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MUNDO

Os monstros estão à solta (parte 1)

Ascensão da extrema direita em meio à decadência do capitalismo exige novo enfoque estratégico aos socialistas

Gabriel Casoni, da direção nacional da Resistência-PSOL

Ventos sombrios sopram de todos lados. O mais recente avanço da extrema direita na Europa, especialmente na França, provocou alarde. Mas não foi surpresa. Trump, em versão ainda mais radicalizada, é o favorito à vitória no país mais poderoso do mundo. Milei venceu na Argentina e impõe um ajuste de brutalidade espantosa. Modi obteve novo mandato na Índia, ainda que com vantagem menor do que se esperava. Netanyahu e sua coalização de extrema direita seguem no poder em Israel, no comando do genocídio em Gaza e prestes à deflagrarem a guerra no Líbano. Zelensky, na Ucrânia, e Putin, na Rússia, duelam nas trincheiras da guerra infame, mas seguram pelas mãos os “seus” fascistas. No Brasil, o bolsonarismo lidera perigosa oposição ao governo Lula da Silva, almejando o retorno ao poder em breve.

Exemplos similares poderiam seguir em muitas linhas. Fato é que a marcha ascendente da extrema direita no mundo é incontestável e, sobretudo, perturbadora. Como explicá-la? Como enfrentá-la? Na parte 1 deste artigo, oferecemos respostas iniciais à primeira pergunta, isto é, como compreender as bases do desenvolvimento desse fenômeno. Na parte 2, que será publicada em breve, abordaremos o tema da centralidade do combate ao neofascismo (táticas, estratégia e programa) no período histórico que nos coube viver.

As criaturas das trevas e as crises estruturais do capitalismo 

A impetuosa ascensão da extrema direita global não pode ser creditada a uma única causa, e menos ainda ser compreendida de modo superficial, como fenômeno contingente, passageiro. Processos político-sociais qualitativos — de largo alcance, durabilidade e profundidade — remetem a transformações estruturais nos âmbitos econômico-social, geopolítico e político-institucional. Ou se quisermos, em linguagem diretamente marxista, às significativas mudanças na luta de classes (relação social de forças) e na batalha entre as diferentes burguesias, na forma da luta de Estados.

Sustentamos (a) que a emergência da extrema direita no plano global é produto político genuíno da fusão de cinco crises estruturais do capitalismo contemporâneo; e (b) que o impulso decisivo dessa força contrarrevolucionária vem do deslocamento crescente de setores da classe dominante à extrema direita, tanto nos países centrais, como nos países periféricos.

A primeira das cinco crises do capitalismo informa sobre a longa estagnação econômica após a explosão da crise financeira de 2008-2009. O resultado direto dela foi a aguda ampliação das desigualdades, dos ressentimentos sociais, do empobrecimento de parcelas da população, da precarização generalizada das condições de trabalho, dos mecanismos de perpetração do racismo, xenofobia, machismo e LGBTfobia. Os planos de austeridade neoliberal aplicados pelos governos da direita, e também por diversos governos da esquerda moderada, promoveram o esgarçamento o tecido social, provocando frustração, decepção e desalento nas fileiras do proletariado.

A segunda se refere à crise da ordem imperialista mundial. Acabou-se a era do mundo unipolar sob domínio completo e avassalador dos Estados Unidos. A irresistível ascensão da China como potência econômica e militar, principalmente, e, em segundo lugar, a recuperação parcial da Rússia conjugada com a ambição imperialista de Putin, desafiam abertamente a ordem mundial hegemonizada pelos EUA e seus sócios subordinados e decadentes: o Reino Unido, a União Europeia e o Japão. O resultado da crise da ordem mundial é um só: guerra econômica (protecionismo e subsídios — o fim “globalização”) e tecnológica (inteligência artificial, semicondutores etc.) e desenfreada corrida armamentista. A escalada de conflitos militares pelo mundo já está contratada. É real o perigo, no atual período histórico, da eclosão da guerra mundial. Estamos na fase preparativa dela.

A terceira crise diz respeito à entrada na era da catástrofe climática. A subida da temperatura média no planeta já atingiu patamar em que a ocorrência de eventos extremos devastadores acontece de forma cada vez mais frequente e intensa, em todo mundo. As potências imperialistas são incapazes de promover a “transição verde” na velocidade e escala necessárias para conter a rápida aceleração do desequilíbrio climático. Ao contrário, a lógica insana da acumulação de capital e a virulenta disputa geopolítica em curso, em particular a febril corrida às armas, reforçam a dinâmica ambiental destrutiva. A era da catástrofe climática já registra expressivos impactos econômicos, sociais e políticos, reconfigurando a disputa tecnológica, industrial e por matérias primas entre os países centrais, que espoliam vorazmente as nações do Sul Global.

A quarta crise comunica sobre o declínio da democracia liberal no contexto concreto das três primeiras mencionadas. O processo de erosão democrática revela-se na ascensão, em variados graus e formas, de regimes e governos autoritários em várias partes do mundo, na supressão de liberdades democráticas e direitos sociais e trabalhistas, na progressiva perda de confiança popular no regime democrático-liberal, de modo geral, e nos seus principais partidos de sustentação, em particular. Nos países imperialistas, frações burguesas se deslocam à extrema direita, abraçando projetos de endurecimento de regimes e governos. Internamente, objetivam a imposição de planos de austeridade sobre a classes trabalhadora — centralmente sobre suas camadas mais oprimidas —; e, externamente, almejam o fortalecimento nacional-burguês na competição econômica e militar com as potências rivais. Nos países periféricos, ocorre a mesma dinâmica: setores das burguesias locais dirigem-se ao encontro do neofascismo, apostando nesse instrumento político para amealhar lucros e rendas exorbitantes, por meio da  execução de programas brutais de espoliação e exploração das massas trabalhadoras e oprimidas e dos recursos naturais.

A quinta fala sobre a crise de subjetividade da classe trabalhadora e da alternativa revolucionária. A decadência do capitalismo, em todas suas faces, não vem sendo acompanhada, até aqui, pelo fortalecimento de alternativas anticapitalistas. A tomada do poder e a construção do socialismo seguem distantes do horizonte das massas trabalhadoras e oprimidas. É dramático o atraso no nível de consciência do proletariado internacional, tendo em conta a urgência da necessidade de superação do capitalismo. Os principais partidos ligados à classe trabalhadora mantém-se comodamente adaptados à ordem do capital e da democracia liberal. A rigor, até mesmo organizações  clássicas, como os sindicatos, sofreram importantes retrocessos e perderam força nas últimas décadas de neoliberalismo prevalecente. Há, portanto, uma crise política da classe trabalhadora em sentido amplo, e não somente no que refere ao diminuto peso das organizações revolucionárias na realidade contemporânea. Trata-se de uma crise fundamentalmente de dimensão subjetiva, no que Marx define como a classe para si. Isto é, no que se refere ao seu grau de consciência, organização e confiança para a luta coletiva.

De onde surge os monstros do neofascismo? 

A marcha ascendente da extrema direita global é produto legítimo do entrelaçamento dessas cinco crises estruturais do capitalismo contemporâneo. A crise econômico-social fornece ao neofascismo base popular de massas, notadamente os setores mais ressentidos da classe média e do operariado branco empobrecido, os quais localizam, sob a direção ideológica da extrema direita, o inimigo no imigrante, nas mulheres feministas, nos direitos conquistados pela população negra e LGBTQI, no “excesso” de proteção ambiental, nos sindicatos, nos partidos de esquerda etc. Assim, a extrema direita opera uma divisão política interna na classe trabalhadora, colocando uma parte dela contra outra.

Já a crise da ordem imperialista no mundo empurra segmentos das burguesias dominantes no sentido do autoritarismo e do militarismo, como meios de força para consecução dos seus objetivos econômicos e geopolíticos. A catástrofe ambiental tece o pano de fundo de agravamento de todos desequilíbrios relacionados ao avanço da extrema direita. Sendo essa a força política que nega a emergência climática, advogando a adoção de planos de aceleração do uso de combustíveis fósseis e da destruição ambiental em prol da espoliação selvagem dos recursos naturais.

Por sua vez, o declínio da democracia liberal tem como força propulsora o avanço da extrema direita em todos terrenos. Quer dizer, a erosão da democracia burguesa não está relacionada ao desenvolvimento e ascensão da democracia direta das massas exploradas e oprimidas questionando a ordem democrática do capital e propondo um novo modelo de sociedade e democracia, a transição ao socialismo. Justo ao contrário, as liberdades democráticas e os direitos sociais conquistados sob o regime capitalista, que foram  arrancados com muita luta e sangue pela classe trabalhadora, pelos negros, pelas mulheres, pelas LGBTs, pelas minorais nacionais, estão perigosamente ameaçados neste momento devido a subida do neofascismo. É neste preciso sentido que a extrema direita aparece como “anti-sistema”. Ou melhor dizendo, se coloca contra o “sistema” de direitos sociais e de liberdades democráticas que as massas exploradas e oprimidas obrigaram a burguesia a conceder.

Portanto, trata-se de um monumental equívoco identificar o sentimento “anti-sistema” promovido pelo neofascismo como algo supostamente progressivo; que possa, em alguma medida, ser disputado pela esquerda radical. Não há uma gota de anticapitalismo na ideologia anti-sistema de Trump, Bolsonaro, Le Pen e Milei. Ao inverso, há um contundente camada de ódio à luta socialista, antirracista, feminista, ambiental, sindical, enfim, à luta contra o sistema da dominação capitalista e imperialista.

Importa sublinhar, por fim, que a crise de subjetividade da classe trabalhadora e da alternativa revolucionária também facilita o caminho à extrema direita. A fragmentação social e política das massas exploras e oprimidas, o enfraquecimento dos seus instrumentos de luta, organização e representação política, o rebaixamento geral do nível de consciência de classe, a domesticação de longa data de suas principais direções políticas, tudo isso corrobora para que o neofascismo se implante e ganhe adesão em parcelas populares. Lutas importantes, até mesmo explosões sociais, não deixam de acontecer e de obter, em alguns casos, conquistas valiosas. A maré ascendente do movimento feminista e antirracista na última década comprova essa afirmação. Porém, é preciso reconhecer o fato de que, até aqui, esses processos, embora muito progressivos, não conseguiram superar essa crise política (subjetiva) mais ampla e profunda do proletariado de conjunto. Crise que se manifesta dramaticamente, em termos estratégicos, na ausência de alternativas anticapitalistas com peso de massas justamente num período histórico em que o sistema capitalista apodrece e ameaça a própria sobrevivência da humanidade com o perigo da guerra mundial e os efeitos da catástrofe ambiental.

Entretanto, uma visão fatalista do sombrio cenário que descrevemos acima só poderia gerar apatia e paralisia política. A humanidade passou muito próxima do triunfo total do nazifascismo em sua dimensão mais brutal e totalitária há cerca de 80 anos atrás, numa guerra que matou dezenas de milhões de pessoas. A classe trabalhadora e os povos derrotaram Hitler e Mussolini e abriram um novo horizonte de revoluções e conquistas democráticas e sociais. Enquanto houver vida e luta, haverá esperança. Mas a esperança precisa estar balizada pelo mais rigoroso senso de realismo, encarando a realidade tal como ela é — e ela é hoje muita feia, monstruosa. No próximo texto, parte 2, trataremos das tarefas relacionadas ao combate ao fascismo dos nossos tempos.