Pular para o conteúdo
EDITORIAL

O que está em jogo na Venezuela?

Editorial Esquerda Online
Brasil de Fato/Lorenzo Santiago

Caro leitor, a grande mídia afirma que há uma ditadura na Venezuela. Denuncia que Maduro fraudou a eleição. Assegura que a oposição respeita as regras e que os EUA estão preocupados com a democracia no país. Muitas pessoas, talvez você mesmo, confiam nessa versão da história. Mas, será que é mesmo assim?

Te convidamos a entender o que se passa na Venezuela com outro olhar, fora da narrativa hegemônica. Opinamos que a extrema direita venezuelana, com apoio dos EUA, está buscando se apossar de forma violenta do poder, assim como tentou diversas vezes no passado recente. O objetivo principal é obter o controle da maior reserva de petróleo no mundo.

Um pouco de história para entender o presente

A chegada de Hugo Chávez à Presidência, em 1998, abriu um novo capítulo na história da Venezuela. Chávez liderou um governo nacionalista de esquerda, com intensa participação popular. Apoiado na mobilização de massas, nacionalizou o petróleo, estatizou empresas da oligarquia local, instituiu programas sociais que transferiram parte da renda petroleira ao povo mais pobre, entre outras medidas de impacto. Com isso, obteve expressiva popularidade.

A guinada à esquerda promovida pelo chavismo enfrentou ferrenha hostilidade da burguesia local e dos EUA. O imperialismo norte-americano e a oligarquia venezuelana não aceitaram a perda do controle do petróleo. Em 2002, tentaram, por meio de um clássico golpe empresarial e militar, derrubar Hugo Chávez do poder. A tentativa golpista foi derrotada por uma monumental mobilização popular. Desde então, a burguesia tradicional e EUA seguiram tentando retirar o chavismo do poder, geralmente adotando métodos violentos.

O processo revolucionário na Venezuela não chegou ao ponto da ruptura completa com o capitalismo, tal como ocorreu como Cuba em 1961. Mas obteve uma conquista valiosa: a independência nacional perante os EUA, a potência imperialista dominante. Essa conquista revolucionária, a efetiva  soberania nacional, permitiu ao país ter avanços sociais e democráticos significativos. Houve limites e problemas sob o governo Chávez, como a manutenção da base produtiva do país extremamente dependente da extração do petróleo. Mas, como mostram os dados, a Venezuela avançou, tendo mais soberania e desenvolvimento social.

Após a prematura morte de Hugo Chávez, Nicolás Maduro chegou à Presidência em 2013, ao vencer legitimamente as eleições. Poucos anos depois, porém, a Venezuela sofreria uma terrível crise econômica. A queda abrupta do preço internacional do petróleo fez desmoronar o PIB do país. A isso se somou a renovada ofensiva dos EUA, em conluio com a velha elite venezuelana, para tentar remover o chavismo do governo.

Sob o comando de Trump, o imperialismo ianque impôs um severo bloqueio econômico, com centenas de sanções e o sequestro de reservas da Venezuela no exterior — o que foi mantido por Biden, que só recentemente suavizou algumas das sanções. O país ficou impedido, em larga medida, de vender seu principal produto no mercado internacional. O resultado inevitável do cerco: a Venezuela afundou numa terrível crise social, que levou à emigração de mais de 7 milhões de pessoas desde 2016. Certamente, houve erros do governo Maduro, mas a principal responsabilidade pela fome em massa que assolou o país é dos EUA, que impôs um criminoso bloqueio.

Ao mesmo tempo em que Trump apertava o cerco econômico, a oposição interna de ultradireita promovia inúmeras ações violentas. Visando a tomada do poder, adotou métodos de guerra civil, como o acionamento de milícias armadas. Houve até mesmo um presidente autoproclamado sem qualquer legitimidade, Juan Guaidó. Importa notar, caro leitor, que a atual líder da oposição venezuelana, María Corina Machado, que está em destaque na mídia brasileira, é, há anos, uma das expoentes e mais radicalizadas líderes da extrema direita golpista.

A extrema-direita vai garantir a democracia?

A crítica que fazemos decorre do fato de que houve repressão e cerceamento de liberdades contra setores da esquerda, movimentos sociais e sindicatos. Somos críticos também da política econômica que está acentuado desigualdades, com algumas camadas privilegiadas, como a cúpula militar e alguns empresários, se enriquecendo, enquanto amplos setores da classe trabalhadora passam inegáveis dificuldades, com salários arrochados.

Parece-nos um equívoco analisar a questão democrática fora do contexto histórico concreto: a realidade de um país bloqueado economicamente pelos EUA e golpeado internamente por uma oposição de ultradireita. Corina Machado e Edmundo Gonzáles, sendo este último o que concorreu contra Maduro na mais recente eleição, não representam uma alternativa democrática. Ao contrário. Estão diretamente associados ao golpismo violento e submetidos aos interesses norte-americanos, tanto que defendem a completa privatização da estatal petroleira, a PDVSA.

Consideramos, caro leitor, que o governo Maduro assumiu, sim, um curso autoritário nos últimos anos. Mas não por reprimir a oposição golpista, o que se justifica plenamente — ou seria, a exemplo de comparação com o caso brasileiro, antidemocrático a decretação de ilegibilidade e prisão Bolsonaro pelo crime de tentativa de golpe de Estado? A crítica que fazemos decorre do fato de que houve repressão e cerceamento de liberdades contra setores da esquerda, movimentos sociais e sindicatos. Somos críticos também da política econômica que está acentuado desigualdades, com algumas camadas privilegiadas, como a cúpula militar e alguns empresários, se enriquecendo, enquanto amplos setores da classe trabalhadora passam inegáveis dificuldades, com salários arrochados.

As corretas criticas a Maduro, contudo, não podem nos fazer perder de vista o fundamental. O que está em jogo na Venezuela, nesse momento, não é o autoritarismo do regime vigente, e sim o perigo de que a extrema direita assuma o poder de forma violenta, destruindo a soberania nacional e as liberdades democráticas ainda existentes e entregando o petróleo e demais riquezas naturais do país aos norte-americanos. Isso seria desastroso não só ao povo venezuelano, mas também ao conjunto da América Latina. O triunfo da ultradireita de Corina Machado fortaleceria Milei na Argentina, Bolsonaro no Brasil, Kast no Chile, entre outras lideranças da extrema direita no continente. Trump, por exemplo, é um entusiasta da queda de Maduro pela oposição.

Sobre atas e golpes

O órgão eleitoral da Venezuela, o CNE, afirmou que Maduro venceu as eleições. A oposição não aceita o resultado, alegando que houve fraude. As atas apresentadas por Corina, que supostamente dariam respaldo à acusação, são notadamente suspeitas, pois não se pode verificar a autenticidade delas. Por outro lado, o Estado venezuelano, justificando que houve ataque hacker à transmissão dos dados eleitorais, ainda não apresentou a apuração detalhada, nem as atas oficiais.

Acreditamos que é correto reconhecer a vitória eleitoral de Maduro, que foi proclamada pela instituição do país com essa atribuição legal. Do contrário, seria confiar nas acusações de uma líder de extrema direita, María Corina Machado. Por outro lado, consideramos necessária a publicação das atas oficiais, de modo a conferir a devida legitimidade ao resultado. Deve interessar a Maduro, em primeiro lugar, comprovar em detalhes a sua vitória eleitoral.

Julgamos, porém, que o centro da questão não são atas oficiais ou as da oposição. O perigo principal é o de eclodir uma guerra civil na Venezuela, encabeçada pela ultradireita. Antes mesmo da máxima instância do judiciário na Venezuela dar seu parecer sobre a apuração eleitoral, Edmundo González se autoproclamou presidente. E Corina Machado conclamou as forças armadas à desobediência e à insurreição, além de incentivar ações violentas nas ruas. Outra vez, escolhem o caminho do golpismo aberto.

Por fim, caro leitor, em nossa opinião, o que deve orientar o posicionamento da esquerda sobre a Venezuela é a defesa da soberania nacional ameaçada e combate ao golpismo da velha oligarquia. A queda de Maduro pelas mãos de Corina Machado só interessa à extrema direita e ao imperialismo norte-americano. A tomada de poder pela ultradireita abriria um capítulo sangrento na Venezuela, de consequências imprevisíveis. Haveria de tudo, menos democracia.