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Colunas

Eleição em São Paulo

Camapnha Guilherme Boulos

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Não deixes que as tuas lembranças pesem mais do que as tuas esperanças
Provérbio popular persa

As duas correntes políticas nacionais mais poderosas permanecem sendo o lulismo e o bolsonarismo, e a explicação repousa em uma história de quarenta e cinco anos de luta social.

1. Até três semanas atrás o cenário previsível da eleição em São Paulo era um segundo turno entre Boulos e Nunes. Esse ainda parece ser o desenlace mais provável, por enquanto. Mas estamos diante de um fenômeno novo imenso, catastrófico e assustador. As últimas duas semanas deixaram claro que está colocada a hipótese de Pablo Marçal deslocar Nunes, e chegar ao segundo turno. É incerto, mas não impossível. As duas correntes políticas nacionais mais poderosas permanecem sendo o lulismo e o bolsonarismo, e a explicação repousa em uma história de quarenta e cinco anos de luta social. Nesse intervalo ocorreram oscilações no grau de influência e na base eleitoral do PT. Mas o que mudou, qualitativamente, é que o espaço ocupado pelo PSDB, que estruturava o centro-liberal burguês, foi devorado pela extrema direita à escala nacional. Bolsonaro fez um giro abrupto ao decidir apoiar Nunes, e impedir Ricardo Salles. O cálculo respondia a várias razões, a mais importante sendo a necessidade de ampliar seu arco de alianças diante do perigo de prisão. Mas era muito arriscado porque Nunes não desperta confiança na extrema-direita. O bolsonarismo se dividiu e Pablo Marçal vem ocupando, vertiginosamente, o espaço de liderança na corrente neofascista. A campanha de Nunes já entrou no modo “pânico”.  A tática de atrair o voto ultrarreacionário sem uma excessiva vinculação com Bolsonaro fracassou. As próximas pesquisas podem confirmar o crescimento de Marçal acima de 14%.

2. Um segundo turno entre Nunes e Marçal é impossível. Na capital de São Paulo, quando houve segundo turno, a esquerda sempre esteve presente através de uma candidatura do PT desde 1992, ou mais de trinta anos. A única exceção foi na eleição de 2020, quando Boulos superou Tatto e conquistou uma posição no segundo turno. É mais do que provável que Boulos irá conquistar um lugar no segundo turno. Vencer a eleição é um desafio de outra dimensão. A conjuntura continua defensiva, mas ainda não é um pesadelo apocalíptico. O que agora parece incerto é saber se será contra Nunes ou Marçal. Não é possível uma previsão sobre o desfecho de um segundo turno, porque a conjuntura é diferente de 2022. Mas a unidade da esquerda na maior cidade do país, com nove milhões de eleitores, desde o primeiro turno, responde à lucidez estratégica de que a derrota do bolsonarismo em São Paulo será vital para as eleições presidenciais de 2026. Claro que o crescimento de Marçal exige um sinal amarelo na campanha. Sinal amarelo não é sinal vermelho. Mas não vai ser uma campanha fria com debates “técnicos” de quem apresenta as melhores soluções de gestão. Nas próximas duas semanas, pelo menos, não vai ser uma campanha em que a única preocupação tática será denunciar Ricardo Nunes. Será uma campanha contra os dois candidatos de Bolsonaro. Vai ser luta livre no ringue e sem regras. Já está sendo uma disputa política e ideológica que transcende as soluções para a gestão municipal. Isso significa acusar de forma serena, mas firme que Marçal é um golpista e Nunes é um bolsonarista dissimulado.

3. A campanha será muito diferente de 2022. Por quê? Três indicadores são chaves: (a) a avaliação da gestão  não é catastrófica, ao contrário de Bolsonaro durante a pandemia, embora tampouco seja positiva; (b)  as camadas médias estão divididas, mas é impossível prever se a associação de Nunes a Bolsonaro será bem sucedida, condição sine qua non para a vitória de Boulos; (c) o apoio a Lula se concentra nas camadas populares, e a capacidade de transferência de Lula já foi demonstrada de forma espetacular na eleição de Haddad em 2012, mas a rejeição a Boulos é muito elevada. Outras três variáveis importantes: (a) não há nenhuma dissidência burguesa apoiando Boulos, ao contrário de Lula em 2022 que tinha Alckmin e uma fração da classe dominante, minoritária, mas influente, ao seu lado desde o primeiro turno, e não é provável que haja deslocamento em um segundo turno; (b) Lula venceu na capital e a rejeição a Bolsonaro permanece superior a, no mínimo 60%, o que sugere que Boulos poderá vencer, se ocupar este espaço, mas terá que buscar pelo menos 10% dos votos numa parcela do eleitorado que não vota na esquerda; (c) as pesquisas indicam, por enquanto, apesar de uma margem de erro muito elevada, que Nunes teria uma vantagem acima de 10% sobre Boulos em um segundo turno. A incerteza resulta, sobretudo, do desconhecimento elevado, sobretudo entre a população que ganha até dois salários-mínimos, ou quase metade do eleitorado, de que Lula apoia Boulos.

Uma derrota em São Paulo teria consequências devastadoras. Uma vitória será um impulso vital para derrotar o bolsonarismo em 2026. Ninguém sabe o que será 2025, com as eleições norte-americanas em novembro, e o perigo de uma vitória de Trump. Sem um engajamento militante do ativismo de esquerda não será possível vencer.

4. Se estas premissas estão corretas devem fundamentar algumas conclusões. A questão tática central é que esta eleição é a mais decisiva em todo o país e é possível lutar para vencer. Nada é mais importante. A esquerda tem poucas chances em todas as outras capitais, à exceção de Teresina, o que não é muito animador. Uma derrota em São Paulo teria consequências devastadoras. Uma vitória será um impulso vital para derrotar o bolsonarismo em 2026. Ninguém sabe o que será 2025, com as eleições norte-americanas em novembro, e o perigo de uma vitória de Trump. Sem um engajamento militante do ativismo de esquerda não será possível vencer. Na luta política desta campanha a “mão não pode tremer”. Boulos não pode deixar de polarizar contra as duas candidaturas bolsonaristas. Não vai ser com debates técnicos que a esquerda poderá vencer. Não adianta ter as melhores propostas. Não é o bastante. Será necessário vencer o debate ideológico contra a extrema-direita. Mas seria um grave erro não compreender que somente com o voto da esquerda não é possível vencer. E não haveria tempo para “fazer a curva” em duas semanas de segundo turno. Boulos já fez um reposicionamento de imagem para diminuir a rejeição. Ela é muito grande porque há vinte anos Boulos tem a trajetória de um lutador popular. Se Boulos se apresentasse com o rosto das eleições de 2020, o animador do MTST, a eleição estaria perdida. Não é somente porque é candidato de uma coligação, embora isso seja importante. Acordos devem ser cumpridos. Sem o apoio de Lula é impossível vencer. Nossa palavra de ordem deve ser: “Não Passarão”.

5. Em resumo, nestes dez primeiros dias de campanha, o fato político mais importante está sendo a disputa do espaço do bolsonarismo entre Pablo Marçal e Ricardo Nunes. Desde 2018 ficou claro que a capacidade de transferência de votos de Bolsonaro era imensa. Witzel venceu para governador em 2018 no Rio de Janeiro contra Paes, e Tarcísio de Freitas ocupou o lugar de Rodrigo Garcia em São Paulo em 2022. Mas a candidatura rebelde de Marçal, que não aceitou a ordem de comando de apoio a Nunes, criou uma nova situação. Ninguém sabe se Bolsonaro mantém autoridade sobre seu “movimento” ao ponto de centralizar a votação da extrema-direita em Nunes. Até agora Marçal pontua 14% o que corresponde ao “núcleo duro” neofascista. Mas o bolsonarismo influencia algo em torno de 30% do eleitorado. A questão é saber qual será o papel do “voo solo” Marçal, sem o apoio de Bolsonaro. Mesmo que arrastando uma parcela da votação da extrema-direita, se Marçal não crescer ao ponto de ameaçar a passagem de Nunes para o segundo turno, sua candidatura radical neofascista “raiz” cumpre um papel auxiliar para Nunes encurralando Boulos como extrema-esquerda radical e, ao mesmo tempo, facilitando que Nunes se reposicione ao centro, como candidatura da direita liberal “responsável” contra os dois extremos. Mas está em disputa se o “estilo Milei” de fazer campanha pode abrir caminho para sua presença em um segundo turno contra Boulos. Ainda é cedo, essa não é a hipótese mais provável, mas não pode ser descartada. Nesse contexto, Datena terá o destino de Russomano, e Tabata Amaral sairá muito diminuída. Não nos enganemos com o excesso de ruído. A luta será entre Boulos e os dois candidatos bolsonaristas, o raiz e o Nutella. Não foi por erros de “comunicação” que o bolsonarismo cresceu desde 2018. Não é por ignorar o inimigo que a extrema-direita neofascista vai desinflar. Esta campanha eleitoral será luta de classes concentrada em menos de cinquenta dias. E ainda temos pela frente o sete de setembro com Bolsonaro na Paulista. Vai ser com emoção. Ou seja, inteligência tática e muita garra. Não Passarão.