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Relato 35: “Serviços especializados em atendimento a autistas: Uma falácia manicomial”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Ana Marta Lobosque, médica psiquiatra, doutora em filosofia e militante da luta antimanicomial

Foi inaugurado recentemente em Belo Horizonte, na Regional Centro-Sul, o Núcleo de Atendimento aos Transtornos de Neurodesenvolvimento com foco em Transtorno do Espectro Autista (TEA). Presentes, o prefeito, patrono da ideia; o Secretário Municipal de Saúde, que a implementa; representantes da FELUMA, fundação ligada à Faculdade de Ciências Médicas, que a patrocina; e outras autoridades mais. 

Este ato de inauguração apenas proforma – pois o núcleo ainda não está em funcionamento – aponta para o caráter eleitoreiro do projeto. No entanto, este não é o principal problema; há outros, mais graves, que apontamos a seguir, relativos à crescente proliferação de ambulatórios especializados para autistas no país.

Os ambulatórios especializados em saúde mental sempre foram um dispositivo combatido pela Reforma Psiquiátrica. Este tipo de serviço é avesso à lógica da atenção psicossocial: centrado no procedimento da consulta especializada, isolado, sem laços com a comunidade de um dado território, atende a um número muito restrito de pessoas e gera intermináveis filas de espera. Apenas serviços capilarizados, presentes no cotidiano do território, conseguem acolher os problemas, singularizar a situação sociofamiliar e estabelecer vínculos com cada usuário e seus familiares; é que nos mostra, por exemplo, a lógica do Programa de Saúde da Família, quando devidamente posta em prática.   A este Programa, em parceria com profissionais de saúde mental lotados nas unidades básicas de saúde, compete acompanhar as pessoas em sofrimento mental da comunidade, compartilhando o cuidado, quando necessário, com outros dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial de Belo Horizonte. 

Contudo, o núcleo em questão não é apenas um ambulatório especializado em saúde mental: é um ambulatório especializado para determinado diagnóstico. Isto agrava o problema: uma tal lógica, profundamente equivocada, levaria à criação de serviços específicos para cada uma das dezenas de categorias diagnósticas do Manual Diagnóstico de Saúde Mental. Ora, este número de categorias aumenta a cada dia, seguindo o processo de crescente patologização do sofrimento psíquico da sociedade contemporânea. Cada vez mais, as pessoas são induzidas a consumir diagnósticos, como se fossem mercadorias – e, de fato, uma grande indústria  incentiva  este  processo e se alimenta dele.  Há sempre um diagnóstico posto em moda, vendido a pessoas que sofrem, como se ao seu sofrimento correspondesse necessariamente uma doença, e como se dar um nome a esta doença fosse a questão mais importante para seu tratamento. A depressão foi por muito tempo a mais famosa, favorecendo o consumo maciço do então também famoso Prozac, logo substituído por qualquer outro antidepressivo posto em voga; com a onda das siglas, seguiram-se o TAB (transtorno afetivo bipolar), o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), o TEA (Transtorno do Espectro Autista), e vem vindo por aí, com chances de sucesso mercadológico,o TDI (Transtorno Dissociativo de Identidade). 

Ora, utilizado nesta perspectiva, o diagnóstico, longe de ser, como deve, um recurso que subsidia e ajuda a orientar o cuidado às pessoas em sofrimento mental, torna-se uma definição de suas identidades, reduzindo-as a uma mera patologia. Na perspectiva da atenção psicossocial,  Lúcia ou Jorge ou Denise, cada um inserido num determinado contexto familiar e social, cada um com sua história, seus percursos, suas questões, são  seres vivos,  humanos, aos quais se pode ou não atribuir um determinado diagnóstico ou prescrever uma determinada medicação; entretanto, tudo isso deve ocorrer no âmbito do acolhimento, da escuta, da inclusão social e cidadã. Na lógica patologizante, se faz o contrário: todos são automaticamente uniformizados numa mesma categoria, e a todos se prescrevem idênticos procedimentos. 

Esta situação tornou-se mais grave quando o TEA – Transtornos do Espectro Autista – tornou-se o diagnóstico da ocasião. Cresce em todo país uma onda maciça de ambulatórios especializados e clínicas-escola para pessoas diagnosticadas em TEA, pagos pelo poder público, Toda uma poderosa indústria faz do diagnóstico de TEA uma mercadoria altamente propagandeada e consumida: vendem-se desde alimentos específicos para autistas até cursos para formação de pais de autistas, dentre diversos outros produtos,  na melhor das hipóteses inúteis, e muito frequentemente nocivos. A onda se estende e engolfa também setores da política: vereadores, deputados, prefeitos, se elegem prometendo mundos e fundos às associações de usuários e familiares criadas em torno do TEA. As escolas, excitadas com todo este barulho, praticamente induzem alunos e pais a buscar este diagnóstico para qualquer criança que lhe traga algum problema. 

Cabe perguntar: quem se beneficia de tudo isso? 

Certamente, não se beneficiam as pessoas em sofrimento mental em geral, qualquer que seja seu diagnóstico; elas saem, pelo contrário, grandemente prejudicadas. A universalidade, princípio fundante do Sistema Único de Saúde, é ferida em seu cerne por esta lógica equivocada. Os recursos públicos, crescentemente investidos em serviços especificamente para autistas, escasseiam cada vez mais para os equipamentos e as práticas da rede de atenção psicossocial: faltam recursos humanos e materiais para a atenção à saúde mental nas unidades básicas, para os Centros de Atenção Psicossocial-CAPS (conhecidos como Centros de Referência em Saúde Mental-CERSAMs em Belo Horizonte); para os Centros de Convivência, os Consultórios de Rua, os Serviços Residenciais Terapêuticos, e outros pontos de atenção da rede, que atendem a todo e qualquer cidadão, seja qual for seu diagnóstico. 

Não estamos sozinhos nesta avaliação. Matéria recentemente publicada no jornal Folha de São Paulo sustenta que o investimento em serviços exclusivos para autistas desviam recursos da política da infância, da atenção básica, da saúde mental, da deficiência, e contrariam a arquitetura do SUS. Segundo o relatório técnico intitulado “A indústria do autismo no contexto brasileiro atual”, assinado por pesquisadores de diversas universidades da Rede Nacional de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes, a oferta de serviços de saúde mental baseados em diagnóstico, de caráter inerentemente restritivo, impõe grande pressão orçamentária aos sistemas de saúde e assistência social, drenando recursos de políticas universais.  

E as pessoas diagnosticadas como portadoras de TEA – beneficiam-se elas com a criação deste tipo de serviços?

Muitas delas, e muitos de seus familiares, reunidos em associações, defendem esta política. No entanto, seria preciso conversarmos mais a respeito, ponderando pelo menos dois pontos.

Primeiro ponto: estas associações são interlocutores que devemos respeitar. No entanto, qualquer forma de organização da sociedade civil que se queira democrática e participativa, deve sim, defender os interesses de seus associados – mas sem perder de vista o interesse mais amplo da sociedade a qual pertence. Deste último ângulo, torna-se impraticável a nosso ver, defender que recursos públicos sejam retirados de políticas públicas abrangentes para um segmento específico da população, definido por diagnóstico, seja ele qual for – autistas, esquizofrênicos, bipolares ou deprimidos. É também do interesse dos autistas e de seus familiares, sobretudo daqueles mais desfavorecidos socialmente, uma rede de saúde mental ativa e atuante, capaz e desejosa de acolhê-los, ao lado de todos os seus outros usuários. Abandonada tal como se encontra atualmente no Brasil , as redes de saúde mental estão, sim, longe de fazer isso – mas trata-se de lutar para que o façam, em parceria com os serviços de reabilitação psicossocial do SUS, da educação, da assistência social, e outros. 

O segundo ponto: estes serviços especializados não fazem nem farão bem aos próprios autista que dizem querer ajudar. Sob a aparente oferta de garantia de seus direitos,  as pessoas autistas são distinguidas como seres humanos à parte, segregadas em serviços e instituições destinados exclusivamente a elas; favorece-se uma crescente exploração mercadológica de sua condição. 

O Núcleo de Atendimento aos Transtornos de Neurodesenvolvimento com foco em Transtorno do Espectro mencionado no início deste texto é apenas um entre centenas, que vêm sendo criados em todo o Brasil, sob o argumento falacioso de que garantem direitos dos autistas. Ora, não apenas não o fazem, como ameaçam princípios fundamentais da ousada reforma psiquiátrica brasileira e do Sistema Único de Saúde em cujo âmbito se inserem. Estão sob a égide de um  discurso essencialmente manicomial, aquele da patologização e rotulação do sofrimento humano, ao qual a luta antimanicomial sempre se contrapôs firmemente; excluem sob o pretexto de incluir; fazem crer que um planeta especial para autistas deveria ser criado dentro do planeta Terra, ao invés de levar em conta que vivemos todos no mesmo planeta.

Em Belo Horizonte, a Comissão Municipal de Reforma Psiquiátrica do Conselho Municipal de Saúde vem se opondo veementemente à criação dos serviços especializados em autismo, com o integral apoio do Fórum Mineiro de Saúde Mental, da Associação de Usuários de Saúde Mental de Minas Gerais, da Rede Nacional  Internúcleos da Luta Antimanicomial. Conclamamos não só os trabalhadores e usuários da saúde mental, mas todos os cidadãos interessados em justiça social, democracia e políticas públicas, a combater esta falácia manicomial.