Contra a asfixia manicomial e na luta por uma vida com saúde mental

Em maio de 2025, época de lançamento do presente livro, completa-se dois anos do assassinato de Genivaldo de Jesus dos Santos, brutalmente torturado e morto pela Polícia Rodoviária Federal. Homem, negro, trabalhador e pessoa em sofrimento psíquico foi trancado por três policiais no porta-malas e submetido a inalação de gás lacrimogêneo. Genivaldo foi abordado por trafegar de motocicleta sem capacete na BR-101, na cidade de Umbaúba, localizada no estado de Sergipe¹.

A polícia alegou que Genivaldo precisou ser contido, por apresentar um suposto surto psiquiátrico. Na análise preliminar do Instituto Médico Legal (IML) constava que Genivaldo morreu por asfixia e que a causa mortis foi insuficiência aguda secundária. As imagens da violência e morte de Genivaldo circularam nas redes sociais e provocaram indignação. Que tipo de sociedade é essa, onde um homem negro é morto por asfixia mecânica e insuficiência respiratória à luz do dia, sem qualquer atitude que pudesse coibir a ação desses agentes públicos.

Essa não é a primeira e nem a última vez que pessoas em sofrimento psíquico sofrem tortura e violência sendo levadas a morte. Em reportagem divulgada pelo Jornal O Globo², de 29 de setembro de 2023, o responsável pela Comunidade Terapêutica Kairus Prime, localizada em Embu-Guaçu, no estado de São Paulo, foi preso após mais uma morte na instituição. De acordo com as informações, o homem já estava sendo investigado por outro assassinato ocorrido anteriormente na instituição, além de envolvimento com tortura, lesão corporal, desaparecimento e morte.

Afinal, qual a relação dessas situações com a Luta Antimanicomial e o fim dos manicômios? Como uma abordagem policial pode estar conectada com a saúde mental? Qual a relação com os diferentes movimentos sociais? Como a militância da esquerda tem entendido a saúde mental? Tais questões vão nos guiar no diálogo sobre saúde mental e a defesa da vida.

Imerso como militante-professor-pesquisador-extensionista e companheiro de Kíssila Mendes, Pedro Henrique Antunes da Costa, apresenta para a esquerda brasileira contribuições fundamentais sobre saúde mental e a urgente inclusão nos programas, nas táticas e estratégias e na formação dos militantes. Podemos dizer que o autor retira da subalternidade e invisibilidade um assunto que preocupou tanto Marx, em “O crescimento da loucura na Grã-Bretanha” e “Sobre o suicídio”, quanto Engels em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”.

Não é mais possível pensarmos em projetos de sociedade sem incluirmos a temática da saúde mental, a partir da totalidade, da historicidade e das contradições que são componentes basilares do materialismo histórico dialético, e sua articulação com uma práxis transformadora. A redução do debate aos especialismos reafirma uma noção neoliberal que transfere a responsabilidade para o indivíduo e sua família para se ter uma vida com saúde mental.

Instigado em ampliar o debate sobre saúde mental, Pedro Costa, apresenta os motivos de sua preocupação sobre o tema no atual cenário e destaca: “1) estamos sofrendo mais (há, no presente, uma maior produção do sofrimento), tendo isto aumentado no contexto pandêmico; e 2) o tema tem sido mais debatido, de modo que, ao sê-lo, tendemos a nos atentar mais a ele; 3) ao estarmos nos preocupando mais com nossa saúde mental, parece que a saúde mental tem deixado de ser um tabu ou algo minimizado, até então desconsiderado em nossas vidas”. Tais elementos nos mostram a dimensão que a saúde mental vem ocupando em nosso tempo, não sendo mais possível deixa-la de lado.

Nesse caminho, a saúde mental é compreendida como manifestação da vida cotidiana, sendo ocupada tanto pela produção de saberes, quanto pela necessidade de atuação e intervenção, demandando práticas. Não podemos deixar de destacar que, para o autor, a saúde mental é um sintoma da luta social geral, ou seja, por um lado encontra-se ligada à correlação de forças do atual estágio de desenvolvimento capitalista e, por outro, comparece nas diferentes organizações políticas e como tem sido abordada nas lutas e contextos militantes.

Uma das principais estratégias do atual estágio do capital é a falsa ideia de epidemia de transtornos mentais. Com o crescimento do sofrimento atrelado a deterioração da vida, tem-se a necessidade de respostas que possibilitem a produção do lucro, através da manicomialização da vida, e para isso privatizou-se o problema. Dessa maneira, temos o aumento da psicologização, psicologização da vida e medicalização, denominada pelo nosso autor de saudementalização da vida.

(…) é urgente transformar a noção de saúde mental, relacionando com a produção da vida. Para isso é preciso compreender que a solução não é aumentar o contingente de psicólogos ou psiquiatras, e, sim, superar a sociabilidade capitalista.

Pedro Costa nos alerta que é urgente transformar a noção de saúde mental, relacionando com a produção da vida. Para isso é preciso compreender que a solução não é aumentar o contingente de psicólogos ou psiquiatras, e, sim, superar a sociabilidade capitalista. Além de produzir sofrimento e adoecimento psicossocial, estabelece como resposta a medicalização, a farmacologização, a patologização, a psiquiatrização e a psicologização. O que nos leva a querer lutar por uma vida diferente para termos saúde mental.

Acionar a radicalidade da luta é tarefa árdua e assumida por Costa. Em sua inquietude recupera exemplos de formas de luta, de organizações políticas, movimentos sociais e populares, tendo o intuito a extração de lições que possibilitem a realização da interface entre saúde mental e militância, como: Partido dos Panteras Negras, Movimento dos(a) Trabalhadores(as) Rurais Sem-Terra (MST) e Coletivo de Pacientes Socialistas (SPK). Portanto, é fundamental questionarmos o presente e conhecermos o passado para seguirmos transformando o futuro.

A asfixia manicomial que é reproduzida nos diferentes espaços institucionais e nas relações sociais precisa ser identificada e combatida. A estratégia de sufocamento dos trabalhadores, mulheres, negros, LGBTQIAP+s, populações periféricas e de favelas, quilombolas, indígenas sofrem com essa asfixia que se materializa diariamente em seus corpos e subjetividades. Dessa forma, a militância precisa reconhecer que para termos saúde mental é preciso lutarmos pela vida, o que significa que não ter direito a terra, ao saneamento básico, a segurança alimentar, a educação, ao lazer, a cultura e etc., impacta diretamente na saúde mental.

A morte de Genivaldo de Jesus dos Santos representa a asfixia diária da população negra, pobre, periférica e em sofrimento e adoecimento psicossocial. A produção da morte daquele que é visto como improdutivo é componente das instituições da violência, sendo parte da engrenagem de perpetuação do capitalismo. No caso brasileiro, as comunidades terapêuticas conservam a asfixia manicomial e ainda são financiadas por recursos públicos.

Nesse caminho, lutar pelo fim dos manicômios e suas expressões não pode ser apenas uma bandeira do campo da saúde mental e atenção psicossocial. É urgente a incorporação da saúde mental nas diferentes lutas, organizações políticas e movimentos sociais e populares, pois as contrarreformas trabalhistas, da previdência, o desfinancimento da educação e da saúde, a defesa da reforma agrária, as demarcações de terras indígenas, as lutas antirracistas, feministas, antiLGBTQIAP+fóbicas, são lutas da e por saúde mental.

Pedro Henrique Antunes da Costa, militante-professor-pesquisador-extensionista, um inquietante em defesa da Luta Antimanicomial em sua expressão mais radical, propõe-se a provocar a militância organizada a desprivatizar a saúde mental, a romper a saudementalização e a afirmar a luta pela vida. Um livro que não se limita ao universo acadêmico, mas que deve ser instrumento de formação militante e de profissionais críticos.

Desejo uma ótima leitura!

Outono, abril de 2024.