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Colunas

Relato 31: “Na loucura total defendi o cuidado em liberdade!”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Verônica de Lima Ribeiro

Eu nasci em 1972, na cidade de Mandaguari, no Paraná. Morei lá até os cinco anos de idade, quando eu e minha família mudamos para Embu das Artes, no estado de São Paulo. Morei lá até os sete anos, quando mudamos outra vez, agora para Campinas.

Minha mãe era metalúrgica e meu pai, funcionário público. Era uma época muito difícil e também de muitas lutas. Em uma das greves dos metalúrgicos, minha mãe foi mandada embora e meu pai pediu a conta da prefeitura.

Eu sempre fui considerada uma criança perturbada porque eu ouvia vozes e também porque eu não dormia muito bem à noite. Como minha mãe não entedia o que acontecia comigo, ela me batia e acabava que eu dava trabalho na escola também. 

Na escola, eu tinha medo da minha professora, Dona Amália e lá eu também sofria bullying. Os colegas me chamavam de mulher macho porque quando meu irmão arrumava briga e eu o defendia e batia em quem o tivesse ameaçando.  

Fui crescendo e sentia um grande sofrimento. Sentia que crescia minha confusão mental: eu ouvia vozes, minha sexualidade era questionada, sofria preconceito na escola, meus pais estavam desempregados e eu sentia muito medo. Nesse período da minha vida, eu também estava sendo vítima de abuso sexual. Fui abusada até os treze anos de idade e o agressor era um irmão da minha mãe. Naquela época, os pais não falavam sobre sexo com os filhos e esse agressor passou a me dar bebida também. Quando consegui me afastar dele, mamãe morreu. Depois papai morreu.

Eu e meus cinco irmãos ficamos órfãos, ficamos morando sozinhos, cuidando uns dos outros. Era tão grande o meu sofrimento que eu continuava com dificuldades pra dormir e seguia ouvindo vozes. Meus irmãos não se importavam. Eles também estavam sofrendo. Eu não conseguia estudar, mas fui acolhida e aconselhada por uma professora de Artes, a querida professora Rosângela.

Foi então, que aos 18 anos, procurei ajuda médica. Passei a fazer tratamento psiquiátrico e psicológico e, apesar de todas as dificuldades, a luta pelo SUS e pela Reforma Psiquiátrica, também me moviam e davam sentido à minha vida.  Eu comecei a participar de movimentos sociais, do controle social (Conselho Local de Saúde, Conselho Distrital de Saúde e Conselho Municipal de Saúde) e fiz várias formações em educação popular e saúde. Na loucura total defendi o cuidado em liberdade!

Em 2004, comecei a trabalhar na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (FFM).  Tive meu primeiro surto e precisei me afastar. Tive problema com álcool, depressão e uma tentativa de suicídio. Minha família me levava ao pronto socorro, ao centro de saúde e eu não melhorava. Até que o centro de saúde me encaminhou para outro serviço. Então, em 2010, eu comecei meu tratamento na PUC. Eu sempre falava para os psiquiatras que tinha umas vozes que falavam comigo e me deixavam perturbada. 

Em 2019, no início da pandemia, eu começo a ter maus súbitos e delirar. Foi a crise mais intensa e grave que eu já tive e minha família acabou me internando na PUC. Fiquei 15 dias em coma, num total de internação de 40 dias. Eu delirava, ouvia vozes, fiquei amarrada, contida (física e quimicamente): loucura total, em um momento em que nosso país e o mundo estavam passando por momentos difíceis da pandemia da COVID-19. Loucura total, em um momento em que algumas pessoas experimentaram o que é ficar presa dentro da própria casa.

Fiquei desempregada, perturbada, sofrendo muito. Foram momentos difíceis, em que eu só chorava. Nesse momento, minha psicóloga conseguiu me encaminhar para o Núcleo de Oficinas do Trabalho (NOT), um espaço de inclusão pelo trabalho para pessoas em sofrimento psíquico. Eu escolhi trabalhar na oficina da marcenaria. 

Eram tempos difíceis, mas, lá no NOT, eu conseguia fazer minhas refeições, conseguia voltar um pouco à vida social, conseguia fazer amigos e amigas e com eles organizamos juntos a 1ª. Conferência Livre Municipal de Inclusão pelo Trabalho, no âmbito da 5ª. Conferência Nacional de Saúde Mental. A partir daí, voltei a participar nos movimentos sociais de saúde e da luta antimanicomial, na Comissão de Saúde Mental do Conselho Municipal de Saúde.

  Atualmente, participo de uma pesquisa sobre Suporte de Pares com usuários de CAPS III, em Campinas, em um convênio entre a UNICAMP e a Universidade de Yale, como usuária da RAPS, copesquisadora e como Suporte de Pares. Também participo do Interfaces, grupo de pesquisa em Saúde Coletiva na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Todas essas atividades fazem parte do meu Projeto Terapêutico Singular, um projeto de restabelecimento, em liberdade, para eu viver nos diversos territórios, com meus direitos garantidos.

Sou grata a Deus e às pessoas que me querem bem! 

Loucura total!