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MUNDO

Reflexões estratégicas sobre a escalada da intimidação israelense no Líbano

Embora deseje desmantelar a capacidade de dissuasão do Hezbollah, Netanyahu não pode iniciar uma guerra global sem assegurar a plena participação dos EUA na mesma, à semelhança da participação de Washington na guerra em Gaza durante vários meses, os meses mais mortíferos e destrutivos.

por Gilbert Achcar
Wael Hamzeh/EPA

Milhares de pessoas fugiram do sul do Líbano em direção a Beirute. Foto Wael Hamzeh/EPA

Ainda não tinha passado uma hora desde que escrevi o meu artigo de há uma semana (“O Líbano e a estratégia israelita de intimidação”, 17/9/2024) quando os serviços secretos israelitas lançaram uma operação de terror em massa no Líbano, fazendo explodir aparelhos de comunicação individuais em duas vagas sucessivas ao longo de dois dias, matando mais de 40 pessoas e ferindo mais de 3.500. Estas duas vagas de terrorismo em massa foram seguidas de uma escalada na troca de obuses do outro lado da fronteira, entre o Hezbollah e as Forças de Agressão Israelitas (também conhecidas por IDF), precedendo o intenso e violento bombardeamento que se abateu na segunda-feira sobre o sul do Líbano e outras áreas onde o Hezbollah está presente, matando quase 500 pessoas e ferindo mais de 1.600. O bombardeamento ainda está a decorrer no momento em que estas linhas são escritas.

A questão que se impõe a todos, a começar pelos alvos no Líbano, é a de saber se esta súbita escalada daquilo a que chamámos “estratégia israelita de intimidação” está a preparar o caminho para uma agressão em grande escala contra o Líbano, que incluiria bombardeamentos pesados indiscriminados em todas as zonas onde o Hezbollah está presente, incluindo o subúrbio sul de Beirute, densamente povoado, com o objetivo de o fazer “parecer Gaza”, nas palavras de um dos colaboradores próximos de Benjamin Netanyahu. Teme-se, de facto, que o Estado sionista leve a cabo uma agressão brutal a partes do Líbano, à semelhança da agressão que teve como alvo toda a Faixa de Gaza, de acordo com o que um dos responsáveis pela agressão israelita ao Líbano em 2006 designou por “doutrina Dahiya” (uma referência ao subúrbio sul de Beirute, a palavra árabe dahiya significa “subúrbio”). Esta doutrina tem como objetivo dissuadir qualquer pessoa que tenha a intenção de enfrentar Israel, ameaçando infligir um elevado nível de violência em zonas habitadas pela população civil a que pertencem aqueles que alimentam essa intenção, como aconteceu com o subúrbio sul de Beirute em 2006, que é a principal zona onde se concentra a base popular do Hezbollah.

É um facto que a agressão de 2006, que se seguiu a uma operação levada a cabo por combatentes do Hezbollah através da fronteira sul do Líbano contra soldados israelitas, matando oito deles e capturando dois, teve um efeito dissuasor, que foi reconhecido pelo Secretário-Geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ao declarar o seu arrependimento, quando disse na televisão, no rescaldo dessa guerra: “Se eu soubesse por um por cento que esta operação de rapto levaria a uma guerra desta magnitude, certamente não a teríamos feito por razões humanitárias, morais, militares, sociais, de segurança e políticas”.

O que os meios de comunicação ocidentais, que se apressam a condenar os crimes de guerra quando estes são cometidos pelos inimigos do Ocidente, como o regime russo na Ucrânia, não dizem é que a “doutrina Dahiya” não é um exemplo de genialidade militar nem uma doutrina digna de ser ensinada nas escolas militares dos países civilizados, mas sim uma violação flagrante das leis da guerra, que consiste na prática de crimes de guerra em grande escala, até ao nível genocida em Gaza, através da intenção explícita de atingir civis para dissuadir combatentes. Trata-se, por outras palavras, de uma estratégia terrorista formulada por um Estado terrorista por excelência, o que constitui uma confirmação inequívoca de que o terrorismo de Estado é muito mais perigoso do que o terrorismo de grupos não estatais, uma vez que aplica a mesma lógica, ou seja, o assassinato de civis com um objetivo político, mas com um potencial de letalidade e destruição incomensuravelmente maior.

O Hezbollah aprendeu duas lições com a Guerra dos 33 Dias, em 2006. A primeira traduz-se no facto de, desde então, ter tido em conta o que considera ser uma linha vermelha que, se ultrapassada, daria ao Estado sionista um novo pretexto para atacar os civis libaneses. Para preservar a sua base popular em primeiro lugar, o Hezbollah não levou a cabo nenhuma operação ousada como a que desencadeou a guerra de 2006 – ou a que o Hamas levou a cabo há cerca de um ano, desencadeando a guerra para destruir Gaza e exterminar o seu povo. A segunda lição levou o Hezbollah a adquirir um enorme arsenal de mísseis que estabeleceu uma contra-dissuasão ao ameaçar zonas civis no interior do Estado sionista, conseguindo assim aquilo a que se chama no vocabulário da dissuasão nuclear um “equilíbrio do terror”.

É esta equação que explica a iniciativa do Hezbollah de iniciar uma guerra de atrito limitada com o Estado sionista no dia seguinte à operação “Dilúvio de Al-Aqsa”, em resposta ao apelo do Hamas para que se juntasse ao que ele tinha iniciado. Esse apelo foi feito numa mensagem do líder militar do movimento islâmico na Faixa de Gaza, Muhammad al-Deif, transmitida no início da operação: “Oh, nossos irmãos da resistência islâmica, no Líbano, no Irão, no Iémen, no Iraque e na Síria, este é o dia em que a vossa resistência se fundirá com o vosso povo na Palestina, para que este terrível ocupante compreenda que o tempo em que se agita e assassina académicos e líderes terminou. Acabou o tempo da pilhagem das vossas riquezas. Acabaram os bombardeamentos quase diários na Síria e no Iraque. Acabou o tempo de dividir a nação e dispersar as suas forças em conflitos internos. Chegou o momento de todas as forças árabes e islâmicas se unirem para varrer esta ocupação dos nossos locais sagrados e da nossa terra.”

No entanto, o Hezbollah foi mais inteligente do que se deixar levar pela euforia ao ponto de acreditar que tinha chegado o dia da vitória sobre Israel e da libertação da Palestina. Decidiu, portanto, entrar na batalha como apoiante e não como participante de pleno direito, uma decisão que se traduziu na limitada guerra de desgaste. O partido queria exprimir a sua solidariedade com o povo de Gaza, mas sem expor a sua base popular a um destino semelhante ao dos habitantes da Faixa de Gaza. No entanto, este cálculo está agora a voltar-se contra o Hezbollah, uma vez que o exército de agressão sionista, tendo terminado as suas operações intensivas em grande escala em Gaza, está agora a concentrar-se na sua frente norte, lançando aquilo a que chamámos a “estratégia de intimidação”, que é uma escalada gradual dos ataques com a ameaça de passar à implementação da “doutrina Dahiya”.

Este comportamento israelita demonstra a eficácia da contra-dissuasão do Hezbollah, uma vez que o governo sionista é forçado a ser cauteloso em relação a desencadear uma guerra em grande escala que sabe que será custosa para a sociedade israelita, mesmo que o custo para a base do Hezbollah seja muito mais elevado, dada a grande superioridade das capacidades militares israelitas. Por isso, o governo sionista recorreu primeiro à escalada através da “guerra assimétrica”, um termo que normalmente descreve as ações de uma força irregular contra um exército regular. Neste caso, é o Estado sionista que está a desferir um golpe desonesto e doloroso no Hezbollah e no seu meio civil, fazendo explodir os aparelhos de comunicação. Seguiu-se uma escalada de guerra convencional que começou na segunda-feira, constituindo uma perigosa escalada de pressão sobre o Hezbollah para o forçar a render-se e a aceitar as condições estabelecidas por Washington com a aprovação do governo sionista, a mais importante das quais é a retirada das forças do partido para norte do rio Litani.

Confrontado com esta pressão crescente, o partido vê-se encurralado numa dissuasão mútua, mas desigual. Não possui a capacidade de desencadear uma “guerra assimétrica” no interior de Israel e não pode aí atacar de forma a causar centenas de mortos, como o que o exército sionista infligiu ao Líbano na segunda-feira, por receio de que a resposta seja esmagadora, sabendo que Israel é plenamente capaz de responder a um nível muito mais elevado. O Governo sionista está perfeitamente consciente das condições da equação. Embora deseje desmantelar a capacidade de dissuasão do Hezbollah, não pode iniciar uma guerra global sem assegurar a plena participação dos EUA na mesma, à semelhança da participação de Washington na guerra em Gaza durante vários meses, os meses mais mortíferos e destrutivos, ao ponto de contrariar todos os apelos a um cessar-fogo. O governo sionista precisa dessa cumplicidade total dos Estados Unidos no caso de lançar uma agressão em grande escala contra o Líbano, cujas condições políticas ainda não estão reunidas. No entanto, está a trabalhar para as conseguir, e pode muito bem emitir um aviso com um prazo limitado ao Hezbollah para esse efeito, como referimos na semana passada.

Ao que parece, Netanyahu começou a recear que o seu amigo Donald Trump possa fracassar nas próximas eleições presidenciais dos EUA, dentro de um mês e meio. Parece que, por isso, decidiu agravar a situação, aproveitando os últimos meses de presença do seu outro amigo, o “orgulhoso sionista irlandês-americano” Joe Biden, na Casa Branca. A questão que se coloca agora é a seguinte: irá Biden pressionar Netanyahu com firmeza suficiente para evitar uma guerra que poderá afetar negativamente a campanha da candidata do seu partido, Kamala Harris, ou irá, mais uma vez, alinhar com o esforço criminoso do seu amigo, mesmo que acompanhado de uma expressão de arrependimento e ressentimento destinada a desviar as culpas à maneira hipócrita costumeira dele e do seu Secretário de Estado Blinken?

Artigo publicado no site do autor, traduzido do original árabe publicado por Al-Quds al-Arabi em 24 de setembro de 2024. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

Gilbert Achcar é Professor de Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na SOAS, Universidade de Londres. Entre os seus vários livros contam-se: The Clash of Barbarisms: The Making of the New World Disorder; Perilous Power: The Middle East and U.S. Foreign Policy, com Noam Chomsky; The Arabs and the Holocaust: A Guerra de Narrativas Árabe-Israelita; The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising; e The New Cold War: The United States, Russia and China, from Kosovo to Ukraine. Leia mais em gilbert-achcar.net