Pular para o conteúdo
Colunas

Relato 29: Meu nome é José

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, feminista, militante da Resistência/Campinas e da Coletiva Nacional de Mulheres Antimanicomiais – CONAMAM;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Ele chegou sem documentos e desacreditado pelo sistema de saúde. Durante uma reunião, todos os profissionais estavam apavorados com a ideia de recebê-lo em cinco dias no CAPS Adulto, depois de sua saida desarticulada e desorganizada do Hospital Psiquiátrico. O ano era 2013, e essa era minha primeira experiência como profissional de ensino superior.

Sua passagem por vários serviços, entre eles hospitais psiquiátricos com histórico de maus tratos e estavam no processo de desinstitucionalização, tinham um encaminhamento: ficar internado sem data de saída. Segundo muitos, aquele homem, não havia mais solução e que seu destino estava traçado entre a medicação e a restrição. Ele era visto como um caso perdido, um exemplo vivo do fracasso do sistema.

Quando chegou ao nosso serviço, assim como eu, ambos estávamos tentando reconhecer aquele lugar que tinha como ideia a extensão do cuidado em liberdade, era um espaço novo para nós dois, repleto de desafios e incertezas.

Sua chegada foi assustadora. Sua única forma de expressão verbal era através da luta e fuga, com ameaças e gritos, os objetos ao seu redor tornavam-se a extensão de sua dor, sendo quebrados por onde passava. Era como se ele estivesse em constante batalha, preso em um ciclo interminável de sofrimento.

Todo o caos encapsulado em uma pessoa, anos de sofrimento e silenciamento. Houve momentos em que eu pensava em não ir trabalhar. O som de sua voz representava todos os questionamentos de um sistema de saúde que nunca o ouviu.

Ele chegou com uma dosagem alta de medicação, e hoje, com mais de 10 anos de experiência em saúde mental, entendo que foi uma das mais altas que já presenciei. Naquele período, contávamos com uma estrutura de política pública deficiente. Pensávamos, enquanto equipe, o que fazer, e eu, como profissional, me revirava na cama tentando compreender o caso e como contribuir. Era desesperador ver tanta dor, que também estava se tornando minha.

José, que não tinha RG ou certidão de nascimento, estava ali como a expressão do desrespeito ao direito de ser alguém. Ele estava ali, e eu só queria desistir.

Todos os profissionais estavam cansados e a equipe desmotivada pela avalanche de informações externas. Foi então que decidimos fazer diferente.

Decidimos nadar contra aquela corrente, com um olhar firme e determinado, ultrapassando as desistências anteriores e foi ai que começamos a enxergar o José.

Durante anos ele foi esquecido por todo sistema, lembram – se que ele não tinha documento? Pois bem, nem a polícia científica descobriu sua origem ou local de nascimento, mas nossa equipe multiprofissional, apesar das mazelas públicas, conseguiu, agora José já se chamava José, a interrogação de seu nome já não era posto como delírio, era real. Após isso, conseguimos acesso aos seus direitos civis e sociais, agora ele tinha uma identidade.

Também decidimos nos ouvir mutuamente e investir pesado no vínculo afetivo. Sabíamos que a construção de um relacionamento baseado no respeito e na empatia poderia ser uma aposta para alcançar qualquer progresso, ultrapassamos a ideia de tratar José como um paciente, mas exergar – lo como um ser humano, com uma história, sentimentos e desejos.

Dia após dia, com muita paciência e dedicação, começamos a ver pequenas mudanças. O olhar de José, antes perdido e cheio de medo, começou a ganhar um brilho de esperança. Ele começou a se abrir, a confiar em nós, e pouco a pouco, a sua luta interna foi se transformando. Localizamos sua irmã, organizamos um encontro. Investimos em camiseta de times, que ele gostava muito.

Nossa jornada com José foi uma lição sobre o poder do cuidado em liberdade e da importância do vínculo afetivo na recuperação. Ele nos mostrou que, não somos uma receita, somos gente.

Nossa jornada com José foi uma lição sobre o poder do cuidado em liberdade e da importância do vínculo afetivo na recuperação. Ele nos mostrou que, não somos uma receita, somos gente.

José encontrou-se com a dignidade e um manejo que durou 2 anos ou mais.Anos de muita verdade e afeto entre ele e os profissionais que se acolhiam. Eramos nós por nós, a gente por ele, todos contra o sistema manicomial.

Hoje, olhando para trás, vejo como essa experiência moldou minha carreira e minha visão sobre a saúde mental. José não foi apenas um paciente; ele foi um professor que me ensinou sobre a resiliência do espírito humano e a importância de nunca desistir de ninguém.