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Colunas

Relato 30: “Usuário do SUS – uma categoria política de luta”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Monica Vasconcellos Cruvinel, usuária da RAPS

Sou usuária dos serviços substitutivos de saúde mental, no Brasil, desde 2001. Atualmente sou atendida em um CAPS, em Campinas, e assim como muitas pessoas usuárias passei por diferentes experiências de tratamento, de cuidado e também, infelizmente, assim como muitos de vocês que são meus pares, experimentei a violência, a discriminação, a internação involuntária, a privação de liberdade e outras estratégias que jamais poderiam ser chamadas de tratamento ou de cuidado.

Importante pensarmos o termo “usuário”, como uma categoria política e social de luta e participação, consensuado coletivamente pelas pessoas do campo da saúde e da saúde mental que lutam pelo SUS, pela Reforma Psiquiátrica no Brasil e pela Luta Antimanicomial. É com o termo “usuário” que nós, pessoas que usamos os serviços do SUS, podemos participar do controle social, dos conselhos de saúde, das comissões dos conselhos, das conferências e é também com essa categoria “usuário” que podemos participar de movimentos sociais, coletivos, associações em defesa dos direitos das pessoas com transtornos mentais e/ou em sofrimento psíquico e pleitear proteção, legislação, financiamentos e ações políticas e sociais para nós.

Ao contrário de alguns profissionais da saúde mental, nós pessoas usuárias não estamos no campo da saúde mental por escolha, estamos por contingências, necessidades e até mesmo, por falta de opção. Se os profissionais que nos cuidam estudaram sobre saúde mental, têm um conhecimento acadêmico, teórico e prático de como lidar com o nosso sofrimento psíquico, nós pessoas usuárias temos a experiência do sofrimento em si. Na pele! Nós, pessoas usuárias, sabemos o que é ter uma crise, o que é ter um surto, o que é ser medicado, o que é ser hiper medicado, o que é sentir efeitos colaterais dos medicamentos, o que é ser contido, o que é ser privado de liberdade, o que é ser escutado ou não ser escutado, o que é ser acolhido pela família, pelo serviço e pela sociedade e o que é deixar de ser acolhido.

Nós usuários também sabemos, pela experiência, muitos dos caminhos que podemos trilhar para compor o nosso projeto terapêutico singular, como por exemplo, sabemos que temos direito a passe, sabemos também como é difícil conseguir esse passe atualmente, sabemos que podemos ser atendidos no CAPS, mas também frequentar os Centros de Convivência, os postinhos de saúde. Temos colegas que vivem em residências terapêuticas, abrigos, alguns de nós já fomos atendidos no consultório na rua, sabemos que temos direito a alguns medicamentos de forma gratuita, que podem ser dispensados no postinho, no CAPS ou na farmácia de alto custo, e sabemos também como está difícil conseguir alguns destes medicamentos. Temos criado, uma rede de apoio paralela, uma rede de afeto e cuidado muito potente.

Temos assistido ao desmonte e à precarização dos serviços que frequentamos em um misto de tristeza e terror. Vemos os profissionais que cuidam da gente exaustos, burocratizados, com medo de assédio, distante de nós. Assustados também. Vivenciamos a rotatividade dos profissionais dos serviços por conta dos baixíssimos salários, das perseguições, do excesso de trabalho. Sentimos a dor de perder nossos vínculos. Nos preocupamos com a saúde e com a vida dos que cuidam da gente. Nós, pessoas usuárias, assistimos atônitas como os serviços encampados por OSS estão ficando violentos e maltratando trabalhadores e usuários. Temos sentido que, como dizia Hanna Arendt, o mal não necessariamente é praticado por pessoas monstruosas, ele é, de modo geral, praticado por pessoas comuns, ordinárias que “cumprem ordens”.

Sem fazer generalizações e considerando que pessoas usuárias são seres humanos passíveis de erros como qualquer pessoa, posso dizer que pela minha experiência que, em geral, o cuidado de um usuário costuma ser acolhedor sem infantilizar, sem tutelar e sem fazer juízo de valor. É bem tranquilo falar para um usuário que decidimos parar de tomar determinado remédio. Usuários conhecem o peso dos medicamentos. Na maior parte das vezes, eles não desacreditam ou deslegitimam nosso problema ou nossos delírios e paranoias. Agem como quem conhece a concretude de um delírio e de uma paranoia. Agem como quem sabe o quão real é um delírio ou uma paranoia e o quanto eles podem causar sofrimento.

Pessoas usuárias, em geral, também são muito pragmáticas. É bem improvável que ao contar algo muito triste e complexo para algum amigo usuário, ele nos dê como resposta: “eu entendo”; “eu te escuto”; “eu não posso imaginar a tua dor” – entre outros clichês. Além disso, nossos pares, quando necessário, sabem nos dizer não e nos dar limites, de modo geral, sem constrangimento ou culpa.

Nós usuários, provavelmente porque saímos de alguma crise em algum momento da vida, temos a noção da impermanência, sabemos que as crises vêm e vão. E essa percepção nos permite entender que todo mundo entra e sai de crises ao longo da vida. Crises mais intensas ou menos intensas. Mais longas ou mais breves. Talvez, essa percepção, nos permita manter amizades mesmo quando as pessoas se encontram muito desorganizadas. Sabemos que vai passar. Isso, de modo algum é romantizar ou glamourizar a loucura, porque também sabemos, em nossos próprios corpos, o custo e o sofrimento de cada crise.

Esse apoio que nós damos uns aos outros é feito cotidianamente de maneira informal, fraterna e solidária a partir de um conhecimento sofisticado que nós temos a respeito do cuidado em saúde mental que queremos. Por sentirmos na pele o que é ter um transtorno mental, no Brasil, por frequentarmos um CAPS, por sabermos o que é ser atendido por uma equipe multiprofissional, em liberdade, de forma humanizada, por conhecermos os caminhos que precisamos percorrer em busca de nossos direitos, tudo isso, faz de nós pessoas que possuem um saber e um conhecimento singular. Um saber e um conhecimento diferente do saber científico que os profissionais têm e não menos importante.

Portanto, é imprescindível que nossa experiência com o sofrimento psicossocial seja validada como uma forma legítima de conhecimento. Conhecimento esse que, junto com o conhecimento dos profissionais e dos nossos familiares, pode promover saúde, contribuir para a melhoria do nosso cuidado, melhoria de nossa qualidade de vida e luta por políticas públicas no campo da saúde mental.

Para que o notório saber dos usuários seja usado em nossa Rede de Atenção Psicossocial, de forma oficial, devemos lutar por políticas públicas que valorizem os saberes das pessoas usuárias e busquem espaços de trabalho para essas pessoas que lhes gere renda digna, trabalho digno, moradia digna, habitação digna. E isso só é possível através de luta.

Vale lembrar que empoderamento e protagonismo são termos ideológicos, bastante usados pelos neoliberais, que reivindicam a autonomia individual e fragmentam a luta coletiva. A palavra protagonismo, etimologicamente, deriva do grego protagonistes, em que “protos” significa principal ou primeiro e agonistes significa lutador ou competidor. Penso que no Brasil, com nosso histórico de lutas desde os tempos da colonização, passando pelas lutas de redemocratização da época da ditadura civil-militar e chegando agora, na luta que estamos travando contra o fascismo, não cabe um ator principal entre nós, precisamos lutar juntos, em aliança, pessoas usuárias, profissionais, familiares, pela emancipação da classe trabalhadora, sem nos esquecermos que nós usuários, somos parte da classe trabalhadora. 

Do mesmo modo, podemos usar outro termo que não o termo empoderamento de usuários para o contexto brasileiro, já que sabemos que poder não se transmite, poder se conquista com lutas sociais e coletivas. No caso do Brasil, onde temos a experiência da Luta Antimanicomial e da Luta pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, mesmo que tenhamos realizado conquistas inconclusas e repletas de lacunas e contradições, experimentamos a desinstitucionalização de milhares de pessoas e a implementação de serviços substitutivos ao manicômio em muitos territórios, garantindo cuidado laico, gratuito, universal, integral, equânime, no SUS, público de base comunitária e em liberdade com a participação conjunta entre usuários e outros atores sociais.

Penso, portanto, que nós pessoas usuárias da saúde mental da RAPS e do SUS, no Brasil, não lutamos por avanços individuais, por poder ou protagonismo. Considerando a história brasileira de luta pela saúde pública, de luta antimanicomial e antiproibicionista, nós, usuários, lutamos contra o preconceito e contra o estigma que sofremos, lutamos contra as diversas violências e violações de direitos das quais somos vítimas, lutamos pelo direito de sermos atendidos no SUS, em liberdade, lutamos por trabalho e renda digna, que considerem nossas necessidades e especificidades, lutamos por moradia, educação, acessibilidade, pela redução de danos como princípio ético do cuidado e lutamos contra todas as estruturas manicomiais e prisionais que se expressam e se reconfiguram na sociedade capitalista. Nós lutamos também pela nossa emancipação coletiva e para que nossos saberes e nossas experiências sejam reconhecidos e validados no nosso próprio cuidado e no cuidado de nossos pares.

Concluo fazendo um convite a todas as pessoas que lutam no campo da saúde mental antimanicomial para pensarmos que tipo de relações estabelecemos atualmente com as pessoas usuárias e como essas relações poderiam ser transformadas de modo a inclui-las na promoção de saúde nos serviços que usamos. Que a gente possa refletir como podemos possibilitar que as pessoas usuárias sejam agentes de seu próprio cuidado, junto com profissionais e familiares. Importante reivindicarmos um trabalho digno às pessoas usuárias e ao mesmo tempo possibilitar que elas ocupem um lugar ativo e legítimo nas lutas sociais contemporâneas. Vale pensarmos, de modo crítico, como é ter como aliada e companheira de luta uma pessoa em sofrimento psicossocial, sem tutela e sem considerá-la como objeto de pesquisa. Que possamos refletir juntos que relações de trabalho desejamos para nós, incluindo nesse “nós” as pessoas usuárias. 

Convido todas as pessoas da Luta Antimanicomial, dos diversos movimentos e coletivos a pesarmos em que momentos as pessoas usuárias são chamadas a atuar. Afinal, no 18 de maio, em palestras, em seminários e webnários, em eventos e congressos, dá a impressão de que todo mundo quer um usuário para chamar de seu e acaba que nós, pessoas usuárias, somos muitas vezes usadas como tokens, chaveirinhos, ou deixadas sozinhas nos enfrentamentos mais difíceis quando os profissionais dizem estarem com muito trabalho ou terem medo de assédio.  Nós já perdemos nossos trabalhos formais e ainda assim, somos vítimas de assédio em decorrência de nossa luta por direitos.

Importante pensarmos como as pessoas usuárias poderiam ser vistas para além das hierarquias estabelecidas pelo saber médico, para além da categoria usuário. Que a gente não se esqueça que o reconhecimento e o trabalho digno têm uma importância para a emancipação das pessoas usuárias e que a luta social e coletiva nos localiza no mundo e na sociedade, nos traz um sentido de vida que ultrapassa nossas necessidades individuais e nos faz sentir parte de um grupo e de uma coletividade. Ser parte é ser um sujeito social, é estar na luta constante para ser um sujeito de direito. Que a luta pela liberdade de todas as pessoas nos una e seja nosso principal objetivo. Que a gente continue semeando e colhendo os sonhos de uma sociedade sem manicômios!