“Em primeiro lugar, ser trotskista é ser crítico, inclusive do próprio trotskismo.”1
Nahuel Moreno
“A questão não é de, em cada nova tarefa e em cada nova viragem,
procurar na tradição e descobrir lá uma resposta inexistente,
mas de aproveitar toda a experiência do partido e descobrir por si uma nova solução adequada à situação e,
fazendo isso, enriquecer a tradição.”2
Léon Trotsky
Na madrugada de 21 para 22 de agosto de 1940, em Cayocán, no México, era assassinado Léon Trotsky. O revolucionário russo foi covardemente morto pelas costas por um agente de Stalin, Ramon Mercader.
Trotsky havia sido, junto com Lenin, o principal obreiro do movimento comunista internacional e da revolução que o impulsionou: a Revolução Russa de outubro de 1917. Liderara a insurreição que transferiu o poder para o povo trabalhador da Rússia, fora presidente do Soviete de Petrogrado – verdadeiro governo da democracia dos trabalhadores –, tinha formado e liderado o Exército Vermelho e derrotado os exércitos contrarrevolucionários que, apoiados pelas grandes potências imperialistas, tentavam estrangular a Rússia revolucionária. Foi este legado que lhe valeu o ódio de todos os governos capitalistas, desde democratas-liberais a fascistas; e de Stalin, cujo poder crescente assentava no esvaziamento da herança revolucionária dos sovietes – que Trotsky nunca cessara de defender.
Enquanto arrastavam o planeta para a guerra sangrenta de 1939–45, estes competidores globais conjuravam para perseguir, encurralar e eliminar Trotsky e os seus seguidores. O reduto mexicano, uma brecha no cerco mundial montado ao revolucionário russo, revelou-se um beco onde as grandes forças contrarrevolucionárias sitiaram Trotsky. O sicário Mercader apenas concluiu, a mando de Stalin – que recém se aliara a Hitler para atacar a Polónia e iniciar a Segunda Guerra Mundial –, a obra conjunta que unia liberais, nazis e stalinistas na sanha de enterrar o legado da grande revolução que brotara da guerra anterior. Agora, decapitada a oposição internacionalista à barbárie, podiam de dedicar-se a fazer a guerra em paz.
Além da homenagem a uma personalidade fascinante que, como poucas, marcou o curto século XX, que sentido faz lembrar Trotsky hoje? Que motivos haverá para, num mundo em que ser-se socialista é uma raridade e assumir-se marxista uma excentricidade, lembrar-se o trotskismo?
As perspetivas para a humanidade não são mais brilhantes hoje do que às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Fascismo, crise climática, conflitos militares, o genocídio na Palestina e a ameaça nuclear são o retrato do capitalismo realmente existente – o único que a humanidade conhece. Contra isto, levantam-se novas gerações lutadoras. Apesar dos recuos, a militância de esquerda renova-se, as camadas ativistas radicalizam-se, Mas com que referências? Que armas teóricas empunhamos para criticar o capitalismo em crise? Como propor-lhe não só uma alternativa socialista, mas também delinear métodos de luta e formas de organização à altura da sua superação revolucionária?
Vindas de locais tão inesperados como os Estados Unidos e a China, chegam-nos notícias de uma procura por fontes marxistas entre as novas gerações. Isso é motivo de otimismo. Paulatinamente, na segunda metade do século passado, a elaboração teórica marxista refugiou-se nas academias e os movimentos anticapitalistas dedicaram-se, não poucas vezes, a tentar reinventar a roda. Nem todo o conhecimento crítico acumulado pelos marxistas atravessou a Segunda Grande Guerra para chegar às gerações seguintes.
O marxismo clássico constituiu um movimento em que a separação entre elaboração teórica, organização revolucionária e militância política não existia. Há uma corrente contínua que une Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo, Gramsci e …Trotsky. O fundador do exército vermelho foi o último elo dessa cadeia, quebrada pelos esforços de uma frente contrarrevolucionária – Gramsci apodreceu nos cárceres fascistas, Rosa foi morta a mando de sociais-democratas alemães e Trotsky pelos usurpadores da revolução bolchevique. Os seus méritos pessoais a sua biografia épica do revolucionário russo são incontestáveis. Mas o que torna o trotskismo objeto essencial de estudo, senão mesmo de reivindicação, é o facto de essas características pessoais se terem fundido com a história das grandes reviravoltas da luta de classes do mais extremo dos séculos.
Não só partiu das sólidas bases de Engels e Marx e protagonizou a maior revolução da história ao lado de Lenin: Trotsky viveu para testemunhar a ascensão do fascismo, a estalinização da URSS, a Guerra Civil em Espanha, as revoluções alemãs e chinesa, a Frente Popular Francesa e o despontar da Segunda Guerra Mundial.
Não só partiu das sólidas bases de Engels e Marx e protagonizou a maior revolução da história ao lado de Lenin: Trotsky viveu para testemunhar a ascensão do fascismo, a estalinização da URSS, a Guerra Civil em Espanha, as revoluções alemãs e chinesa, a Frente Popular Francesa e o despontar da Segunda Guerra Mundial. Pôde pensar a resposta socialista a todos esses fenómenos, deixou-a patente em inúmeras obras escritas e, sobretudo, num rol de impressionantes experiências militantes que ajudou a organizar. Do Vietname ao México, da França à Argentina, dos EUA à China e a Cuba, passando pela Alemanha e a URSS, Trotsky formou lideranças marxistas que deixaram um legado de luta que, em muitos países, vive até hoje.
Se a história não se repete nunca de forma igual, é inegável que os tempos que hoje vivemos são mais facilmente descodificáveis à luz das experiências do século XX – o fascismo, a guerra, as Frente Populares. Trotsky, sobrevivendo a Lenin, Rosa e Gramsci, foi o último dos marxistas clássicos que pôde estudar e procurar respostas a todos estes fenómenos. Se faz sentido procurar nos turbilhões do século passado pistas para enfrentar os desafios de hoje; se o marxismo aparece como a ferramenta incontestável da esquerda para construir uma estratégia vencedora; desprezar o legado de Léon Trotsky é abdicar das experiências mais avançadas das grandes lutas revolucionárias que marcaram a primeira metade do século XX. É conformar-se com um marxismo manco, um socialismo parcial, um comunismo sem memória.
Vejamos então alguns dos ensinamentos que Trotsky deixou e que nos podem ser úteis hoje.
Internacionalismo intransigente
Abrimos as redes sociais, a TV ou os jornais e, a cada dia, parece que um novo conflito geopolítico irrompe. Taiwan, Palestina, Sahel, Venezuela, Ucrânia, Irão, Coreia… Que posição deve a esquerda tomar em cada um destes casos? Com base em que critérios? Uma parte posiciona-se nestes choques do lado que lhe parece, a cada momento, ser o da “democracia”. Outra, identifica o imperialismo com uma nação (ou um conjunto de nações), normalmente os EUA e o “ocidente”, e alinha-se mecanicamente no “campo” oposto. Outras vezes, é o apelo à paz e à diplomacia, no abstrato, que serve de panaceia. Ora, todos estes enquadramentos apegam-se a conceitos abstratos que esvaziam os conflitos do seu caráter de classe. Ou seja, impedem, quase sempre, que a esquerda tenha uma visão independente e colocam-nos a reboque de um dos campos capitalistas em disputa.
A primeira metade do século XX foi preenchida por enormes tensões geopolíticas e choques militares – culminando nas duas guerras mundiais. Trotsky não só estudou como interveio politicamente, por vezes como protagonista central, em várias delas. Já no final da vida, e às vésperas da Segunda Guerra Mundial, procurou condensar certos ensinamentos como guia para a ação.
Na senda de Lenin, assinalava que não vivemos num mundo plano. Há nações opressoras e há nações oprimidas, metrópoles imperialistas e nações dependentes. Os internacionalistas estão sempre ao lado das segundas contra as primeiras, independentemente das justificações destas para as suas agressões – abertamente militares ou sob a forma económica ou diplomática. Ao mesmo tempo, ao contrário da tradição “terceiro-mundista” ou de certos nacionalistas de esquerda, os marxistas revolucionários não apoiam acriticamente os governos burgueses dos países oprimidos – mesmo quando os defendem das ofensivas imperialistas.
Nações opressoras, imperialistas, são aquelas que acumulam capital excedente e, por essa via, superioridade militar, económica e diplomática, que usam para subordinar e explorar as demais. O imperialismo não se confunde com um determinado estado, é antes o sistema mundial em que esta desigualdade entre estados impera. E nele sempre surgem, mesmo que com intervalos excecionais, potências rivais que lutam por hegemonia regional ou global – ou seja, pelo direito de subordinar nações mais frágeis. Por norma, o imperialismo é “multipolar”. Cedo ou tarde, essa rivalidade leva a conflitos, choques e guerra entre imperialismos. Como se posicionam nesse caso os revolucionários?
“Dado que a guerra é travada por ambos os campos imperialistas, não para a defesa da pátria ou da democracia, mas para a redivisão do mundo e a escravização colonial, um socialista não tem o direito de preferir um campo de bandidos a outro.”3
Aqui, Trotsky faz eco da política que, junto com Lenin, havia seguido nos alvores da Primeira Guerra Mundial. Ambos assinalavam então que “o inimigo está em casa”, pelo que a derrota do “seu” próprio governo é vista como o cenário menos mau para os militantes internacionalistas. Isto era assim no caso de guerras interimperialistas. Porém, assinalava Trotsky que, no contexto dos choques entre potências, “certos países coloniais ou semicoloniais tentarão, indubitavelmente, usar a guerra para se livrar do jugo da escravidão. No que lhes concerne, a guerra não será imperialista, mas emancipadora. O dever do proletariado internacional será ajudar os países oprimidos em guerra contra seus opressores.”4
Assassinado quando a Segunda Grande Guerra ainda estava no seu início, Trotsky não a analisou até ao final e não pôde estabelecer orientações definitivas para os militantes que com ele se organizavam. Não obstante, eles puderam ser encontrados lutando ao lado da resistência francesa, italiana ou grega contra a ocupação nazi, ao lado da China e no Vietname contra novos e velhos colonizadores, no seio dos exércitos aliados organizando os soldados e marinheiros contra a orientação imperialista dos seus próprios governos, ao mesmo tempo que se batiam intransigentemente pela derrota do nazi-fascismo e em defesa da URSS.
Hoje, um mosaico de conflitos de vária índole acirra-se por todo o globo, sempre agravados, instados ou despoletados pela competição entre as principais potências imperialistas – EUA, UE, Rússia e China. Reivindicar os princípios do marxismo para nortear a política internacionalista e, em cada caso concreto, fazer deles políticas revolucionárias, que transformem a guerra entre nações em conflito entre classes, é da maior atualidade. A esquerda terá tido poucos pensadores nos últimos 100 anos que tenham deixado um legado tão grande neste campo como Léon Trotsky.
Antifascismo revolucionário
Já convalescente, em outubro de 1922, Lenin é visitado na Rússia por uma delegação de comunistas italianos. Quando lhes pergunta sobre o rápido crescimento do fascismo em Itália, um dos chefes da delegação, Bordiga, é apanhado de surpresa – e assume ao líder russo que os comunistas no seu país não estavam excessivamente preocupados com Mussolini. Dias depois, o Duce marchava sobre Roma. Tal como hoje, a maioria da esquerda nos anos 20 e 30 desprezou o perigo nazi-fascista. O movimento comunista internacional, após a morte de Lenine, repetiu o erro de Bordiga e cia. – sob a batuta de Estaline, foi desprezando o perigo da extrema-direita com um misto de bazófia e covardia.
Trotsky foi dos poucos marxistas a estudar a fundo a rápida ascensão de Mussolini ao poder e, retirando as devidas lições, a alertar para o perigo de Hitler na Alemanha. Vendo a crise crescente da governação burguesa nas ditas democracias liberais, o fundador do Exército Vermelho percebia a emergência do fascismo como um movimento contrarrevolucionário que, arrastando uma base popular recrutada, sobretudo, nas classes médias pauperizadas, procurava retomar o controlo capitalista da sociedade pela força. Em prol dos grandes senhores do capital, mas à revelia dos seus partidos e instituições tradicionais. Logo, Trotsky identificou no movimento fascista um perigo urgente e clamou pela necessidade de unir as classes trabalhadoras para o derrotar. A sua orientação era a de construir uma aliança das forças da esquerda, os partidos e organizações que representavam as classes trabalhadoras, para um choque frontal, contra o fascismo. Era a tática da Frente Única. Por outro, recusava-se a assumir qualquer responsabilidade pela caduca democracia burguesa e instava que a esquerda deveria manter toda a independência face aos partidos do centro.
O eixo dos trotskistas foi então a tática da Frente Única. Na Alemanha, em particular, perante a fulminante ascensão nazi, Trotsky propunha que comunistas e sociais-democratas se unissem para barrar o caminho a Hitler nas ruas. O centro da política não deveria ser a competição entre revolucionários e reformistas, mas a unidade entre estes para deter um perigo maior. O Partido Comunista Alemão seguiu o caminho oposto. A social-democracia agradeceu tal tolice, que os dispensava de um combate sério – e Hitler usou a divisão da esquerda contra ambos. Enquanto o Partido Comunista decretava que não havia diferença entre sociais-democratas e nazis, os trabalhadores comunistas e sociais-democratas batiam-se nas ruas juntos contra os avanço de Hitler – mas sem o apoio ou a orientação das direções de ambos os partidos. O resultado foi catastrófico. O partido nazi nunca foi maioritário na Alemanha, ele subiu ao poder graças à crise dos partidos tradicionais e à divisão na esquerda. O sectarismo imposto a partir da direção estalinista aos comunistas alemães conduziu-os à derrota e à morte; e abriu caminho à gigantesca onda nazi-fascista que engoliu a Europa.
Como era seu apanágio, a direção da Internacional Comunista estalinizada, após a vitória de Hitler, deu uma guinada de 180 graus. A partir de 1935, sobretudo em 1936, o caminho passa a ser o de unidade não apenas com a social-democracia, mas também com os representantes da burguesia. Assim nasceram as Frentes Populares em França e em Espanha. Se, no início, estas alianças da esquerda com burgueses “democratas” e republicanos despertaram enormes esperanças e alimentaram uma grande onda antifascista, rapidamente mostraram as suas limitações. A ofensiva fascista baseava-se na luta de rua e no assalto violento ao poder, sem qualquer respeito pelas instituições democráticas vigentes – ainda que usando-as sempre que eram úteis. Tanto em França como em Espanha, trabalhadores e camponeses tentaram responder à altura, ocupando fábricas e campos, formando milícias, confrontando o assalto fascista com medidas revolucionárias. Isso não podia ser tolerado pelos partidos burgueses que ocupavam lugares centrais nas Frentes Populares antifascistas. Logo, estalinistas e sociais-democratas tentaram arrefecer a luta de massas, desarmar o povo, pedir confiança nos exércitos burgueses – que, a seu tempo, desertaram para o lado do fascismo.
A política oportunista de Estaline não foi um desaire momentâneo do pré-guerra. Como é sabido, o Exército Vermelho foi arrastado para a luta contra Hitler quando este, traindo o crédulo líder soviético, atacou a URSS, fazendo dos acordos entre ambos folha morta. Com um sacrifício inaudito e uma entrega heroica do povo, o exército fundado por Trotsky derrotou as forças nazis. Fê-lo apesar de Estaline, que nos primeiros dias de guerra terá desaparecido, incontactável, desorientado perante o previsível ataque alemão. Mas logo após a vitória, a política de colaboração com o imperialismo veio à superfície. Para tentar alimentar o seu isolacionismo reformista – o “socialismo num só país” –, em vez de promover a revolução num mundo em convulsão, Estaline dissolveu a Internacional Comunista para agradar a Eisenhower. E, entre outras decisões espúrias, patrocinou, ao lado da Grã-Bretanha e dos EUA, a fundação do Estado de Israel e a Nakba que o fez nascer. Dificilmente podemos encontrar dois alicerces tão sólidos para a injusta ordem mundial que os EUA impuseram ao mundo deste então.
Sectarismo primeiro, oportunismo depois e o desprezo pelo perigo fascista como pano de fundo – assim foi a reação das esquerdas oficiais, “comunistas” e sociais-democratas, ao assalto da extrema-direita. O prestígio do Exército Vermelho, merecido pela épica derrota dos exércitos nazis às mãos da URSS, tende a fazer esquecer a responsabilidade da direção “comunista”. Com uma orientação correta, teria sido possível travar Hitler antes que chegasse ao poder. Para tal, seria necessário as forças da esquerda internacional e, em particular, os partidos comunistas terem seguido os conselhos de Trotsky: trazer a maioria da população trabalhadora para a ação através da unidade dos partidos de esquerda, apostar nos métodos revolucionários para erguer uma muralha contra o fascismo, defender todas as liberdades democráticas sem se comprometer com os partidos e instituições capitalistas. Ontem e hoje, aqui estão lições que valem ouro e que, não poucas vezes, parte importante da esquerda insiste em esquecer. Salvaguardadas as diferenças históricas, há aqui ensinamentos para a atualidade: um antifascismo revolucionária não pode ignorar o legado de Léon Trotsky.5
Comunismo vs. estalinismo
Há um outro motivo, talvez o mais determinante de todos, para, em pleno século XXI, se reivindicar o pensamento marxista e o legado militante de Léon Trotsky. O século XX encerrou-se com a queda da URSS e demais estados não-capitalistas do Leste europeu e com a reintrodução do capitalismo na China. Perante isto, liberais, fascistas e toda a sorte de forças pró-capitalistas declaram: “O comunismo falhou!”
Este vaticínio só parece sólido porque se apoia numa falácia: a ideia de que as sociedades não-capitalistas erguidas no Leste europeu e em parte da Ásia (assim como em Cuba) seriam “comunistas”. Ou, pelo menos, estariam a caminho de se tornarem comunistas, lideradas pelos partidos monolíticos e pelas castas privilegiadas que dirigiam tais países. Esta falácia foi – e é – alimentada de forma simétrica e simultânea pelas forças de direita e pelas lideranças “comunistas” oficiais. Assim, quando tais experiências falharam, todos os brilhantes académicos ocidentais, os seus aliados liberais, os “socialistas” da terceira via e, na sombra, os fascistas puderam afirmar que o comunismo falhou.
De tanto insistir na idealização acrítica de tais estados e na bajulação ingénua de suas lideranças, a esquerda de herança estalinista não teve como argumentar contra a suposta a falência do comunismo. Dizer que as experiências pós-capitalistas, o “socialismo realmente existente”, falharam devido à força do capitalismo é tautológico: é como assumir que se perdeu um jogo de futebol porque a equipa adversária venceu. Ainda hoje, a esquerda (neo)estalinista não consegue esboçar uma explicação mais profunda do que isto para a queda da URSS. Por isso, perde-se num beco sem saída. O seu comunismo é, quando muito, uma retrotupia: uma celebração do passado, um saudosismo mistificado, não um projeto de futuro.
Já o trotskismo poderia, em síntese, ser definido como o movimento revolucionário que foi crítico do rumo dos estados ditos comunistas do século XX, que opôs às suas lideranças uma crítica marxista, sem nunca deixar de os defender perante os ataques capitalistas.
A crítica que o trotskismo faz ao estalinismo nada tem que ver com a liberal ou social-democrata. Não se trata de opor a democracia capitalista ao autoritarismo estalinista, menos ainda de criticar o estalinismo por ser excessivamente “extremista” ou “radical”. Trata-se do oposto: de criticá-lo pela sua insistente política de colaboração com forças capitalistas, pelo seu afastamento das classes trabalhadoras, pela sua desistência do projeto revolucionário em troca da defesa da “pátria”, da “constituição”, da “economia nacional”, etc.
Quando, na tradição trotskista, se critica o “estalinismo” não se está a falar, meramente, desse período longínquo em que o movimento comunista internacional foi dirigido pelo burocrata georgiano. A crítica estende-se às diversas correntes políticas que mantiveram e mantêm a orientação original estalinista: a revolução por etapas, o patriotismo em vez do internacionalismo, o conservadorismo ideológico, a procura permanente de alianças com supostas burguesias “nacionais”, “progressivas” ou “democratas”, as diversas formas de convivência com o imperialismo – desde a “coexistência pacífica” ao “socialismo num só país”. Mesmo que a maioria do comunismo oficial tenha renegado os excessos autoritários da época de Estaline, os gulags, etc., manteve a sua orientação conciliadora. Atrás de fachadas comunistas, marxistas-leninistas, castristas, maoistas, eurocomunistas, etc., essas correntes persistiram e persistem nos seus erros. Os mesmos erros que levaram a URSS e as restantes experiências revolucionárias do século XX à derrota.
Trotsky anteviu o perigo e alertou para ele. Cedo entendeu que o isolamento da URSS levava a que as desigualdades sociais no país se aprofundassem e, delas, nascesse uma nova camada social que, sem se tornar capitalista de imediato, acumulava privilégios e oprimia o povo. Era a burocracia, os senhores do Estado e do exército, que não tinham interesse no aprofundar da revolução, mas na manutenção do statu quo. E que, por isso, chegavam a acordo com os camponeses abastados na Rússia e com as potências imperialistas no estrangeiro, enquanto procuravam evitar, através da sua influência, novas revoluções. Ainda que não na forma, no seu conteúdo político, o comunismo estalinista está mais próximo da social-democracia do que do marxismo. Mesmo hoje, os seu herdeiros, ainda que façam altíssonos discursos revolucionaríssimos e propaguem memes saudosistas da URSS, são, no essencial, uma esquerda defensora da ordem burguesa, do lento caminho por reformas para um socialismo longínquo que não contam que seja alcançado antes da maturidade dos seus trisnetos.
A denúncia que o trotskismo faz ao autoritarismo estalinista assenta nesta lente de classe: nos seus partidos, como nos sindicatos que dirige e nos estados que governa, as lideranças estalinistas não permitem a crítica, o debate aberto, a mobilização permanente das bases. Isto não porque são “autoritários” ou por se oporem à “democracia” no abstrato. O monolitismo existe, porque a crítica marxista e a auto-organização dos debaixo entraria em choque com a estratégia de colaboração de classes e, não poucas vezes, com a manutenção dos privilégios materiais que resultam das posições conquistadas no aparelhos partidários, nos sindicatos ou no Estado.
Contra este estado de coisas, o movimento trotskista apontou uma alternativa revolucionária. Era necessária a revolução política na URSS e demais estados operários, ou seja, uma mobilização de massas que derrubasse o governo autoritário e restabelecesse a democracia de base, assente em conselhos operários e assembleias populares. Enquanto isso, as conquistas económico-sociais, como a propriedade coletiva da terra e da indústria e a substituição do mercado pela planificação económica, deveriam manter-se e aprofundar-se. Simultaneamente, os trotskistas lutaram com a vida contra toda a agressão pró-capitalista à URSS e estados análogos. Hoje, o mesmo critério pode aplicar-se às instituições burocratizadas – sindicatos ou partidos – da classe trabalhadora: a exigência da democracia de base, do autogoverno de quem trabalha, e a defesa incondicional perante os ataques do Estado ou das forças capitalistas.
Hoje, uma geração militante procura referências socialistas contra a barbárie para que o capitalismo arrasta do planeta. Perante as invetivas tacanhas de fascistas e liberais contra o comunismo, saudavelmente se aproximam deste último. E, por vezes, nesse movimento positivo, caem na armadilha que o discurso de direita arma: identificam o comunismo com aquela corrente que o dominou em grande parte do século XX, o estalinismo. Uns, perante isto, hesitam em realmente abraçar a causa revolucionária. Outros, assimilam os erros de parte da esquerda do século passado, tomando como radical uma corrente que falhou sucessivamente pela falta de horizonte revolucionário. No fundo, sentem que há respostas que não são dadas pelo “comunismo” oficial, mas a crítica odiosa das direitas incentiva a uma adesão sem hesitações a uma corrente política conservadora e moderada. A poderosa simbologia, de que todo o revolucionário se orgulha – a foice e o martelo, a estrela vermelha, o legado antifascista – fazem o resto. Há uma segurança confortável nesta adesão pouco crítica ao (neo)estalinismo.
Contudo, a segurança e o conforto não são certamente os sentimentos que mais ajudarão a erguer uma esquerda revolucionária para o século XXI. As correntes socialistas radicais vão ganhando adeptos à medida que os choques sociais e políticos se extremam. Um socialismo revolucionário atualizado para o desafios presentes deve nascer nesse processo e não poderá, nesse percurso, abdicar do marxismo e das experiência do século passado. Um novo movimento marxista de massas não terá, necessariamente, de se revelar trotskista para vingar. Provavelmente ele beberá de diversas fontes e experiências. Mas não se poderá dar ao luxo de desprezar o legado do último dos dirigentes do marxismo clássico, que, contra a corrente, combateu pelas palavras e pelas armas a guerra, o fascismo, a exploração e todas as formas de opressão, que co-liderou a grande revolução russa: Léon Trotsky. Por isso, nos 84 anos do seu assassinato, voltamos a lembrar o seu percurso.
Conhecer, ler e trazer para a esquerda de hoje o legado de Léon Trotsky é resgatar as mais explosivas lições de um século de revoluções. Para preparar novas vitórias socialistas.
Comentários