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MUNDO

Quantas crianças mortas em Gaza [a morte de] Mohammed Deif vale?

Por Gideon Levy, do portal Haaretz. Tradução de Waldo Mermelstein, do Eol

As trombetas da vitória soaram imediatamente. A poeira ainda não baixou sobre as tendas mutiladas dos deslocados em Mawasi antes que os estúdios começassem a tocar “vitória total”. Nir Dvori declarou com um rosto brilhante, como se ele pessoalmente tivesse ordenado o assassinato, que Mohammed Deif “era mortal” (há também esse tipo de jornalismo israelense); Almog Boker prometeu que “está parecendo bom”; o anúncio falava sobre “os doces momentos da vida”; e Moriah Asraf Wolberg quebrou a santidade de seu Shabat (salvar uma vida é fundamental) para dizer: “Todos esperamos que Deif esteja morto”. Todos nós? Quase todos nós.

No tempo entre a escrita destas linhas e sua publicação, Israel celebrará como nunca antes. Você não precisa ser um purista para lutar para entender o significado dessa alegria. Indica principalmente as profundezas da doença. Ainda não ocorreu na cadeia interminável de assassinatos de Israel que traga consigo uma conquista significativa para o país além da alegria das massas e a satisfação de seu desejo de vingança – e, no entanto, ela celebra a vitória.

Os palestinos que assassinaram Rehavam Zeevi conseguiram alguma coisa?2 Israel pagará o preço por esse assassinato, assim como pagou direta e indiretamente, imediatamente ou finalmente, por todos os assassinatos anteriores.

Se as portas do inferno no Líbano se abrirem agora saberemos o preço. Se o Hamas usar sua força restante para decretar qualquer tipo de vingança – saberemos o preço. Se Deif for substituído por alguém mais extremo, como após os assassinatos de Sheikh Yassin e Abbas Musawai – saberemos o preço.

E, acima de tudo, se o acordo de cessar-fogo e troca de reféns ficar em um impasse– saberemos o preço. Não há cenários mais previsíveis do que esses, mas Israel, no entanto, comemora sua vitória.

acima de tudo, paira a questão: quantos assassinatos bárbaros Israel pode cometer para eliminar um ou dois comandantes, por mais mortais e perversos que sejam. Esta pergunta não é feita em Israel. Se alguém ousasse colocá-la, receberia a resposta automática, “quantas forem necessárias”.

No entanto, acima de tudo, paira a questão: quantos assassinatos bárbaros Israel pode cometer para eliminar um ou dois comandantes, por mais mortais e perversos que sejam. Esta pergunta não é feita em Israel. Se alguém ousasse colocá-la, receberia a resposta automática, “quantas forem necessárias”.

As cenas da tarde de sábado em Gaza mostram “quantas forem necessárias”: horror. Jatos de combate e drones bombardearam Mawasi, que o Exército havia declarado ser o único refúgio seguro para os moradores de Gaza. Para os israelenses que são insuflados por sua mídia com uma sensação de falsa vitória: esta é uma área igual à do aeroporto de Heathrow, em Londres, 6,5 quilômetros quadrados, lotada com 1,8 milhão de pessoas que perderam tudo.

Naturalmente, não há abrigos antiaéreos lá, nem casas, apenas tendas e areia. As Forças de Defesa de Israel afirmam que a área bombardeada foi definida como com “floresta” – florestas em Gaza? – e que dezenas de terroristas foram mortos no bombardeio, mas as imagens transmitidas para o mundo mostraram barracas destruídas e crianças em seus gritos de morte.

Aqui, os moradores deslocados de Gaza encontraram abrigo do calor, da sede e da fome, e foi aí que os pilotos e operadores de drones atacaram com seus mísseis assassinos. O resultado foi um massacre: 71 mortos até a tarde de sábado, incluindo crianças e equipes de resgate, e seu número aumentará.

Centenas de feridos foram levados nos capôs de carros barulhentos, carroças puxadas por burros famintos ou nos braços de parentes e entes queridos aterrorizados para o semidemolido Hospital Nasser, que, novamente, parecia um matadouro. Quase nada disso interessa a Israel.

O preço que os deslocados de Gaza pagaram no sábado é adequado? Quantas crianças, médicos, mulheres, idosos e simples residentes Israel assassinará por um Mohammed Deif? Quanto sangue deve ser derramado para que o apetite do escalão militar e político declare o êxito?

100 mortos certamente são permitidos. E quanto a 1.000? Presumo que a maioria dos israelenses daria um sinal de consentimento com a cabeça. 10,000? 50,000? Basta dizer quantos Israel pode matar até que seja considerado um crime aos seus próprios olhos? Onde termina o massacre? A resposta é predeterminada: “Quantos forem necessários”. Em outras palavras: não há limite.

1 Mohammed Deyf era um dos principais comandantes do Hamas. Sua morte foi anunciada pelos israelenses, mas não foi ainda confirmada pelo Hamas ao publicarmos este artigo do corajoso jornalista Gideon Levy. O que se sabe é que essa operação assassinou dezenas de palestinos e feriu centenas. Mais um massacre no infindável genocídio de Gaza.
2 General israelense, com trajetória no Exército de Israel desde 1948. Para seguir sua carreira contra os palestinos, fundou em 1988 o Moledet, um partido de extrema direita, antecessor dos atuais. Seu principal ponto era a proposta de expulsar todos os palestinos dos territórios ocupados para os países árabes. Em 2001 participava do governo de Ariel Sharon que esmagou a Segunda Intifada provocada pelo próprio Sharon. Zeevi foi abatido por um comando da Frente Popular de Libertação da Palestina em resposta ao assassinato por Israel do seu Secretário-geral, Abu-Ali Mustafa
Original em How Many Dead Children in Gaza Is Mohammed Deif Worth?