1 A desaceleração do crescimento médio anual, desde 1980, de taxas em torno de 7%, para taxas inferiores a 3%, foi a transformação econômica mais impressionante do capitalismo brasileiro. Nos últimos dez anos, entre 2014/24, o país conheceu uma década de estagnação. O PIB retrocedeu abruptamente 7% entre 2015/17, teve lenta recuperação até 2019, mergulhou em recessão durante a pandemia em 2020 e, desde então, precisou de três anos para voltar ao patamar de 2014. Uma terrível lentidão histórica. Não parece muito animador, porque é estrutural, não conjuntural. O Brasil entrou em decadência. O golpe institucional de 2016, os dois anos de mandato de Temer e os quatro de Bolsonaro foram terríveis. Na pandemia o Brasil sangrou centenas de milhares de vidas que poderiam ter sido poupadas, a fome voltou a castigar mais 30 milhões de pessoas, o desemprego foi o flagelo para outros 14 milhões e por aí vai a tragédia recente. A nação “andou de lado”. Por quê?
2 A classe dominante esgrime um argumento central: o Estado ficou grande e caro demais desde o fim da ditadura. Há trinta anos, em 1994, quando o Plano Real estabilizou a superinflação, o país tinha 7 milhões de aposentados pelo INSS e hoje, em comparação, tem 38 milhões, tem 20 milhões de famílias protegidas da miséria pelo Bolsa Família, tem 9 milhões de jovens matriculados em cursos pós-secundários, e muitos outros indicadores que confirmam que o piso da pobreza extrema subiu, ainda que a desigualdade social não tenha diminuído. Estas e outras foram conquistas arrancadas através de uma longa e difícil luta da geração que se mobilizou desde os anos oitenta, e construiu o movimento estudantil e sindical, de mulheres e negros, popular e LGBT, ambiental e indígena, que são a base da esquerda brasileira. Nunca foram o bastante, era possível ter avançado muito mais, mas elas estão ameaçadas pela resiliência do bolsonarismo.
3 A consequência das pequenas mas valiosas reformas foi que a carga fiscal cresceu de 25% do PIB para algo acima de 32%, e a dívida pública bruta subiu de 50% para 74% do PIB. A burguesia quer diminuir os gastos públicos do Estado com previdência, educação e saúde. Exige do governo Lula a desvinculação do salário mínimo como piso da Previdência, e a desconstitucionalização dos pisos obrigatórios. Seriam garantias para o capital rentista de que o pagamento de juros de 10,5% – entre os cinco mais elevados do mundo –, e para a rolagem da dívida pública estaria seguro. E apostam que o crescimento só poderá vir pela atração de investimentos externos. Um cerco se fecha sobre o governo Lula com exigências ininterruptas. Esta estratégia reacionária tem que ser derrotada. Mas o bolsonarismo se prepara para voltar ao poder e aplicar o ajuste de destruição das conquistas à maneira selvagem de Milei na Argentina. Condicionam a retomada de um crescimento “robusto” a um ajuste implacável, amargo e doloroso.
4 A esquerda brasileira, moderada ou mais combativa, não pode deixar de apresentar uma explicação alternativa a esta ideologização neoliberal. O investimento privado e público caiu, nas últimas décadas, oscilando para menos de 18% do PIB ao ano. Por quê? Em primeiro lugar, porque o papel do Estado diminuiu, porque o custo da rolagem da dívida pública aumentou. Mas tão importante quanto isso é o fato do investimento capitalista também ter diminuído. O Brasil deixou de ser o primeiro país, na periferia, beneficiado pelo investimento estrangeiro, em especial norte-americano. A China ocupou este lugar. O aumento dos custos produtivos, em função das pequenas conquistas sociais, desincentivou a ganância capitalista. Explicar esta inversão de tendência histórica de crescimento intenso para lento é chave para uma avaliação dos desafios colocados diante do governo Lula.
5 Se a estratégia do governo da Frente Ampla se resumir a um ajuste fiscal moderado, trocando o teto de gastos pelo arcabouço fiscal, persistindo na perigosa ilusão que um neoliberalismo com “descontos” será uma âncora para o apoio da fração burguesa liberal contra o bolsonarismo no segundo turno de 2026, podemos perder. Mesmo “dando certo”, ou seja, conseguindo uma crescimento em média em torno de 2,5% ou até 3%, a inflação abaixo de 5% e garantindo o Bolsa-Família – o que são somente hipóteses –, pode “dar errado”. Não será o bastante, talvez, para vencer as eleições. Mais grave, não se inverterá a tendência à decadência. Se considerarmos que, desde 1980, a renda per capita permanece essencialmente a mesma, encontramos um indicador que merece ser levado a sério, porque, ainda que indiretamente, sugere o nível de produtividade do país. Além da variação da renda per capita, outros fatores são necessários para estabelecer um modelo teórico sólido de avaliação da tendência à decadência. A explicação exige perspectiva histórica.
6 O lugar de cada país periférico no sistema internacional de Estados na etapa histórica do pós-guerra, entre 1945 e 1989, dependeu de pelo menos quatro variáveis complexas. A primeira é a sua inserção histórica nas etapas anteriores. Ou seja, a posição que ocupou em um sistema extremamente hierarquizado e rígido: afinal, nos últimos 150 anos somente um país, o Japão, foi incorporado ao centro do sistema, mas somente depois de três guerras (contra a Rússia, a China e a Segunda Guerra Mundial), e ainda assim na condição de imperialismo desarmado. E todos os países coloniais, semicoloniais e dependentes que ascenderam em sua inserção, como Cuba, só o fizeram depois de revoluções que permitiram conquistar maior independência. O Brasil deixou de ser colônia de Portugal para ser semicolônia inglesa durante um século e desde o fim da última guerra mundial é uma nação dependente, uma semicolônia dos EUA. A tendência dominante, na atual conjuntura, é uma acentuação da dependência em relação a Washington, apesar das reservas de 380 bilhões de dólares, uma herança transitória da inversão favorável das relações de troca para economias exportadoras de commodities entre 2004/14. Nenhuma fração da classe dominante brasileira está, todavia, disposta a desafiar esta subordinação. A entrega da exploração do pré-sal às corporações estrangeiras e as privatizações de quase todos os setores estratégicos são uma demonstração desta impotência estratégica.
7 O segundo é a dimensão de sua economia. Ou seja, os estoques de capital acumulado; a capacidade de ter soberania monetária; os recursos naturais – como o território, as reservas de terras agriculturáveis, os recursos minerais, a autossuficiência energética, alimentar, etc –; e humanos – entre estes, sua força demográfica e o estágio cultural e científico da nação –, assim como a dinâmica de desenvolvimento da indústria; ou seja, sua posição na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial. O Brasil é um país continental e tem 203 milhões de habitantes, e um PIB estimado em 2 trilhões de dólares, porém sofre uma taxa de desigualdade social que só pode ser comparada a países da África subsaariana. E permanece um país importador de capitais: sem a entrada de um IED de mais de 70 bilhões de dólares por ano teria um déficit crônico no balanço de pagamentos, seu histórico calcanhar de Aquiles. A dinâmica da industrialização se perdeu desde os anos oitenta. Afirmou-se uma reprimarização da sua pauta de exportações. A dimensão do seu mercado interno de consumidores de bens duráveis, que subiu de 25 milhões para 40 milhões, vem encolhendo. A elevação da escolaridade média de menos de quatro anos, em 1980, para menos de dez anos em 2023 foi dramaticamente lenta. Tão grave quanto isso, 5% da população economicamente ativa foi embora do país, uma emigração inusitada em um país que foi beneficiado pela imigração durante gerações. Ao mesmo tempo, surgiram organizações criminosas com a dimensão de grandes empresas, a população carcerária disparou para 700 mil, e a taxa de homicídios superou os 30 para cada 100 mil pessoas.
8 O terceiro é a capacidade de cada Estado em manter a sua independência e o controle de suas áreas de influência. Ou seja, sua força militar de dissuasão, que depende não só do domínio da técnica militar ou da qualidade das suas Forças Armadas, mas do maior ou menor grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade política do Estado de convencer a maioria do povo, se isso for incontornável, da necessidade da guerra. O Brasil perdeu posições relativas no mundo e na América do Sul. A manutenção senil de níveis absurdos de desigualdade social, muito mais elevados que os vizinhos do Cone Sul, mas compensados, na etapa anterior de crescimento acelerado, pela diminuição da pobreza, associada a um regime democrático eleitoral longevo, pela primeira vez em sua história, explicam a instabilidade político-social crônica. A mobilidade social absoluta e relativa decaiu; a participação dos mais pobres na distribuição pessoal e funcional da renda regrediu; e os níveis de concentração de riqueza entre os 1% mais ricos e, em especial, entre os 0,1%, aumentaram.
9 O quarto são as alianças de longa duração dos Estados uns com os outros, que se concretizam em Tratados e Acordos de colaboração, e a relação de forças que resultam dos blocos formais e informais de que faz parte, ou seja, sua rede de coalizão. A burguesia brasileira, sob pressão norte-americana, não conseguiu sequer transformar o Mercosul, um bloco tendo como eixo uma aliança com a Argentina, em uma União Aduaneira. O pré-sal abria a possibilidade de uma associação com a Venezuela, que foi, também, sumariamente descartada.
10 Mas o destino do Brasil é indivisível do futuro da Amazônia. O capitalismo tardio ameaça a sobrevivência da vida civilizada como a conhecemos, desde o final da Segunda Guerra Mundial, porque provocou uma irreversível aceleração ecosuicida do aquecimento global. A descarbonização permanece muito lenta porque a margem de lucro na produção de derivados do petróleo continua muito elevada. Sem luta social e política de dimensão mundial numa escala de mobilizações de centenas de milhões, a catástrofe parece irremediável. Não fosse isso o bastante, uma fração capitalista com articulação mundial girou para extrema-direita e é negacionista. O maior trunfo do Brasil no sistema mundial de Estados é a Amazônia. Defendê-la, a qualquer preço, é o desafio de nossa geração.
Comentários