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Economia e a Luta de Classes no governo Lula – Parte 2

Agência Brasil

Gabriel Santos

Gabriel Santos é nascido no nordeste brasileiro. Alagoano, mora em Porto Alegre. Militante do movimento negro e popular. Vascaíno e filho de Oxóssi

“o que acontece com governos que adotam a receita neoliberal e tiram direitos do povo: é a extrema-direita que tira vantagem.”
Gleisi Hoffmann

Ao olharmos nosso país no mercado mundial precisamos o caracterizar a partir das relações que o mesmo estabelece com outras Nações. Dentro do modo de produção capitalista, os diferentes Estados burgueses, em suas representações sócio-históricas enquanto Estados Nações, ocupam posições distintas no cenário político-econômico mundial. Essas posições se dão a partir da inserção central ou periférica, e do papel de cada país no mercado mundial, em outras palavras, dependente da chamada divisão internacional do trabalho1.

Estas divisões foram adquiridas a partir dos processos de formação destes Estados, da relação que se estabeleceu entre eles no nascimento do capitalismo, e na transição deste a sua fase superior, o imperialismo. Essa fase superior do capitalismo, de acordo com Lênin, pode ser caracterizada por: preponderância do capital financeiro e fictício, tendência à formação de monopólios, e uma disputa internacional entre os Estados por mercado.

Para observar a posição de cada Estado-Nação no imperialismo é preciso ver: sua história e inserção no período anterior; o desenvolvimento de sua indústria, recursos humanos, tamanho e dinâmica da economia, estoque de capital acumulado; a capacidade desse Estado em manter sob seu controle e influencia outros Estados, assim como manter em relação aos outros uma independência. Assim, podemos dizer que no imperialismo o mundo se divide basicamente entre os países imperialistas: os que exercem poder político e militar sobre outro, por meio de chantagem financeira, ocupações militares, controle do mercado mundial; e os países periféricos2.

Ao olhar para o Brasil e sua posição econômica precisamos ver qual nosso grau de autonomia diante do mercado mundial, qual o grau de desenvolvimento tecnológico dentro de nossas fronteiras, como se dá o processo de exportação e importação de capital, qual o desenvolvimento de nossas forças produtivas. Nosso país é um Nação periférica no cenário mundial, não temos as regras do jogo em nossas mãos. Nossa formação econômica social é a de um capitalismo desigual e dependente. Desigual, por que as regiões do país se desenvolveram de formas diferentes, além de termos um atraso colonial em relação ao capitalismo central. Dependente, significa que esse atraso faz com que nosso desenvolvimento dentro desses marcos dependa sempre de nossas relações com o exterior, nosso país tem um papel no mercado mundial de exportar matérias primas e importar produtos acabados.

Os limites de nosso regime fiscal

Os regimes fiscais que se estabelecem em formações econômicas e sociais como a nossa, são fruto de uma soberania restringida. Nossa independência política e econômica é limitada pelas potências imperialistas.

Ao olharmos para a América Latina podemos observar em diferentes países o uso de uma lógica fiscal limitada e dependente. Ela se expressa em alguns aspectos, o primeiro deles diz respeito às estruturas tributárias baseadas em impostos indiretos de caráter regressivo. Na prática essa carga tributária regressiva libera aqueles mais ricos de pagamento de impostos equivalentes a sua renda. E por meio da taxação indireta coloca sobre bens de consumo cotidianos um dos principais meios de financiamento público que financia o fundo público. A consequência é que as parcelas populares acabam sendo os que sofrem com a maior carga tributária.

O segundo elemento constituinte dos regimes fiscais dependentes é a desoneração tributária do circuito primário-exportador. Os grandes negócios, em especial os agrários, ficam isentos do pagamento de tributos na exportação. O que coloca para a parcela assalariada da população a carga de sustentação do orçamento estatal.

Por fim, o formato de refinanciamento das dívidas públicas. O modelo atual, foi uma política que se estabeleceu no regime ditatorial e não foi modificado. Baseado na “recompra” garantida dos títulos da dívida pública, esse modelo é firmado na expansão contínua da dívida, de uma forma autônoma da capacidade produtiva do país, e do financiamento de bens de capital.

Esse modelo teve consequências gigantescas, primeiramente o crescimento da dívida bruta mesmo em ambiente não deficitário. Somasse a isso, o fato da dívida assumir uma condição de agente financeiro, seja anulando riscos, os afirmando, e principalmente transferindo valor líquido da economia brasileira que pertence ao Estado para os bolsos diretos de burgueses rentistas.

O atual sequestro do orçamento público, um sistema tributário regressivo, o atual modelo fiscal brasileiro, onde se valoriza um liquidez de capital extremamente volátil e de curto prazo, a aquisição de títulos da dívida pública via as altas taxas de juros, são parte da integração de nosso país no atual mercado mundial, notado por uma acumulação de financeira mundializada.

Como consequência dessa integração iniciada nos anos primários da Nova República, vimos em nosso país aprofundar sua vulnerabilidade externa. As novas exigências da divisão internacional do trabalho, e do novo regime de acumulação internacional, traz uma nova roupagem para as trocas desiguais, e a dependência comercial e tecnológica que baliza a relação centro e periferia do sistema mundo. Vimos também o surgimento da dependência de sistemas financeiros e a transferência de excedentes na forma de renda. As normas do Banco Mundial, são porta voz dos interesses financeiros do imperialismo, e uma forma de limitar as ações dos governos de países periféricos.

Os Estados da periferia da capital sofrem uma transferência permanente de suas riquezas, além de não exercer controle de seus Fundos Públicos, tendo esses subordinados às políticas macroeconômicas ditadas pelos países imperialistas. No caso brasileiro, essa dinâmica monetária-financeira do padrão de acumulação global termina por impor uma baixa taxa de crescimento econômico, além de ampliar a concentração de riqueza, e manter uma alta taxa de juros que contribui para a desindustrialização do país.

Ao longo da Nova República, o orçamento público foi sofrendo com cada vez mais tentativas de restrição por meio de medidas jurídicas e leis3. Esse processo avança até a implementação da Emenda Constitucional 95/16. Máxima expressão do rapto do orçamento público, e do regime fiscal de dependência, comprometendo o orçamento fiscal com os gastos financeiros, e diminuindo ao máximo os gastos sociais. O atual arcabouço fiscal, apesar de melhores condições, não inverte a lógica central de asfixia do orçamento público, representando uma continuidade do regime fiscal de dependência com o tripé neoliberal mantido: metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuante.

A crise estrutural da economia brasileira e a disputa pelo orçamento

A Nova República, e a Constituição de 1988, inauguram um modelo de proteção social progressivo inédito em nosso país. Os gastos sociais são ampliados, mas isso se dá em cima de um sistema tributário conservador, que estabelece uma arrecadação regressiva incapaz de sustentá-lo. Existia, portanto, um descompasso entre a linha política (universalização e gastos sociais) que se expressava como materialização da norma jurídica, e a linha econômica (modelo neoliberal).

Uma disputa pelo orçamento público se torna a regra padrão da Nova República, onde de um lado vemos o estabelecimento de gastos sociais, como direitos trabalhistas, previdenciários, a seguridade social, educação e saúde, e do outro o superávit primário e a transferência da arrecadação para um grupo decimal de burgueses por meio da dívida pública.

A correlação de forças sociais desde o fim da ditadura militar organizava uma maioria popular favorável à gratuidade da educação e da saúde pública, porém essa correlação de forças não foi forte suficiente para criar a possibilidade, ou, até mesmo, uma estratégia de superação do neoliberalismo. Apesar disso, a burguesia e seus representantes no parlamento tinham dificuldades para desvincular receitas, e tiveram que adotar a tática de progressivamente ir atingindo os gastos públicos.

Os partidos políticos de direita, a mídia, a burguesia, passaram a fazer uma disputa ideológica buscando uma nova maioria a seu favor, coesionando em torno da ideia que os direitos sociais e sindicais geravam gastos desnecessários enquanto não entregavam resultado e eram um atraso para o país. Afirmavam que o Estado havia crescido demais e sufocava o indivíduo, que agora precisava de liberdade e menos burocracia para empreender. Assim como cabia ao mercado gerenciar e atuar já que o Estado era inoperante. A solução para isso, diminuir o Estado com privatizações, e retirar direitos sociais por serem muito caros.

Os governos petistas buscaram o atendimento das demandas sociais e a universalização dos direitos sociais. Houve ao mesmo tempo uma tímida redução da desigualdade de renda, enquanto a concentração de riqueza se manteve estável. Os direitos conquistados, o aumento de renda da classe trabalhadora e do povo, não foram financiados pelo confisco de propriedade ou de renda da elite econômica. Tampouco foram por mudanças estruturais de nossa economia. Foram frutos de possibilidades conjunturais e capacidade política das gestões petistas.

Assim, a universalização dos serviços sociais preconizada na Constituição de 88 e materializada nos primeiros anos de PT chegou ao seu limite pelo mesmo motivo que trouxe também uma ampliação com precarização: a ausência de um modelo econômico que sustentasse esse ampliamento. Não se mudou o foco de nossa economia deixando de ter foco primário-exportador para se tornar uma economia industrializada, e se manteve o sistema de imposto regressivo.

O marco da Nova República é um Estado redistribuidor de mais-valia social para além das capacidades produtivas do país. Essa diferença entre a política expressa na norma jurídico-política, e a economia precisava ser resolvida mais cedo ou mais tarde.

A burguesia buscou uma solução enquanto classe para isso, e assim gerou o Golpe contra Dilma. Um movimento político para resolver seus interesses: ampliar a taxa de lucro. Com o Golpe a nossa elite econômica buscava ampliar sua mais valia de forma direta, destruindo direitos trabalhistas e a capacidade de organização da classe trabalhadora. Mas também ampliar o “espaço” de movimentação do capital, abrindo novas fronteiras com privatizações e um abocanhamento maior do orçamento federal, retirando uma série de programas sociais vistos como gastos.

A burguesia tentou estabelecer uma correlação entre a política e o modelo econômico, porém não havia capacidade de estabelecer uma nova norma. Coube então ao fascismo brasileiro a tentativa de terminar de efetuar o programa político de destruição de direitos sociais. Porém, a ação política do fascismo devora aqueles que o ajudaram a pôr no mundo. Logo, a norma jurídico-política do fascismo, literalmente a força, para se estabelecer necessita uma mudança completa de regime político, o que ia de encontro ao interesse de parte de nossa burguesia nacional, de parte da burguesia imperialista, de parcelas institucionais do Estado (como o STF), e ia de encontro a existência de grupos da grande mídia, e de elementos nascidos dentro da própria Constituição de 1988, como de diversos partidos da própria direita.

A situação atual é que graças a existência de uma figura com a capilaridade de Lula, que expressa as contradições da luta de classes na segunda metade do século XX, e da Frente Ampla liderada pelo PT, foi possível derrotar eleitoralmente o fascismo, assim como a tentativa de um novo Golpe de Estado.

Porém, a situação de crise se mantém. Ela se expressa por dois motivos: primeiro pelo fato da crise na norma jurídico-política não ter sido resolvida e nem se estabilizado, algo expresso na flagrante crise institucional, na crise de governabilidade e do modelo presidencialista, e na ferrenha disputa em torno do orçamento. E segundo, pela coalizão política que se forma em torno de impedir a consolidação do fascismo no Poder, não ter acordo sobre as disputas em torno dos rumos do orçamento federal.

A luta de classes começa pelo estômago

Direitos humanos começam no café da manhã, disse uma vez Léopold Senghor, um dos grandes pensadores do século XX. Podemos dizer, que a luta de classes começa pela barriga. Um governo que não enfrenta o tema da fome e das necessidades de alimentação básica da população é um governo exposto. Para o governo Lula seguir enfrentando a fome deve ser estratégico para sua sobrevivência e ganho de popularidade, assim como a geração de empregos, diminuição do custo de vida, e aumento de salário.

O governo sem incentivar a organização popular, se encontrará refém do congresso, com possibilidades de ação e confronto ao neoliberalismo limitado. Enquanto isso, a extrema direita segue se mobilizando e confrontando o governo nas ruas e parlamento. Para reverter o quadro histórico que vivemos é necessário unidade em torno de bandeiras democráticas, bloqueando a extrema direita, mas também uma construção de campo popular que confronte os ideários neoliberais. Algo possível apenas com a movimentação extraparlamentar das forças culturais, políticas e sociais mais vivas de nosso país.

A construção, dentro das possibilidades atuais, de um novo regime de política macroeconômica é uma necessidade. Desafiar o tripé neoliberal, e buscar acúmulos de forças sociais para superação do padrão de desenvolvimento nacional baseado no aprofundamento de nossa dependência no mercado mundial é uma batalha que temos que travar. As forças de esquerda podem e devem buscar mais do que apenas governar sob as ordens do modelo liberal.

A possibilidade da construção de um novo Brasil, que seja superior e também a superação dos padrões estabelecidos nesta terra desde sua invasão, é uma tarefa gigantesca. Caminhar para isto é uma estrada longa, mas que podemos dar os primeiros passos nos tempos atuais.

É necessário que o Governo Federal assuma a vanguarda de um movimento institucional e político que coloque políticas públicas, gastos sociais e o Estado, como centro de construção de um novo modelo de crescimento, desenvolvimento social e ecológico para o Brasil.

1 É válido apontar que o lugar de um país no sistema internacional de Estado não corresponde a um sinal absoluto de igual com o papel que o mesmo ocupa na divisão internacional do trabalho, apesar disto ser verdade na maioria dos casos, podem e existem exceções. Isto se dá porque política e economia são campos distintos. Apesar de intrinsecamente ligados, eles não são a mesma coisa, existe uma relação dialética entre eles. Na medida em que um determinado país avança suas relações políticas de autonomia diante de outros, e muda suas relações com determinados países, ele passa a avançar em sua dependência econômica, o inverso também é verdadeiro para esta equação. Tal país pode ter uma posição subalterna e dependente na divisão internacional do trabalho, mas no cenário geopolítico ter uma posição independente em relação ao imperialismo. Caso hoje da Venezuela e Irã, entre outros.
2 Existem uma variedade de conceituações dentro da categoria de países periféricos, que se relaciona com maior ou menor grau de liberdade política em comparação ao capitalismo. Podendo ser coloniais (Palestina), semicoloniais (Sudão, Iraque, etc); Protetorados (Panamá, etc); sub metrópoles (Coreia do Sul, etc); híbridos (Brasil, etc), Independentes (Cuba, Venezuela, etc).
3 Podemos citar desde a perda da capacidade federativa dos estados, Lei 9496/97. A Lei de responsabilidade fiscal 101/2000. A Emenda Constituição 95/2016