Relato 33: “Direito à autonomia da pessoa com transtorno mental”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

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Por Patricia Ferreira Monte Feitosa

A Constituição Federal de 1988, inspirada pelos princípios fundamentais dos Estados Democráticos de Direito, acolhe a condição do dever de igualdade de todas as pessoas perante a lei, garantido o direito à vida, à liberdade e à igualdade. (Art. 5º). Indelével o axioma da garantia do direito à vida digna como fundamento do nosso Estado de Direito. Mas, a mutabilidade do conceito de vida, que sofre influência da diversidade do comportamento humano, sempre é um desafio para definição os direitos humanos cuja observância é uma imposição para a fruição de uma vida digna, e vivida com liberdade.

O viver em liberdade, direito fundamental e individual de primeira geração, portanto, com validade inconteste, ainda é um grande desafio para as pessoas que sofrem de doença mental, e, certamente, os obstáculos se devem aos fatos sócio-históricos que marcaram a “loucura”.

No século XVII, o bem-estar social era garantido pela internação dos loucos, juntamente com pobres, ociosos, os libertinos, enfim, os que não apresentavam uma conduta moralmente aceita ou não eram produtivos; num período em que era necessário separar os bons dos maus, os subversivos; os profanadores, enfim, todos aqueles que representavam desordem social; e, assim, deveriam ser institucionalizados para serem “correicionados”, seja através de castigos ou trabalhos forçados. Inclusive, esta seria a razão pela qual o transtorno mental seja tratado como escárnio e preconceito.

Nas palavras de Foucault (pag. 78): “a internação é uma criação institucional própria ao século XVII,… Mas, na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é recebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada às obrigações do trabalho e todos os valores éticos aí ligados determinam a experiência que esse pais da loucura e modificam e o sentido” (História da Loucura, São Paulo. Ed. Perspectiva, 2014).

Como consequência da cultura da internação, o sujeito “louco” perdia sua essência, sua subjetividade e identidade; pois, até hoje, as condutas nas instituições são normatizadas, comportamentos padronizados; as roupas são uniformes; definição de tipo de corte de cabelo; as preferências pessoais são ignoradas; direitos violados ou restringidos, a exemplo da imposição do tratamento médico, informação relativa ao seu tratamento, confinamento, horário para alimentação, sono e uso do banheiro. Enfim, ao sujeito com transtorno mental se impõe o processo que Erving Goffman denomina “mortificação” (Manicômios, prisões e conventos. 9 ed. São Paulo. Ed. Perspectiva Ltda.,2015).

O cerceamento da liberdade da pessoa com transtorno mental era regra não só no Século XVII, mas, também, no Século XVIII, atravessando o período do Racionalismo, em que a razão era o fundamento dos Direitos Humanos, até o surgimento da Psiquiatria como ciência e saber autônomo, e, ainda no Século XIX, o internamento ainda era legitimado, desta vez para consolidação do campo da medicina psiquiátrica: tais como choque cardiazólico, a psicocirurgia, a insulinoterapia e a eletroconvulsoterapia, medicalização, lobotomia, eletrochoque, camisa de força, agressões físicas, afogamentos dentre outros, o que perdurou até metade do Século XIX.

O pensamento de Pinel reflete a lógica do pensamento racional e a exclusão do “louco” da sociedade, e foi base para a disseminação de hospícios, inclusive, no Brasil. Se o alienado é incapaz do juízo, incapaz da verdade, é, por extensão, perigoso, para si e para os demais. O conceito de “alienação” produz um lugar para o louco, excluído do pacto social, o lugar do sujeito da desrazão ou da ausência de sujeito – sujeito racional e responsável cívica e legalmente – sujeito delirante sem cidadania que deixa de ser um ator social para tornar-se objeto do alienismo (TORRE; AMARANTE 2001, p. 75).

Todo este contexto, por séculos, reflete no comportamento da nossa sociedade, que ainda não compreende o direito de viver em liberdade que também se estende à pessoa com desabilidade psicossocial. Até os dias de hoje, é possível notar o desconhecimento e o medo da sociedade sobre os cuidados da saúde mental, certamente, decorrentes de uma memória associada ao isolamento num ambiente de maus-tratos, violência e subjugação ao tratamento. Este passado constitui obstáculo para que a pessoa compreenda aspectos de prevenção e terapêutica da saúde mental, e, como consequência tem-se o agravamento do sofrimento mental, a limitação da autonomia do sujeito e as restrições à sua liberdade.

Mas, se quisermos viver numa sociedade democrática e inclusiva, é necessário descontruir a cultura da internação para a garantia do viver em liberdade. Para isso é necessário compreender que a inclusão social depende do respeito à autonomia, à subjetividade, pessoa com transtorno mental é uma constante. As práticas manicomiais refletem inúmeras violações de direitos humanos, inclusive, de Direitos Humanos de Primeira Geração, que era negadas a pessoa com doença mental, que, por muitas vezes, teve negada a sua própria condição humana, por suposta ausência da “razão”.

No entanto, com as teorias que deram início ao reconhecimento dos Direitos Humanos de Segunda Geração, notadamente, ao Direito de Igualdade, foi necessário reconhecer às pessoas com transtorno mental sua condição de humana; assim, as condições de indignidade que viviam nos manicômios iam de encontro ao rol de direitos reconhecidos a todo o homem, cujos fundamentos ganharam força no Pós-Guerra de 1945.

Assim, no Século XX, por volta de 1940, ganharam ressonância estudos que foram precursores da Luta Antimanicomial, que passaram a questionar a influência do ambiente social no adoecimento da pessoa, e “buscaram conhecer, para denunciar e intervir, as condições de vida individuais e coletivas, supostamente capazes de provocar ou agravar problemas mentais” (In.: O pioneirismo de Louis Le Guillant na reforma psiquiátrica e psicoterapia institucional na França: a importância do trabalho dos pacientes para a abertura dos hospícios).

Contemporaneamente, defende-se então que a lógica do cuidado é viver em liberdade. No cenário brasileiro, a Lei nº 10.216 de 2001 foi importantíssima ao prever novas diretrizes para políticas de saúde mental, determinando que a institucionalização do paciente com transtorno mental seja a última medida terapêutica, elegendo como prioridade o cuidado em liberdade. Posteriormente, o Decreto n º 6.949, de 2009 promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, que prevê como princípios “o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; a não-discriminação; e a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade (art. 3º)”.

Desde então, o Brasil tem legislado sobre direitos e garantias à pessoa com desabilidade psicossocial com a finalidade de minimizar e eliminar barreiras que possam impedi-las de conduzir livremente o seu exercício da cidadania e dos direitos correlatos. A exemplo, cite-se a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que reforça a necessidade de respeito à pessoa com deficiência quando determina, no art. 11 e art. 12, que a pessoa com deficiência não poderá ser obrigada a se submeter a intervenção clínica ou cirúrgica, a tratamento ou a institucionalização forçada; ou submetido a tratamento ou hospitalização, sem seu consentimento prévio, livre e esclarecido.

A importância da preservação da autodeterminação das pessoas com transtorno mental, além de ser um direito, é também uma questão que invoca a ética do profissional competente pelo tratamento, pois, a consideração da vontade da pessoa na definição do tratamento adequado revela respeito à autonomia, liberdade, e, acima de tudo, integridade da dignidade da pessoa humana.

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