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Trump 2.0 não será igual a Trump 1.0 – será muito pior

Instagram/Donald Trump

Henrique Canary

Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

Há um elemento ausente nas avaliações sobre as eleições norte-americanas: uma análise dinâmica sobre a evolução do trumpismo nos últimos anos. Não é possível entender o perigo representado pelo republicano tendo em vista somente o balanço de seu primeiro mandato. Muita coisa mudou. E para pior.

Trump foi um dos primeiros a ascender nessa onda e seu primeiro mandato esteve limitado pelas especificidades daquele momento. Não conseguiu concluir seu muro, não alterou significativamente a legislação norte-americana, não mudou radicalmente a correlação de forças na Suprema Corte, enfrentou um ascenso negro que manteve alertas e mobilizadas as melhores forças da sociedade norte-americana.

Em 2016, a extrema-direita mundial estava apenas começando sua ascensão. Atuava de maneira um pouco velada, com “apitos de cachorro”. Seu programa não era claro. Falava muito de corrupção, de “enfrentar o sistema”, mas as partes abertamente fascistas de seu programa continuavam, em geral, encobertas. Trump foi um dos primeiros a ascender nessa onda e seu primeiro mandato esteve limitado pelas especificidades daquele momento. Não conseguiu concluir seu muro, não alterou significativamente a legislação norte-americana, não mudou radicalmente a correlação de forças na Suprema Corte, enfrentou um ascenso negro que manteve alertas e mobilizadas as melhores forças da sociedade norte-americana. Em seu último ano, se deparou com uma pandemia que o puxou para uma agenda interna prática de resolução de crise. Enfim, lhe faltou tempo e as condições não ajudaram. A rigor, o regime político norte-americano e o mundo em geral passaram relativamente incólumes pelo primeiro mandato do bilionário. Sua presença na Casa Branca certamente fortaleceu a extrema-direita mundial e teve impacto na correlação de forças, mas com limites. Algo totalmente diferente está acontecendo agora.

A extrema-direita mundial está em seu auge. Não atua mais com “apitos de cachorro”, mas de forma aberta e até escancarada. Sua pauta inclui todos os pontos clássicos do fascismo histórico: a misoginia, o racismo, a xenofobia, o nacionalismo canalha, a homofobia, o fundamentalismo religioso. Esse amplo programa é agitado abertamente nas redes sociais, está vencendo eleições, conquistando espaço e mobilizando quase metade da população em muitos países.

A crise econômica se aprofundou. As tendências recessivas da economia mundial se aprofundaram, fruto, entre outras coisas, da política de enfrentamento à China via protecionismo econômico. Nem mesmo a precarização geral e a uberização da vida foram capazes de recuperar a taxa de lucro, o que exigirá para o futuro imediato mais contrarreformas sociais e econômicas e aumento significativo da taxa de exploração. Isso só pode ser conseguido pelo enfrentamento radical contra os movimentos sociais, as nacionalidades oprimidas, os povos racializados e a destruição da pouca legislação social que resta no mundo. Além, é claro, da suspensão de qualquer agenda verde, por mais limitada que seja.

Com a piora da situação econômica, se tensionaram também as relações políticas e militares no mundo. Estourou a Guerra da Ucrânia, que radicalizou o divórcio entre o bloco ocidental (basicamente, Estado Unidos, Europa Ocidental e Japão) e uma espécie de “novo eixo do mal”, com China, Rússia e Irã à frente. Os blocos internacionais estão mais definidos, mais articulados e mais decididos. É por isso que Trump cogita forçar os membros da OTAN a investirem 3% do PIB em defesa, ao invés dos atuais 2%. Ao que tudo indica, gestam-se as condições para um enfrentamento de maiores dimensões. Como diz o famoso escritor e roteirista George R. R. Martin em seu livro Fogo e Sangue (adaptado para a televisão como seriado A Casa do Dragão): “as sementes da guerra muitas vezes são plantadas em tempos de paz”.

A extrema-direita mundial não é mais um movimento amorfo e acéfalo com uma vaga referência em figuras como Trump, Orbán e Le Pen. Hoje é uma verdadeira “Internacional Fascista”, com organicidade, articulação, encontros, financiamento estável, e uma forte iniciativa política.

A extrema-direita mundial não é mais um movimento amorfo e acéfalo com uma vaga referência em figuras como Trump, Orbán e Le Pen. Hoje é uma verdadeira “Internacional Fascista”, com organicidade, articulação, encontros, financiamento estável, e uma forte iniciativa política. Além disso, conta vitória atrás de vitória, mesmo onde seu triunfo decisivo foi adiado, como na França. Uma vitória de Trump teria o efeito de um rastilho de pólvora, com muito mais impacto do que teve em 2016. Por isso hoje a tarefa número 1 dessa “Internacional Fascista” é a eleição do republicano. Contam com um efeito dominó, uma reação em cadeia que, de fato, pode ocorrer.

Mesmo na questão do Oriente Médio, que tanto já sofreu com bombardeios democratas, não se pode dizer que um novo governo do republicano será “mais do mesmo”. No famoso debate onde se enfrentaram recentemente, Trump declarou que Biden é um “palestino fraco” que não deixa Israel “terminar o trabalho”. Assim, se no primeiro mandato de Trump tivemos apenas provocações simbólicas, como a transferência da Embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém, para seu segundo mandato podemos esperar o acirramento do genocídio em Gaza, como financiamento e armamento virtualmente infinitos de Israel.

Se em 2016 o fascismo ainda era uma força relativamente marginal entre a grande burguesia, em 2024 uma parte significativa do grande capital aderiu abertamente a esse projeto. Não é a toa que Elon Musk, dono do falecido twitter e conhecido golpista mundial, já declarou que doará US$ 45 milhões por mês para a campanha de Trump. Mas não é só ele. Os “mercados” entenderam perfeitamente nos últimos anos que o fascismo oferece excelentes condições de lucratividade, a despeito da crise política e institucional que podem gerar. Nada disso importa, são apenas ruídos de um rio de dinheiro que segue fluindo. Por isso, um setor importante da burguesia mundial girou para esse projeto, o alimenta politicamente e o financia.

O regime político norte-americano se mostrou incapaz de resistir ao avanço de um projeto fascista. A cultura armamentista, o racismo estrutural, o individualismo exacerbado, a islamofobia, o antissemitismo, a xenofobia crescem em meio a um regime que foi incapaz de punir os responsáveis pela invasão do Capitólio de 06 de janeiro de 2021. A Suprema Corte norte-americana não se contentou com o papel de mera expectadora da tentativa de golpe e decidiu assumir um papel ativo, porém, no sentido contrário do que fez, por exemplo, o STF no Brasil. Lá, fizeram questão de inocentar explicitamente Trump e garantir juridicamente sua elegibilidade. Isso demonstra o grau de crise da hegemonia imperialista. Mas é exatamente sobre esse tipo de crise que opera, cresce e se fortalece o fascismo. O recado dado a Trump pela Suprema Corte foi claro: pode tudo.

Desde seu ponto de vista, os métodos do fascismo, quer dizer, da guerra civil aberta contra o movimento de massas, são absolutamente necessários e eficazes e, desta vez, muito mais aplicáveis do que há 8 anos atrás.

Por tudo isso e muito mais, Trump 2.0 não será a mera continuidade ou repetição de Trump 1.0. O republicano vem muito mais forte, muito mais radicalizado, com muito mais apoio internacional, tendo que enfrentar uma situação muito mais difícil, com um regime liberal muito fragilizado e uma espécie de “carta branca” velada da Suprema Corte. Desde seu ponto de vista, os métodos do fascismo, quer dizer, da guerra civil aberta contra o movimento de massas, são absolutamente necessários e eficazes e, desta vez, muito mais aplicáveis do que há 8 anos atrás. Se não entendemos seu fortalecimento e sua passagem a um programa abertamente fascista, não conseguimos explicar seu retorno quase mítico, envolto – para piorar – em um atentado que pode ter o efeito da facada de Bolsonaro ou do incêndio do Reichstag de 1933. A imagem de um Trump ensanguentado com o punho erguido em frente à bandeira norte-americana pode ser muito mais do que um peça publicitária. Pode ser o símbolo de um novo e terrível período na história mundial. Nada, absolutamente nada é mais importante do que a sua derrota.