os Brics se expandem e conseguem se organizar para configurar a geopolítica mundial numa perspectiva multilateral, enfraquecendo o poder de influencia das potencias ocidentais, em especial dos EUA, mais aumenta as tensões na relação entre os eixos China/Rússia X EUA/OTAN. Tanto é assim que até agora as duas guerras regionais mais preocupantes do momento desde que se iniciaram, só tem escalado e envolvido cada vez mais países direta e indiretamente. Além de outras potenciais regiões que podem iniciar conflitos que envolvem países que se alinham com um bloco ou outro.
A Rússia que é uma das principais lideranças dos Brics está numa guerra contra Ucrânia, leia-se, contra a OTAN, organismo chefiado pelos EUA. Israel que é um país totalmente alinhado e que recebe fornecimento de arsenal militar dos EUA, está praticando um verdadeiro genocídio na faixa de gaza, iniciou uma guerra no Líbano, e pode a qualquer momento fazer um ataque contra o Irã ( mais novo membro dos Brics) que terá consequências incalculáveis. A China, que é o país mais rico dos Brics, vive uma tensão permanente com Taiwan, que por sua vez está totalmente alinhada e recebe todo apoio dos EUA. Lembrando que Taiwan é a maior fabrica mundial de chips e outros produtos eletrônicos que não se produz em nenhum outro lugar do mundo, no qual empresas norte americanas como Amazon, Microsoft, Meta, Tesla e outros são totalmente dependentes.
Esses são alguns exemplos de conflitos que envolvem nações que estão diretamente alinhadas com um bloco ou outro. Ainda que exista países que fazem parte do Brics, mas que são da turma do “ deixa disso”, é inevitável que o desenvolvimento e expansão dos Brics impõe uma nova ordem mundial e inflama os conflitos e guerras já existentes. Afinal, existe alguma duvida que a Rússia sobreviveu economicamente até hoje, mesmo com sanções pesadíssimas, se não fosse o sucesso das articulações feitas no âmbito dos Brics?
Não devemos por conta da inflamação dos conflitos, imaginar que a expansão e crescimento dos Brics pode ser um caminho destrutivo para humanidade, pelo contrário, parece ser nessa difícil encruzilhada da geopolítica mundial, uma saída para muitos países que estão sendo sufocados pela política hegemônica do império ocidental. Mas devemos nos preparar para o que está por vir, pois nenhum enfrentamento contra o império, por mais que tenha a sua frente lideranças com distintas estratégias, vai se dar por vias pacíficas, harmônicas e civilizadas. A guerra política que a extrema direita bolsonarista está alimentando no Brasil, com baixarias, violência e tentativa permanente de golpes é um exemplo domestico do que estamos falando.
Clique aqui Veja a declaração final da cúpula dos BRICS na íntegra.
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